8 de dezembro de 2018


o meu amor por ti não tem bandeira
só um hino
que canto baixo, pelos cantos,
antes que alguém o censure

o meu amor por ti não tem fronteira
            linhas imaginárias crescem, desaparecem, voltam
 todo dia um novo tratado um novo golpe dá a ele uma outra forma
               (enquanto isso surgem no facebook grupos de conspiradores anticiência anticoração
a sugerir que o desejo é tão falso quanto a gravidade)

às vezes você se rebela
contra o amor
e os reveses de toda ordem e todo progresso
e vai embora pra outros continentes
enquanto me fecho feito pangeia
a ouvir nos fones só os cantos
dos pássaros mais canoros e extintos
do mundo

às vezes eu me rebelo
contra o amor
e os reveses de toda ordem e todo progresso
e largo a tarde e trabalho
pelo meio
pego um avião direto
para a Faixa de Gaza
de onde desço direto pra rua
atrás do primeiro orelhão
oi tô no coração palestino
tá uma loucura aqui
tô muito bem
& vc como vai???

e aí são revoluções
golpes de estado
massacres e waterlus
fugas de última hora
e pedidos de asilo
em camas frias de embaixada

o meu amor por ti não tem bandeira
só arma e escudo
que eu e vc revezamos
um contra a carne do outro
a faca alienada
ri debochada
quanto mais se encrava
mas lá no fundo, em seu cabo,
enquanto fere
um torce pelo outro

o outro & o outro
esse casal presidencial
que paira sobre nós
e nos humilha

26 de novembro de 2018

bolsonaro sonha





















militarmente cansado
como se não descansasse mais do que duas horas
                                                                                   desde 1964
bolsonaro entra no quarto, banha-se, janta &
             antes de fechar os olhos
em algum quarto de hotel brasiliense
dedica à família um último pensamento:

será possível se criar
no calendário nacional
um dia só para a laura?

então adormece e sonha com seu pai e sua mãe
& acorda e sonha e acorda e sonha e decide
após vinte polichinelos
sua primeira ação:
a criação de um semáforo para os cães
atravessarem a rua sem danos

toma café, dá despachos, dá ordens aos outros
depois se tranca no banheiro e dá ordens a si mesmo
e almoça, dá entrevistas, recebe abraços e tapinhas
depois se tranca no banheiro de novo e chora um bocadito
e antes que se esqueça
(sua cabeça é muito ruim coitado)
rabisca num papel toalha uma novo lembrete
vai bem a ordem
vamos bem com progresso
na branca faixa da bandeira nacional daqui pra frente se lerá
                                       
                                                        ONÇA PINTADA & TAMANDUÁ

e volta ao gabinete, usa telefones, dá ordens aos outros
depois se tranca no banheiro para ver vídeos do zap zap
até a hora de ir embora
e aí janta, ouve e manda áudios aos filhos queridos &
                                                                  antes de dormir  
                   pergunta ao carlos como se manda tomar no cu em inglês 
                                        fuck you @trump talquei
                       então bloqueia o telefone, ri consigo mesmo seu melhor riso, reza
                                       & adormece e sonha e adormece   
                                & quando enfim abre os olhos resolve:
                                       é preciso criar o Ministério das do Gueto, da Fome,
o Ministério dos Pobres o Ministério Trans, o Ministério da Laura
                            é o melhor o brasil ir se acostumando a olhar pra si mesmo


Imagem: "Papa-vento" (1956), de Cândido Portinari

16 de novembro de 2018

ping pong galaxy

                                      pro loren


aceitar, por fraqueza ou força desmedida, no mito.
acreditar que há por aí algum outro espaço
onde não há armários
e só a terra
nada de homens nada de homens
eu repito nada de homens nada de homens
onde só a terra se pisa e repisa
enrolada ao vento

acreditar que
além do horizonte
embaixo da ponte
existe um lugar

um lugar do caralho
pra se gente se amar

acreditar que
depois do arco-íris
existe a cidade X
onde fawcett 
corre e dança nu
todas as tardes

aceitar a imaginação como parte do mundo
em eterna guerra contra a ciência e o certo
pasárgadas, atlântidas, shangrilás, eu sei lá
porque a paixão cega pelo inverso
canaãs, wonderlandes, paraísos, e é por isso
que na cabeça eu carrego
meus próprios mapas 

somos alienígenas, meu amor
o verdadeiro mundo se chama ping pong galaxy
ping pong galaxy!
ping pong galaxy!
ping pong galaxy!


