24 de janeiro de 2018

Onde a Tainha Antonieta descreve seu cotidiano e revela segredos e sabores de bolacha marianescos

Mariana é a menina mais interessante do mundo da terra e das águas. Mesmo que me oferecessem um luxuoso coral nas Bahamas, ainda sim preferiria morar aqui em Itajaí com ela. Nas profundezas do Caribe, não posso ouvir Guns N' Roses na caixinha de som falsificada dela, muito menos assistir às brigas diárias entre mãe e filha. Não sou sádica; o que eu gosto é de observar as pessoas, e não acho que há lugar melhor do que essa casa apertada onde vivo e onde - parece - só aos gritos se é ouvido. Porque, quanto mais aperto passa uma pessoa, mais ela aprende. Algo parecido se dá com os peixes: se um pexuxo é fisgado e consegue escapar, volta como mestre dos demais. Conheço uma tanhota de Laguna que afirma ter escapado de 54 tarrafas e 200 varas de pescar. E as tanhotas não costumam mentir. Quem mente mais no mundo marinho são os bagres e os namorados.

Gosto da espontaneidade da Mariana, de sua displicência: ela tem um jeito torto de viver a vida que torna impossível prever seus movimentos. Quer dizer, eu sei que ela acorda ali pelas sete, se arruma rapidamente e vai a pé pra escola. eu sei que ela almoça perto da uma hora. Que, à tarde, toma banho, faz tarefa, fica olhando que nem uma boba fotos de modelos no Instagram até as quatro, quando parte com a mãe montar o trailer. Mas isso diz pouco ou quase nada de quem Mariana é: nas dobras e falhas da rotina dela é que se enxerga o que ela é. Por exemplo, entre uma aula e outra, Mariana nunca conversa ou mexe no celular, até porque ela não tem um. Ela fica fantasiando coisas: um mundo no qual as pessoas voam,  ou um mundo no qual ela pode ser invisível e chutar a canela dos clientes rudes que são grosseiros com sua mãe no carrinho lanche.  Um mundo no qual barcos não afundam e peixes de pelúcia falam. Uma vez, numa rara tarde de folga, ela simulou uma fala minha enquanto me segurava diante de si e foi bizarro

-- Oi meu nome é Antonieta e eu adoro nadar com minhas amigas baleias e golfinhas...
-- BITCH ME RESPEITA E EU LÁ GOSTO DE GOLFINHOS
-- eu gosto da Mariana e acompanho ela em todas as suas aventuras...
-- OWN, isso é verdade.
-- ... mas agora o que mais quero é um bom banho
-- AH NÃO. Mano, eu fui feita na China, você não leu a etiqueta? MARIANA APARECIDA DA SILVA EU NAO GOSTO DE BANHO, ME DESBOTA DESGRAÇA

Queria muito poder me comunicar com ela.

Mariana também se dá o luxo de guardar segredos. Luxo porque não há ninguém interessado em seus pensamentos íntimos, mas mesmo assim, ela os guarda com cuidado. Se tudo sobre ela é desconhecido e ignorado pelo mundo, há uma parte ainda mais desconhecida, que ela chama de segredo. Antes de dormir, todo dia, confere se nenhuma luz foi lançada sobre os desejos que ela não sabe muito bem nomear. E que desejos são esses? Ah...

Ela está sempre entrando, do jeito dela, dentro das outras pessoas. Se vê, da janela do ônibus, uma senhora bater o carro e dele sair apavorada para conversar com o outro motorista envolvido, Mariana se põe a pensar o que estaria sentindo a mulher. O ônibus faz uma curva mas Mariana segue com a senhora lá na avenida a sentir-se atarantada e insegura. Mariana se pergunta se o carro é da mulher, se ele tem seguro, se ela estava atrasada para o trabalho ou para buscar os filhos na creche. E se for uma víbora, uma pessoa com modos de bagre? Mariana parte sempre da ideia de que as pessoas são boas. Há um tempo atrás, o professor de Filosofia dela, Maurílio, deu uma aula rápida sobre Rousseau e a tese do Bom Selvagem mas ela faltou nesse dia porque estava com diarreia. Mesmo assim, por ver muitas pessoas o tempo todo no carrinho lanche, sobretudo por conta da imagem que faz de seu pai, Mariana acredita que as pessoas são boas; outra coisa é que as estraga. E o que são essas coisas? Ah...

