I
MANÁ
Comunhão dos pecados cometidos na sacristia,
o jantar foi servido à hora consagrada.
Havia pão
vinho
frutas
sol
trigo
areia
Havia muito e a mesa estava muito alinhada
Mas nos olhos revoltosos dos convivas
estribilhava o desejo pela chegada do sentido
II
DECORAÇÃO
Sentaram-se muito cerimoniosos
Fitaram-se; emaranharam-se
Ninguém corou. A mesa continuou tateando às cegas.
Anjos e cruzes
quadros de Lorca
e poemas de Picasso
III
ELE
-- Seu nome é Tédio? Não seria Ódio?
-- Isso de ódio é coisa de poeta autor de operetas e folhetins.
-- Então, seu nome é Tédio...
-- Não.
-- ?
-- Hoje é Tédio. Amanhã Ódio. E depois Cansaço. E depois Amor-demais. E Chuva-de-verão. E Missa. E Andorinha. E Estopim.
-- ???
-- Não sou mistério. Pelo contrário: nu. Seu michê à vossa mercê. Sou todos os nomes.
(Ela pensa em soltar um oh! de surpresa, e iniciar uma defesa cristã pela coroa exclusivamente divina.)
Ao invés disso, um oh! de prazer.
Uma sineta vinda de não-sei-pra-quê toca.
Gargalhadas de tenores estilhaçam os quadros da Via Crúcis.
IV
ELA
Ele (sarcástico):
-- Você vem sempre aqui?
Ela (esforçando-se para manter o ar angelical, apesar da saia curtíssima e das coxas intimadoras):
-- Sim. Daqui não saio. O resto é passatempo. Ilusão.
(Ela executa piruetas, esgares e ensaia posições de Vatsyayana.)
Ele aplaude.
Os dois riem. E choram.
Compartilham o pão do ridículo.
V
O PRINCÍPIO
Ela pensa em ouvir algo.
Ele pensa em pensar.
-- O que você disse? Eu achei lindo!
-- Não, nada. Nonada. Foi só o garçom se atrapalhando com a prataria.
VI
O EFEITO DO VINHO
Ela pensa em ouvir algo.
Então fala para ouvir depois.
Ele pensa em pensar.
Pensa em ouvir.
Pensa em falar.
Pensa pensa, e repensante a noite corre.
VII
O MEIO
(Continuo a servir o vinho)
-- Riso choro e grito parecem a mesma coisa?
-- Você esqueceu do gozo.
-- Ah, é vero.
(Ele coloca mais um naco de Aparência em sua boca)
VIII
AS PERNAS ABERTAS (ou A REVELAÇÃO DO INCESTO)
-- Um beijo?
-- Melhor não. Esperemos o garçom se afastar.
Precisamos manter o segredo. E a audiência.
Céus, a audiência!
Ah, se soubessem! O que fariam! O que fariam!
Ah, se soubessem!
(Por trás da porta, ouço barulho de tiro e de queda)
IX
O COCHICHAR POSSESSO (ou O COCHICHAR POSSEXO)
-- Ai, mas se soubessem...
-- Não haveria mais missa.
-- Nem televisão.
-- Nem literatura.
-- Nem A divina comédia.
-- Oh! Mas um motivo para o silêncio!
(o garçom entra sorrateiramente)
X
O QUASE-FIM
(O garçom ao entrar, depara-se com o casal unido, deitados sobre a mesa, inconscientes)
Copos e imaginações quebradas.
Cheiros de vela e família.
Bafos de vinho e serenata.
Restos de carne e poema.
Manchas de utopia e molho.
XI
O FIM ORIGINAL (ou o GARÇOM CANIBAL)
Eu, garçom
Acendi a vela
e com fúria,
comi com a febre de um ignorante, o que havia do amor e do tédio.
Subalterno com coroa de rei,
saciei-me.
Mas nada. Um grande nada.
Olho em volta: leio.
Nada. Só um dicionário embaralhado
e a mesa revirada.
Trabalho para mais trabalho.
Zero.
O gosto é bom, não nego.
Mas sabê-lo dói.
Dói.
Demais.
(As cortinas se fecham. A platéia que ainda resistia, revolta-se insandecida contra tudo)
Tudo!
Todos!
Nada!
(Mais vaias. Bananas. Danem-se. Acabou-se.)
XII
O FINAL ALTERNATIVO (Proposta Alencariana. Escolhida pelo voto popular)
Ele (amoroso):
-- Oh, eu não sou o Tédio. Sou eu! o Ted! Eu: seu complemento!
-- Oh, eu sabia. Eu sabia. As convenções... não é... mentiras necessárias, justas. Trabalhamos pra isso. Justo.
(o garçom figurante mudo-cego-surdo-tuberculoso-analfabeto recolhe a mesa e sai sorrindo de forma cortês)
As cortinas cerraram-se, e as auras da noite, acariciando o riso das flores, cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal.
(Aplausos insandencidos. Entram os vendedores de guloseimas.)
Reticências e Reticências e Reticências
19.04.2009
19 de abril de 2009
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