23 de setembro de 2018

bandeira II (colagem)

adão atravessa a rua, numa tarde qualquer de 2018,
vestindo a camisa de um poeta negro,
isso em 1887, à espera da primeira caravela
isso em Baltimore, 1940,
isso no Carandiru, 1992
isso sempre uma ventura

manuel levanta-se da cama, ainda de pijamas,
e mostra à janela, a quem quiser ver,
seu corpo magro,
seu pênis tímido
sua tosse amarela,
suas melhores bandeiras

florbela lambe, com máxima delicadeza,
o sexo de sua amiga
cujo nome desconhece
e pelo qual não se interessará
até que ela vá embora.
horas depois, moderna que é,
escreve um poema sobre a rosa mais rosada
vai ao orelhão mais próximo,
liga pra seu primeiro e casto amor
marca um encontro de saudade
& o espanca.

gertude
cruza a avenida central
entre tiros e vírus
pra tomar uma água de coco
de mãos dadas com alice-bi-tocas

(tudo isso porque os corpos se entendem
mas as bandeiras não)

bandeira I


o plano A é aceitar
que esquecemos nossas mãos
em algum ponto da História
e que não há mais o que se fazer
a não ser lançar do alto do mar de névoa
nossos votos de amor, comunhão e política

o plano B é pegar
um Biplano
e arrastar uma faixa onde se lê
vamos fugir desse lugar, beibê
por dentro de todos os asilos
por dentro de todos os presídios
por dentro de cada barraco
onde beibê faz amor com outras pessoas
& declara apoiar candidatos que desejam nossa morte

o plano C é Cair
o biplano
por falta de autoaceitação e
gasolina
na última das ilhas desertas
&
para desespero
de Crusoé
fazer-lhe cia
declarar-lhe antigo amor
dar-lhe apoio e asilo
político

19 de julho de 2018

(canção pra tocar na rádio)

cada canção de amor possui sempre outra que é seu contrário a nos recomendar exatamente o oposto e aí, se a gente seguisse o rádio à risca, ia da sarrada ao descaso da briga à putaria assim, de repente, todo dia
eles cantam cantam e não dão conta de expressar uma coisa que só você sente e nem a mim nem a ninguém comunicar poderia (o amor é a espera por esse dia) às vezes cansa receber ordens afetivas vindas das vozes, guitarras, cavacos mas os poetas não desistem de adivinhá-la e acrescentam às paradas de sucesso mais e mais nessa hora, em silêncio, sem luz e bateria, somos nossa própria rádio e as bobagens que dissemos são os nossos comerciais. 

26 de maio de 2018

o amor possível



no instante mesmo em que morre a última das feras,
e em que se revistam meninos à saída da última das festas,
como se juventude pobre crime fosse,
como se caças jovens pobres feras fossem

no instante mesmo em que se violam, mais uma vez,
os direitos dos que amam
e se cortam, dedo por dedo, as mãos e pés rebeldes
de quem insiste em lavrar/dançar

no instante mesmo em que 
doidos doentes drogados
mendigos migrantes marielles
velhos violados violetas 
dormem morrem vazam

dois jovens, um homem e uma mulher,
se amam num beliche  
                                                              - e bem que eles fazem.

não o amor de amantes,
mas o amor possível:
baixinho, em vigília nas torres e trincheiras,
rápido, nos metrôs, nas boleias, nos horários apertados de almoço,
escuro, a portas cortinas fechadas,
as lâmpadas todas apagadas à força
contra os corpos de homens que amam homens
contra os corpos de mulheres que amam mulheres

no instante mesmo em que
caleidoscópica
morre a última das estrelas
e candelária
morre o últimos dos meninos ,
dois homens, duas mulheres
se amam num beliche
                                                              - e bem que eles fazem.

19 de maio de 2018

Tainhas (fragmento)