Para entender que coisas são essas, seria preciso contar a história de amor e desamor entre Anselmo e Mariza, os pais da Mariana. Eu tô aqui nessa casa desde que ela tinha sete anos. Foi no sétimo aniversário que ela ganhou do pai esse presente maravilhoso que sou depois de uma viagem dele a trabalho. Desde então, assisto a uma série de ausências: a casa esteve vazia em quase todo o tempo: o pai de Mariana mal parava em casa, pois quando não estava no mar, estava no bar, caindo pelos cantos. A menina está sempre na escola, ou trabalhando, e no pouco tempo livre que sobra, ouve música e assiste séries abraçada comigo. Dona Mariza se resume a trabalho e é uma pena que não haja um narrador para contar quem é ela e de onde veio. As histórias mudam quando nascemos onde dói e porque dói em cada personagem. E, se não mudam, é porque tem água viva nessa praia, ou seja, tem coisa errada aí. Afinal, os narradores em geral são preguiçosos ou parciais e mostram sempre o querem mostrar, que nem o telejornal ou as fotos das pessoas em redes sociais. Não posso contar aqui a história dos pais de Mariana porque o narrador não permitiria, mas digamos que não era feliz, que havia briga e um pouco de violência. Digamos que eu deveria amar Seu Anselmo porque ele é o pai da Mariana e, além disso, ele que me trouxe para essa casa, mas eu não amo, por tudo que ele fez... ou não conseguiu fazer. Mariana, sim. Apesar de tudo que já ouviu sobre ele, as queixas e críticas da sua mãe e das irmãs dela, Mariana gosta muito dele e sente sua falta todos os dias e eu sei que ela me aperta às vezes pensando nele. Eu sei que, se ela me leva pra todo canto, é por isso - mas digo aos meus amigos que é por sou demais, porque sou uma estrela. É, minha gente, até mesmo peixes de pelúcia célebres como eu têm problemas de autoestima às vezes. E olha que eu nem posso comer chocolate, a minha boca é costurada num eterno sorriso. Nessas horas de estresse, fantasio com bagres trancafiados em tanques de pesque-pague ou então ouço música para ficar feliz. Meu artista preferido é o Slash, guitarrista do Guns. Mariana gosta muito de música pop e prefere Rihanna a Beyonce. É tão bom quando ela se esquece dos problemas e, no quarto a portas fechadas, dança ao som do rádio enquanto me joga pra lá e pra cá, abusando da minha espinha dorsal de pelúcia 

quando estou com ela tenho pensamentos selvagens
                                                                                      wha wha wha.

Mariana odeia biscoito recheado  de Morango, ainda mais daquela marca barata que sua mãe insiste em comprar. Entre os biscoitos baratos, gosta do de maizena, ainda mais se tiver doce de leite na geladeira. Ui.

Mariana tem vergonha do seu corpo. Uma tarde, enquanto voltava a pé pra escola, duas colegas a perseguiram até prensá-la num portão de ferro vizinho. Empurram-na, chamaram-se de gorda, feia, balofa. Por quê? Ah... as pessoas são estranhas. Naquele dia, ao me tirar da mochila, ela me encharcou com suas mãos suadas e chorosas. Eu nunca deixo de sorrir, mas quando me entristeço, um dos pontos meus descostura. Naquele dia, abriu-se um rombo no meu pobre rabo, revelando um pouco do meu algodoado recheio. Desde então, sigo sendo uma tainha bonita charmosa alegre cintilante porém levemente arrombada. Alô, Dona Mariza e suas agulhas, por favor me notem. Mas onde eu estava?

Ah, acho que esse segredo é importante pra história: há cinco dias, Mariana, calmamente, planeja sua fuga de casa. ela quer ir pro mar.