Tão logo entrou no ônibus, Mariana procurou um lugar vazio onde pudesse se sentar à janela; escolheu um na parte central do ônibus, torcendo para que ninguém mais se acomodasse a seu lado, porque desse modo poderia se folgar à vontade e não teria a obrigação de dividir um espaço tão pouco com estranhos. Foi aí que um homem, trajando calças e camiseta alaranjadas, nos pés um sapatão preto de couro, sentou-se ao seu lado, mesmo havendo tantos outros pares de assentos livres; o sujeito era forte, seus músculos salientes pareciam querer saltar fora dos braços, e trazia o cenho fechado, como se estivesse de mal com a vida e com todos. A menina observava-o de soslaio, fingindo olhar para a paisagem estática da janela, onde nada de mais havia para ver a não ser a fila de passageiros embarcando rumo à Recife. Para não transparecer incômodo, Mariana esforçava-se por pensar em outras coisas: olhava para o bagageiro, acima de sua cabeça, procurando analisar as diferentes tipos de malas e bolsas que as pessoas traziam: havia quem usasse maletas pesadas e bonitas, como as de executivos, enquanto havia também cobertores, potes e sacolas plásticas de mercado, denunciando as diferentes intenções e preparativos de viagem das pessoas. Certamente havia nesse carro gente a trabalhar, a passear, gente com pressa e gente tranquila. E gente perdida, em fuga, como ela, haveria mais alguém? Era nessas coisas que Mariana pensava quando o homem a seu lado a cutucou e, após constatar a atenção da menina, perguntou com voz e rosto sério: "Ei, quer almoçar?". Aquilo não fazia sentido algum, primeiro porque eram três horas da tarde e há muito tempo já ela almoçara; ademais, não conhecia o homem e sabia que um convite como esse não era coisa que alguém fazia a um estranho, ainda mais numa linha interestadual prestes a embarcar (almoçar onde????). E havia algo mais, que só agora a menina percebia: o homem tinha um cheiro horrível, embora ela não soubesse dizer do que, possivelmente cheiro de quem há muito não tomava banho. Em poucos segundos, enquanto a perguntava flutuava no ar, Mariana tentou em vão achar uma explicação para tudo aquilo, a começar pela roupa do homem, laranja do pescoço às pernas. "Só dois tipos de pessoas usam roupas assim: os garis e os cantores de rock", pensou a menina, e por um momento passou pela sua cabeça a imagem dum homem magrelo gritando e rebolando com um microfone na mão .  Esse era um hábito da menina: constantemente, observando as coisas, cravava algum pensamento definitivo sobre elas e as pessoas, como se o mundo, aquele mesmo mundo que mal conhecia para além das esquinas da sua casa e que só agora, com tal viagem, começaria a conhecer, fosse algo estático, imutável. Mariana não sabia, mas dali em diante, quanto mais passasse o tempo e quanto mais viajasse por aí, menos certezas teria sobre o mundo e suas coisas. Mas, pensando bem, algo lhe dizia que o homem ali não era uma coisa nem outra; esgotava-se o tempo dela e ainda assim ela não sabia o que dizer, só queria que o homem desaparecesse. Ao invés disso, o homem aproximou-se mais dela e, utilizando seu antebraço, pressionou-o contra o pescoço da menina, fazendo que suas costas afundassem na poltrona. A cena durou poucos segundos (três, cinco, sete?) e, ao cabo deles, o homem levantou-se, o rosto sempre bravo, e saiu rapidamente pelo corredor do ônibus enquanto um grupo de passageiros, percebendo a cena, corria a acudir a menina: "Você está bem?", "Tá machucada?", "Esse homem é louco!", diziam. Mariana disse a todos estar bem, e cada um foi voltando, a resmungar, a seus lugares, guardando um pouco de atenção à menina que, estranhamente, viajava sozinha. De fato, Mariana parecia bem: apesar dos cabelos desgrenhados, não havia marcas em seu pescoço, indicando que talvez a agressão fora algo mais assustador do que doloroso.  Eram todas impressões, e mesmo Mariana não sabia dizer onde e se doía; estava assustada, procurando algum significado para o que acabara de acontecer. O homem já estava longe, bem longe, sem que qualquer passageiro ou funcionário tenha manifestado a intenção de persegui-lo. Durante alguns poucos minutos, a impressão era de que, nos lugares próximos ao de Mariana, as conversações passaram a ser sobre aquele homem considerado louco; havia quem manifestasse ódio e desejo de feri-lo, e era curioso que o desejo das pessoas de machucá-lo era superior à preocupação com a menina; dali a dez minutos o ônibus partiria e cada um daquelas testemunhas do ocorrido substituiria a cena bizarra por outros pensamentos mais apropriados, porquanto mais úteis: os boletos, as mágoas, a fome, o sono, os desejos de cada um. Menos para Mariana, que dali pra frente nunca esqueceria o episódio, em busca de algum sentido. Houvesse uma forma de contabilizar o raciocínio, houvesse a profissão de contador de pensamentos, o Senhor Anselmo (chamemo-lo assim) surpreenderia-se com a dificuldade de organizar as ideias de sua cliente Mariana, e provavelmente não esconderia sua surpresa em constatar que nada havia de rancor ou ódio ali a respeito do que acontecera (certamente estaria ele, em vista de seu ofício, acostumado a lidar com mágoas e maldades provindas das cabeças de sua clientela, seja ela adulta ou infante): os pensamentos marianescos naquela hora compunham estranhas flora e fauna; antes de tudo ela pensava no porquê havia pessoas a fazer mal às outras sem motivo algum, antes de tudo ela pensava nas estrelas de rock que se contorciam no palco, cada noite uma cidade diferente do mundo cantando sempre as mesmas músicas da turnê em suas apertadas roupas multicoloridas; deus do céu, os cantores não se cansavam de cantar sempre as mesmas músicas? como não enlouqueciam?; pensava também Mariana que aquele homem era sozinho; pensava Mariana que cada pessoa tinha um cheiro diferente, mas que, no fundo, em certas horas, tinham todos, ricos e pobres, gênios e doidos varridos,  a mesma tendência a cheirar mal, nos peidos, nos suores, nas fezes, no amor e no medo. Anselmo, pobre Anselmo, encerrou o expediente daquele dia, mas levou pra casa a cisma; antes de dormir, provavelmente virou-se para para sua esposa (chamemo-la Soraia, todo mundo tem quer ter um nome, não importa se viva ou morta, rica ou pobre, real ou inventada) a dizer: "Soraia, é muito estranho, pois em nenhum momento do dia ela desejou mal a ele, não quis se vingar, não desejou que sequer se machucasse. Adolescentes são o diabo, Soraia, não entendo porquê essa daqui não é." "Vai dormir, Anselmo, e não enche o saco", disse Soraia, puxando pra si um pouco mais a coberta. Nessa hora, alta noite, Mariana provavelmente já dormisse, o assento ao seu lado vazio, a sonhar com bichos, pessoas, cheiros e estrelas da música