13 de janeiro de 2018

há por aí uma pessoa para quem não posso ligar. a qualquer hora e qualquer dia, não dá linha. se me passo por outra ou por outro, se ligo pela internet ou telepatia, não dá linha. se volto no tempo e chego à época em que havia orelhões ou telefonistas, ainda sim para ela não posso ligar. as fichas emperram, uma a uma, as telefonistas começam a rir, dente por dente, e desligam o telefone à primeira palavra. pombos correios não conseguem chegar à calçada sem ser abatidos e nem a maior garrafa do mundo resistiria à missão de entregar uma carta sem rachar-se. se mando um sinal de fumaça, o vento o apaga. às vezes ela me liga e marcamos um café ali naquela lanchonete do lado do Terminal. 

*

há, em determinada parte do Oceano, um ponto irrastreável. nenhum satélite ou radar o alcança. nenhum instrumento de orientação utilizado pelos marinheiros aponta a existência: um pequeno quadrado negro aponta o puro nada. os barcos passam por perto sem se dar conta. trata-se do único ponto possível para se esconder no pega-pega que se joga aos 11 anos num final de tarde dominical sem ser descoberto pelos amigos. não sendo mar e tão pequeno (tem menos de um metro quadrado), poderia alocar um banco, desses para onde brasileiros enviam dinheiro ilegal. de vez em quando, sem que nenhum pesqueiro ou náufrago perceba, salta nesse ponto um peixe de ouro.

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há no coração da floresta uma tribo sem nome. ao acordar, seus moradores saltam das redes apressados e atentos ao último dia de sua comunidade. mas nem por isso descumprem a rotina; para se desaparecer por completo do mapa é preciso muita organização e método. em seu último dia, cantam, dançam, louvam aos deuses e pedem clemência, na esperança de que mais um dia seja concedido. às pressas desfazem-se de suas atuais relações e organizam novos casamentos que formam uma noite furiosa de amor a fazer até mesmo a Lua descer por um fio direto à cama. as crianças dormem abraçadas e com medo enquanto os velhos cantam pela última vez. quando despertam, saltam das redes apressados e atentos a mais um último dia de sua comunidade.

*

há uma rede de linhas emergenciais a tocar durante toda a madrugada. um bombeiro alto de rosto cansado e barba por fazer procura atender a mais de um ao mesmo tempo e ouvir os interlocutores atentamente. cada voz, desesperada a sua maneira, tenta convencê-lo da importância do reparo e material de que dispõe. o bombeiro se angustia e chega a disparar um jato de água acidentalmente enquanto maneja os telefones. não há viaturas suficientes e o bombeiro está velho e cansado. para ganhar atenção, as vozes são criativas nos pedidos e dão detalhes mirabolantes. alguns, desavisados, usam estratégias inadequadas para a idade do bombeiro. este se deleita com alguns dos casos e tenta memorizá-los para um dia publicar no jornal e ser famoso. enquanto isso a cidade queima.

*
há uma mosquita musculosa chamada Roberta. sua história não agradou à editoria da seção de literatura infantil e por isso seu autor, Carlos Camilo, jogou a história fora como se a pobre Roberta fosse desprezível como um Babadook. embora carregue uma história de superação e fortalecimento das pernas, Roberta sofre mesmo hoje, a voar baixo e cansada, desviando dos pés de Soraia e Carlos Camilo, na quitinete por eles alugada. Roberta é uma Culex qualquer sem perspectiva de vida, sem um dengo ou dengue qualquer. Carlos Camilo e Soraia não se dão conta das semelhanças entre todos e preferem dar atenção a webamigos pouco empáticos.

1 de janeiro de 2018

Capítulo 2

onde milhares de hambúrgueres são fritos, e motoboys são hospitalizados

Uma folha amarela com diversos campos para preencher e - lá embaixo - uma linha para a assinatura do cliente. O que significa atacado e varejo? atacado parece algo violento, rápido. varejo lembra mosca varejeira... não, nada a ver.

-- Mariana, assina logo e devolve pro homem essa nota fiscal, menina!

O vendedor, que já havia descarregado da caminhonete as caixas com hambúrgueres e apenas aguardava a liberação da nota, parecia tranquilo; era a mãe de Mariana que a apressava, pois havia muitos lanches por fazer e só as duas trabalhavam no carrinho. Ele ficava instalado à frente de uma igreja, e como havia missa às cinco, e às cinco e meia diversos alunos saíam de uma escola estadual ali próxima, Mariana e Mariza costumavam abri-lo às quatro da tarde. Atendiam até meia-noite - havia ainda a limpeza da chapa e a volta pra casa, que faziam as duas dormirem quase todos os dias de madrugada. Segunda era o único dia de folga das duas, rotina cumprida por elas há dois anos, quando elas chegaram em Itajaí.

-- Moço, o que é varejo?
-- Ah. É o tipo de compra simples, por unidade. Já o atacado é quando você adquire as coisas em caixa, em maior quantidade. E aí fica mais barato, entende?
-- Entendi. Obrigado.

O vendedor sorriu, despediu-se das duas e foi embora. Dona Mariza quase não sorria; aos clientes e fornecedores, por exemplo, reservava uma expressão fechada e estranha, uma tentativa de ser serena e receptiva mas que não funcionava devido às inúmeras preocupações de mulher, de mulher mãe, de mulher mãe pobre, de mulher mãe pobre negra, de mulher mãe pobre negra trabalhadora e AH MEU DEUS

-- nossa sinhora, outro motoqueiro!!!! - Dona Mariza saiu do carrinho e aproximou-se da calçada. Mariana, assustada, continuou onde estava, atrás do balcão, ainda com a cópia da nota fiscal na mão. no, ar o cheiro dos hambúrgueres na chapa e os gritos da multidão que se aglomerava em torno da rua.

-- ele tá se levantando, ajuda ele, povo! - gritou uma senhora que saíra da igreja ao ouvir o estrondo. Ninguém sabia explicar o que houvera: alguém viu o motoqueiro derrapar e rolar pelo chão, enquanto sua moto deslizava na outra direção até acertar os paralelepípedos da calçada aposta àquela onde se encontrava o carrinho de lanches Maresia. O homem ferido conseguira levantar-se, mas parecia atordoado e, já na calçada, tinha dificuldade de responder às perguntas dos curiosos. Alguém chamou a ambulância. Outro alguém, que por sinal era o único cliente do carrinho no momento, sentiu cheiro de queimado AH MEU DEUS 

-- os hambúrgueres, Mariana!!!!

A menina acordou de seus devaneios e virou-se pra chapa: nela havia dois hambúrgueres completamente tostados, o queijo por cima havia secado devido ao superaquecimento; a fumaça aumentara e irritava os olhos. Em movimentos rápidos, ela desligou a chapa e jogou um pouco de água sobre os hambúrgueres, TSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS

-- LEPT LEPT - foi assim que soou o barulho dos dois tapas em sequência que ela levou no braço. Sua mãe voltara correndo para o carrinho e, antes de assumir o controle das coisas e da chapa, punira a menina por mais um desastramento.

-- No que você está pensando, Mariana? Meu deus do céu, você quer me enlouquecer desse jeito.

Ela não soube o que responder. Sabia que sua mãe não tinha paciência para os relatos de sua imaginação, considerada por ela tão inútil. Diante de uma coisa, Mariana estava sempre pensando em outra coisa, como se vivesse noutro tempo, dessincronizada. Dessa vez, Mariana pensava que seu pai havia um dia também sofrido um acidente. Mas não como esse, em frente ao carrinho. Não foi de moto, seu pai não rolou pela rua, nem contou com ajuda de pessoas que por lá passavam. E o mais importante: ela não estava lá na hora. Mas foi um acidente. Pelo menos foi essa a notícia que Mariza recebeu há cerca de dois anos atrás, quando os três viviam em Garopaba, numa comunidade localizada na Praia da Silveira. Foi de barco que Anselmo morreu, afundando na água, sem contar com a ajuda de ninguém, pois seus companheiros também faleceram. A Marinha informou que antes de partir-se ao meio e afundar, o barco pegara fogo após falhas mecânicas. Mas pouco daquilo importava diante do sentimento de perda e vazio. Era nisso que Mariana pensava, mas não dessa forma: vislumbres desorganizados, imagem sobrepondo-se a outra imagem, o mar agitado, pedaços de madeira com fogo sobre o mar, resistindo por minutos até que as ondas o apagassem, possíveis pensamento e frases ditas pelo pai, era nisso e muito mais que Mariana pensava.  Mariana estava sempre pensando em outra coisa e em muito mais do que era preciso. O resultado eram frequentes hambúrgueres queimados na chapa, clientes irritados com os pedidos que teriam de ser refeitos, e LEPT LEPT, TSS TSS, LEPT LEPT, TSS TSS.