20 de abril de 2018

Kudriavka



Laika, a primeira mulher,
contempla a Terra do planeta SemNome
enquanto rói, preguiçosa,
o osso do último homem

nem a primeira nem a última
a ser mandada pro espaço
ontem mesmo, em qualquer rua,
partiu mais uma num esputinique

Laika, minha mãe,
a procurar calor
pelas ruas de Moscou,
Laika Franco,
a morrer todo dia
pelas ruas do Rio,

Laika Frank,
Laika Freak,
Laika Frio

Laika, a primeira cachorra,
contempla a dança de infinitos satélites
que o homem lançou, desperado
a qualquer marte que servisse de apoio,
enquanto coça, prazerosa, sua pulga de estimação

Amaram mal os homens, como um serviço
amaram mal os planetas
como mal amaram suas mulheres e mães

Mas Kudriavka, a primeira anja,
não pensa nessas coisas 
no planeta SemNome,
seu reino particular

Laika, lá, em pleno estado Laiko,
corre e ladra e brinca, livre, o dia todo
e à noite adormece
dando patadas no ar

15 de abril de 2018

tô só
por ti
téo

sapoti

30 de março de 2018

Antes

I

até tarde da noite
antes de dormir
kauan faz um stencil
e pensa no devir

nada concreto:
um barco atravessa um traço
leve, negro traço
eis tudo que restou
das noites de antes

como ele
muito dantes, há três mil grécias
poetas distantes
homeros virgílios e dantes
em vigília, ergueram taças
umedeceram penas e,
anacreontes de ontem,
criaram invisível trilha
entre o sentido e o escrito

o coração virado sempre pra parede
contempla o branco demoradamente
(nele o barco em sua negra marola)
a procurar,
antes do porvir, sua ruína
antes do papel, os pensamentos

noite contra noite, kauan e o ofício de levar a cabo a espera
  - designer de anteriores -
a reconstruir, toda noite, o passado
em busca de novos versos
versões felizes para o doído
e nunca olvidado

II

muito antes do corpo sobre a cama,
o prazer da linguagem

bem antes do caminho pra casa,
sem rosto amigo e estrela-guia,
bem antes dos estranhos corredores,
de alheias casas,
os acordos da linguagem

dois dias por dia,
a saldar e contrair
linguísticas dívidas
de deliciosa mora

correm as pessoas para cá e lá
a trabalhar, dentro do corpo,
vestidos para os desejos
e em cada palavra só o vestígio
do que querem realmente

quando se cansam do verdadeiro prazer
de repente
(para se descansar a língua da linguagem)
deitam-se à cama os homens
e põem-se como gatos
a se lamberem os corpos

III

o que vai ser desse agora
trabalho, aposta ou feitiço
depende do que foi o antes
com seus atropelos e prejuízos

há muitos anos,
onde hoje é o corpo dessa mulher
havia um lote de terra
susserania hereditária
onde lá mil outras morreram
para que esta
decididamente
atravesse a rua apesar do movimento dos carros

há muitos anos, todos os dias
duas mãos se apertam no escuro
em busca de um novo antes
distinto daqueles outros
com seus acertos, vacilos, rompantes

sem recalque, sem saudade:
um antes para ter de onde se ir
e para se ter a quem contar

casca com que se possa
sair à noite para a festa
roupa que se possa
trajar no dia de seu mais novo nascimento

24 de janeiro de 2018

Onde a Tainha Antonieta descreve seu cotidiano e revela segredos e sabores de bolacha marianescos

Mariana é a menina mais interessante do mundo da terra e das águas. Mesmo que me oferecessem um luxuoso coral nas Bahamas, ainda sim preferiria morar aqui em Itajaí com ela. Nas profundezas do Caribe, não posso ouvir Guns N' Roses na caixinha de som falsificada dela, muito menos assistir às brigas diárias entre mãe e filha. Não sou sádica; o que eu gosto é de observar as pessoas, e não acho que há lugar melhor do que essa casa apertada onde vivo e onde - parece - só aos gritos se é ouvido. Porque, quanto mais aperto passa uma pessoa, mais ela aprende. Algo parecido se dá com os peixes: se um pexuxo é fisgado e consegue escapar, volta como mestre dos demais. Conheço uma tanhota de Laguna que afirma ter escapado de 54 tarrafas e 200 varas de pescar. E as tanhotas não costumam mentir. Quem mente mais no mundo marinho são os bagres e os namorados.