O motoboy já estava sentado na ambulância, parecendo tranquilo e inteiro, e uma parcela dos curiosos ainda permanecia ali, de pé, a cochichar e contar e recontar suas versões para o ocorrido. Alguns, mais exaltados, clamavam por medidas de segurança na via, mas a revolta logo se apagava e  eles vvoltavam a seus afazeres calmos de sempre. Já recuperada dos tapas e broncas, Mariana voltara ao trabalho, a chapa novamente ligada e limpa, embalando dois hambúrgueres para viagem. Mas ainda pensava em acidentes. Um pouco no motoboy desconhecido (era um rapaz jovem, de uns vinte anos) e um pouco no seu pai pescador (era um homem jovem, tinha 34 anos quando o náufrágio ocorreu; Mariana tinha 12). Na sua cabeça, sucediam-se imagens de água e asfalto, bem como o desejo de conter todos os acidentes do mundo e defender as pessoas e suas famílias. Nesse momento, quantos motoqueiros estão caindo nessa cidade, no estado, no Brasil? E no mundo (Mariana não sabia dizer se havia motos  e motoboys em todos os países, mas certamente havia em vários)? E motogirls? Mariana nunca vira alguma. Tomara que não existessem; deus que a livrasse de uma jovem motogirl derrapando no asfalto, deve doer demais, pensava Mariana. Enquanto dava um nó na sacola, sentindo outro nó na garganta, Mariana pensava que centenas (ou milhares?) de motoboys caíam, tendo culpa ou não, todos os dias pelo mundo. Era como se os motoboys, reunidos em um único ser, nunca deixassem de cair na infinita rua do mundo, como se fosse uma imagem GIF, dessas que as pessoas compartilham nas redes sociais (Mariana particularmente amava GIFs de cachorro e de bebês sorrindo). A menina também pensava em naufrágios e na sua frágil ocorrência: o mar era tão imenso... talvez mais imenso que todas as ruas juntas, mas ela quase não ouvia falar de navios afundando. Parecia que só seu pai tivera esse azar. Seu pai e aquele casal do Titanic, filme que assistira uma vez de madrugada escondida da mãe.

A ambulância já partira, assim como o cliente cujo pedido foi refeito devido ao acidente na chapa. Sua mãe parecia mais calma, mas ainda mantinha sua expressão carregada, como se houvesse algum tipo de peso sobre suas sobrancelhas e fosse preciso sustentá-lo. Mariana passava pano umedecido com álcool sobre as mesas, tentando não pensar em náufrágios e derrapagens. Mas, se conseguia abstrair-se e deixar de pensar em algo, era porque outro pensamento, às vezes até mais insistente e triste, se aproximava. Dessa vez, Mariana pensava na dupla Atacado e Varejo. A garota concluía que seus pensamentos ruins vinham sempre em atacado, em caixas, aos montes. Enquanto isso, as alegrias vinham no varejo, varejeiras, uma aqui e outra ali. Poucas unidades.

-- Se você passar mais um pouco de pano nessa mesa, vai abrir um buraco nela, Mari. Venha cá, venha.

Era sua mãe chamando, enquanto limpava as mãos no avental já encardido. Trazia sua expressão mais leve possível (ainda sim era séria) e um abraço apertado para aquela filha tão atrapalhada, mas tão amada. Abraços assim eram raros. Mariana aproveitou esse momento de varejo e agarrou as costas da mãe com força, enquanto o sol naufragava por detrás dos prédios.