Gosto da espontaneidade da Mariana, de sua displicência: ela tem um jeito torto de viver a vida que torna impossível prever seus movimentos. Quer dizer, eu sei que ela acorda ali pelas sete, se arruma rapidamente e vai a pé pra escola. eu sei que ela almoça perto da uma hora. Que, à tarde, toma banho, faz tarefa, fica olhando que nem uma boba fotos de modelos no Instagram até as quatro, quando parte com a mãe montar o trailer. Mas isso diz pouco ou quase nada de quem Mariana é: nas dobras e falhas da rotina dela é que se enxerga o que ela é. Por exemplo, entre uma aula e outra, Mariana nunca conversa ou mexe no celular, até porque ela não tem um. Ela fica fantasiando coisas: um mundo no qual as pessoas voam,  ou um mundo no qual ela pode ser invisível e chutar a canela dos clientes rudes que são grosseiros com sua mãe no carrinho lanche.  Um mundo no qual barcos não afundam e peixes de pelúcia falam. Uma vez, numa rara tarde de folga, ela simulou uma fala minha enquanto me segurava diante de si e foi bizarro

-- Oi meu nome é Antonieta e eu adoro nadar com minhas amigas baleias e golfinhas...
-- BITCH ME RESPEITA E EU LÁ GOSTO DE GOLFINHOS
-- eu gosto da Mariana e acompanho ela em todas as suas aventuras...
-- OWN, isso é verdade.
-- ... mas agora o que mais quero é um bom banho
-- AH NÃO. Mano, eu fui feita na China, você não leu a etiqueta? MARIANA APARECIDA DA SILVA EU NAO GOSTO DE BANHO, ME DESBOTA DESGRAÇA

Queria muito poder me comunicar com ela.

Mariana também se dá o luxo de guardar segredos. Luxo porque não há ninguém interessado em seus pensamentos íntimos, mas mesmo assim, ela os guarda com cuidado. Se tudo sobre ela é desconhecido e ignorado pelo mundo, há uma parte ainda mais desconhecida, que ela chama de segredo. Antes de dormir, todo dia, confere se nenhuma luz foi lançada sobre os desejos que ela não sabe muito bem nomear. E que desejos são esses? Ah...

Ela está sempre entrando, do jeito dela, dentro das outras pessoas. Se vê, da janela do ônibus, uma senhora bater o carro e dele sair apavorada para conversar com o outro motorista envolvido, Mariana se põe a pensar o que estaria sentindo a mulher. O ônibus faz uma curva mas Mariana segue com a senhora lá na avenida a sentir-se atarantada e insegura. Mariana se pergunta se o carro é da mulher, se ele tem seguro, se ela estava atrasada para o trabalho ou para buscar os filhos na creche. E se for uma víbora, uma pessoa com modos de bagre? Mariana parte sempre da ideia de que as pessoas são boas. Há um tempo atrás, o professor de Filosofia dela, Maurílio, deu uma aula rápida sobre Rousseau e a tese do Bom Selvagem mas ela faltou nesse dia porque estava com diarreia. Mesmo assim, por ver muitas pessoas o tempo todo no carrinho lanche, sobretudo por conta da imagem que faz de seu pai, Mariana acredita que as pessoas são boas; outra coisa é que as estraga. E o que são essas coisas? Ah...

Para entender que coisas são essas, seria preciso contar a história de amor e desamor entre Anselmo e Mariza, os pais da Mariana. Eu tô aqui nessa casa desde que ela tinha sete anos. Foi no sétimo aniversário que ela ganhou do pai esse presente maravilhoso que sou depois de uma viagem dele a trabalho. Desde então, assisto a uma série de ausências: a casa esteve vazia em quase todo o tempo: o pai de Mariana mal parava em casa, pois quando não estava no mar, estava no bar, caindo pelos cantos. A menina está sempre na escola, ou trabalhando, e no pouco tempo livre que sobra, ouve música e assiste séries abraçada comigo. Dona Mariza se resume a trabalho e é uma pena que não haja um narrador para contar quem é ela e de onde veio. As histórias mudam quando nascemos onde dói e porque dói em cada personagem. E, se não mudam, é porque tem água viva nessa praia, ou seja, tem coisa errada aí. Afinal, os narradores em geral são preguiçosos ou parciais e mostram sempre o querem mostrar, que nem o telejornal ou as fotos das pessoas em redes sociais. Não posso contar aqui a história dos pais de Mariana porque o narrador não permitiria, mas digamos que não era feliz, que havia briga e um pouco de violência. Digamos que eu deveria amar Seu Anselmo porque ele é o pai da Mariana e, além disso, ele que me trouxe para essa casa, mas eu não amo, por tudo que ele fez... ou não conseguiu fazer. Mariana, sim. Apesar de tudo que já ouviu sobre ele, as queixas e críticas da sua mãe e das irmãs dela, Mariana gosta muito dele e sente sua falta todos os dias e eu sei que ela me aperta às vezes pensando nele. Eu sei que, se ela me leva pra todo canto, é por isso - mas digo aos meus amigos que é por sou demais, porque sou uma estrela. É, minha gente, até mesmo peixes de pelúcia célebres como eu têm problemas de autoestima às vezes. E olha que eu nem posso comer chocolate, a minha boca é costurada num eterno sorriso. Nessas horas de estresse, fantasio com bagres trancafiados em tanques de pesque-pague ou então ouço música para ficar feliz. Meu artista preferido é o Slash, guitarrista do Guns. Mariana gosta muito de música pop e prefere Rihanna a Beyonce. É tão bom quando ela se esquece dos problemas e, no quarto a portas fechadas, dança ao som do rádio enquanto me joga pra lá e pra cá, abusando da minha espinha dorsal de pelúcia 

quando estou com ela tenho pensamentos selvagens
                                                                                      wha wha wha.

Mariana odeia biscoito recheado  de Morango, ainda mais daquela marca barata que sua mãe insiste em comprar. Entre os biscoitos baratos, gosta do de maizena, ainda mais se tiver doce de leite na geladeira. Ui.

Mariana tem vergonha do seu corpo. Uma tarde, enquanto voltava a pé pra escola, duas colegas a perseguiram até prensá-la num portão de ferro vizinho. Empurram-na, chamaram-se de gorda, feia, balofa. Por quê? Ah... as pessoas são estranhas. Naquele dia, ao me tirar da mochila, ela me encharcou com suas mãos suadas e chorosas. Eu nunca deixo de sorrir, mas quando me entristeço, um dos pontos meus descostura. Naquele dia, abriu-se um rombo no meu pobre rabo, revelando um pouco do meu algodoado recheio. Desde então, sigo sendo uma tainha bonita charmosa alegre cintilante porém levemente arrombada. Alô, Dona Mariza e suas agulhas, por favor me notem. Mas onde eu estava?

Ah, acho que esse segredo é importante pra história: há cinco dias, Mariana, calmamente, planeja sua fuga de casa. ela quer ir pro mar.

13 de janeiro de 2018

há por aí uma pessoa para quem não posso ligar. a qualquer hora e qualquer dia, não dá linha. se me passo por outra ou por outro, se ligo pela internet ou telepatia, não dá linha. se volto no tempo e chego à época em que havia orelhões ou telefonistas, ainda sim para ela não posso ligar. as fichas emperram, uma a uma, as telefonistas começam a rir, dente por dente, e desligam o telefone à primeira palavra. pombos correios não conseguem chegar à calçada sem ser abatidos e nem a maior garrafa do mundo resistiria à missão de entregar uma carta sem rachar-se. se mando um sinal de fumaça, o vento o apaga. às vezes ela me liga e marcamos um café ali naquela lanchonete do lado do Terminal. 

*

há, em determinada parte do Oceano, um ponto irrastreável. nenhum satélite ou radar o alcança. nenhum instrumento de orientação utilizado pelos marinheiros aponta a existência: um pequeno quadrado negro aponta o puro nada. os barcos passam por perto sem se dar conta. trata-se do único ponto possível para se esconder no pega-pega que se joga aos 11 anos num final de tarde dominical sem ser descoberto pelos amigos. não sendo mar e tão pequeno (tem menos de um metro quadrado), poderia alocar um banco, desses para onde brasileiros enviam dinheiro ilegal. de vez em quando, sem que nenhum pesqueiro ou náufrago perceba, salta nesse ponto um peixe de ouro.

*
há no coração da floresta uma tribo sem nome. ao acordar, seus moradores saltam das redes apressados e atentos ao último dia de sua comunidade. mas nem por isso descumprem a rotina; para se desaparecer por completo do mapa é preciso muita organização e método. em seu último dia, cantam, dançam, louvam aos deuses e pedem clemência, na esperança de que mais um dia seja concedido. às pressas desfazem-se de suas atuais relações e organizam novos casamentos que formam uma noite furiosa de amor a fazer até mesmo a Lua descer por um fio direto à cama. as crianças dormem abraçadas e com medo enquanto os velhos cantam pela última vez. quando despertam, saltam das redes apressados e atentos a mais um último dia de sua comunidade.

*

há uma rede de linhas emergenciais a tocar durante toda a madrugada. um bombeiro alto de rosto cansado e barba por fazer procura atender a mais de um ao mesmo tempo e ouvir os interlocutores atentamente. cada voz, desesperada a sua maneira, tenta convencê-lo da importância do reparo e material de que dispõe. o bombeiro se angustia e chega a disparar um jato de água acidentalmente enquanto maneja os telefones. não há viaturas suficientes e o bombeiro está velho e cansado. para ganhar atenção, as vozes são criativas nos pedidos e dão detalhes mirabolantes. alguns, desavisados, usam estratégias inadequadas para a idade do bombeiro. este se deleita com alguns dos casos e tenta memorizá-los para um dia publicar no jornal e ser famoso. enquanto isso a cidade queima.

*
há uma mosquita musculosa chamada Roberta. sua história não agradou à editoria da seção de literatura infantil e por isso seu autor, Carlos Camilo, jogou a história fora como se a pobre Roberta fosse desprezível como um Babadook. embora carregue uma história de superação e fortalecimento das pernas, Roberta sofre mesmo hoje, a voar baixo e cansada, desviando dos pés de Soraia e Carlos Camilo, na quitinete por eles alugada. Roberta é uma Culex qualquer sem perspectiva de vida, sem um dengo ou dengue qualquer. Carlos Camilo e Soraia não se dão conta das semelhanças entre todos e preferem dar atenção a webamigos pouco empáticos.

1 de janeiro de 2018

Capítulo 2

onde milhares de hambúrgueres são fritos, e motoboys são hospitalizados

Uma folha amarela com diversos campos para preencher e - lá embaixo - uma linha para a assinatura do cliente. O que significa atacado e varejo? atacado parece algo violento, rápido. varejo lembra mosca varejeira... não, nada a ver.

-- Mariana, assina logo e devolve pro homem essa nota fiscal, menina!

O vendedor, que já havia descarregado da caminhonete as caixas com hambúrgueres e apenas aguardava a liberação da nota, parecia tranquilo; era a mãe de Mariana que a apressava, pois havia muitos lanches por fazer e só as duas trabalhavam no carrinho. Ele ficava instalado à frente de uma igreja, e como havia missa às cinco, e às cinco e meia diversos alunos saíam de uma escola estadual ali próxima, Mariana e Mariza costumavam abri-lo às quatro da tarde. Atendiam até meia-noite - havia ainda a limpeza da chapa e a volta pra casa, que faziam as duas dormirem quase todos os dias de madrugada. Segunda era o único dia de folga das duas, rotina cumprida por elas há dois anos, quando elas chegaram em Itajaí.

-- Moço, o que é varejo?
-- Ah. É o tipo de compra simples, por unidade. Já o atacado é quando você adquire as coisas em caixa, em maior quantidade. E aí fica mais barato, entende?
-- Entendi. Obrigado.

O vendedor sorriu, despediu-se das duas e foi embora. Dona Mariza quase não sorria; aos clientes e fornecedores, por exemplo, reservava uma expressão fechada e estranha, uma tentativa de ser serena e receptiva mas que não funcionava devido às inúmeras preocupações de mulher, de mulher mãe, de mulher mãe pobre, de mulher mãe pobre negra, de mulher mãe pobre negra trabalhadora e AH MEU DEUS

-- nossa sinhora, outro motoqueiro!!!! - Dona Mariza saiu do carrinho e aproximou-se da calçada. Mariana, assustada, continuou onde estava, atrás do balcão, ainda com a cópia da nota fiscal na mão. no, ar o cheiro dos hambúrgueres na chapa e os gritos da multidão que se aglomerava em torno da rua.

-- ele tá se levantando, ajuda ele, povo! - gritou uma senhora que saíra da igreja ao ouvir o estrondo. Ninguém sabia explicar o que houvera: alguém viu o motoqueiro derrapar e rolar pelo chão, enquanto sua moto deslizava na outra direção até acertar os paralelepípedos da calçada aposta àquela onde se encontrava o carrinho de lanches Maresia. O homem ferido conseguira levantar-se, mas parecia atordoado e, já na calçada, tinha dificuldade de responder às perguntas dos curiosos. Alguém chamou a ambulância. Outro alguém, que por sinal era o único cliente do carrinho no momento, sentiu cheiro de queimado AH MEU DEUS 

-- os hambúrgueres, Mariana!!!!

A menina acordou de seus devaneios e virou-se pra chapa: nela havia dois hambúrgueres completamente tostados, o queijo por cima havia secado devido ao superaquecimento; a fumaça aumentara e irritava os olhos. Em movimentos rápidos, ela desligou a chapa e jogou um pouco de água sobre os hambúrgueres, TSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS

-- LEPT LEPT - foi assim que soou o barulho dos dois tapas em sequência que ela levou no braço. Sua mãe voltara correndo para o carrinho e, antes de assumir o controle das coisas e da chapa, punira a menina por mais um desastramento.

-- No que você está pensando, Mariana? Meu deus do céu, você quer me enlouquecer desse jeito.

Ela não soube o que responder. Sabia que sua mãe não tinha paciência para os relatos de sua imaginação, considerada por ela tão inútil. Diante de uma coisa, Mariana estava sempre pensando em outra coisa, como se vivesse noutro tempo, dessincronizada. Dessa vez, Mariana pensava que seu pai havia um dia também sofrido um acidente. Mas não como esse, em frente ao carrinho. Não foi de moto, seu pai não rolou pela rua, nem contou com ajuda de pessoas que por lá passavam. E o mais importante: ela não estava lá na hora. Mas foi um acidente. Pelo menos foi essa a notícia que Mariza recebeu há cerca de dois anos atrás, quando os três viviam em Garopaba, numa comunidade localizada na Praia da Silveira. Foi de barco que Anselmo morreu, afundando na água, sem contar com a ajuda de ninguém, pois seus companheiros também faleceram. A Marinha informou que antes de partir-se ao meio e afundar, o barco pegara fogo após falhas mecânicas. Mas pouco daquilo importava diante do sentimento de perda e vazio. Era nisso que Mariana pensava, mas não dessa forma: vislumbres desorganizados, imagem sobrepondo-se a outra imagem, o mar agitado, pedaços de madeira com fogo sobre o mar, resistindo por minutos até que as ondas o apagassem, possíveis pensamento e frases ditas pelo pai, era nisso e muito mais que Mariana pensava.  Mariana estava sempre pensando em outra coisa e em muito mais do que era preciso. O resultado eram frequentes hambúrgueres queimados na chapa, clientes irritados com os pedidos que teriam de ser refeitos, e LEPT LEPT, TSS TSS, LEPT LEPT, TSS TSS.

O motoboy já estava sentado na ambulância, parecendo tranquilo e inteiro, e uma parcela dos curiosos ainda permanecia ali, de pé, a cochichar e contar e recontar suas versões para o ocorrido. Alguns, mais exaltados, clamavam por medidas de segurança na via, mas a revolta logo se apagava e  eles vvoltavam a seus afazeres calmos de sempre. Já recuperada dos tapas e broncas, Mariana voltara ao trabalho, a chapa novamente ligada e limpa, embalando dois hambúrgueres para viagem. Mas ainda pensava em acidentes. Um pouco no motoboy desconhecido (era um rapaz jovem, de uns vinte anos) e um pouco no seu pai pescador (era um homem jovem, tinha 34 anos quando o náufrágio ocorreu; Mariana tinha 12). Na sua cabeça, sucediam-se imagens de água e asfalto, bem como o desejo de conter todos os acidentes do mundo e defender as pessoas e suas famílias. Nesse momento, quantos motoqueiros estão caindo nessa cidade, no estado, no Brasil? E no mundo (Mariana não sabia dizer se havia motos  e motoboys em todos os países, mas certamente havia em vários)? E motogirls? Mariana nunca vira alguma. Tomara que não existessem; deus que a livrasse de uma jovem motogirl derrapando no asfalto, deve doer demais, pensava Mariana. Enquanto dava um nó na sacola, sentindo outro nó na garganta, Mariana pensava que centenas (ou milhares?) de motoboys caíam, tendo culpa ou não, todos os dias pelo mundo. Era como se os motoboys, reunidos em um único ser, nunca deixassem de cair na infinita rua do mundo, como se fosse uma imagem GIF, dessas que as pessoas compartilham nas redes sociais (Mariana particularmente amava GIFs de cachorro e de bebês sorrindo). A menina também pensava em naufrágios e na sua frágil ocorrência: o mar era tão imenso... talvez mais imenso que todas as ruas juntas, mas ela quase não ouvia falar de navios afundando. Parecia que só seu pai tivera esse azar. Seu pai e aquele casal do Titanic, filme que assistira uma vez de madrugada escondida da mãe.

A ambulância já partira, assim como o cliente cujo pedido foi refeito devido ao acidente na chapa. Sua mãe parecia mais calma, mas ainda mantinha sua expressão carregada, como se houvesse algum tipo de peso sobre suas sobrancelhas e fosse preciso sustentá-lo. Mariana passava pano umedecido com álcool sobre as mesas, tentando não pensar em náufrágios e derrapagens. Mas, se conseguia abstrair-se e deixar de pensar em algo, era porque outro pensamento, às vezes até mais insistente e triste, se aproximava. Dessa vez, Mariana pensava na dupla Atacado e Varejo. A garota concluía que seus pensamentos ruins vinham sempre em atacado, em caixas, aos montes. Enquanto isso, as alegrias vinham no varejo, varejeiras, uma aqui e outra ali. Poucas unidades.

-- Se você passar mais um pouco de pano nessa mesa, vai abrir um buraco nela, Mari. Venha cá, venha.

Era sua mãe chamando, enquanto limpava as mãos no avental já encardido. Trazia sua expressão mais leve possível (ainda sim era séria) e um abraço apertado para aquela filha tão atrapalhada, mas tão amada. Abraços assim eram raros. Mariana aproveitou esse momento de varejo e agarrou as costas da mãe com força, enquanto o sol naufragava por detrás dos prédios.