18 de janeiro de 2009

Estranhamento

Uma sala. Ampla, mas pequena. A luz é fraca, quase impossível. Os olhos demoram a reconhecer as obras, e quando vão se acostumando, alguém acende a luz: cegueira total.
Curiosa, a memória. Uma sala abrigando uma exposição artística. O dadá e o clássico na mesma obra. Passeia-se pelo corredor (que na verdade, são milhões de corredores que não a lugar nenhum, senão para aquele em que se está). Vai-se tropeçando: obscura sala. Encontra-se algo: "Que bela obra! Que magnífico!". Parece uma piada da Arte, mas trata-se de algo sério, essa é a síntese da Arte: a obra que tanto se admira nada mais é do que o próprio chão, duro e frio como a lembrança de um ato arrependido. Na certa, tropeçou-se em algo, batendo com o nariz na superfície. Bela obra, o chão. Fria obra, o chão e uma gota de sangue.
Demora-se a observar os quadros, como se alguém houvesse escondido segredos nos segundos planos da imagem. Mas não há nada. E isto -o nada- é tudo.
Os olhos, cansados, enxergam pouco das telas. O que se tem é uma mistura de cores, que variam de tom e textura conforme o modo e o ângulo que o ávido olhar assume. Esfomeado, o olhar. Tem pressa, por isso tropeça; cai; debate-se;xinga-se; chora; ri.
Mas há também esculturas nessa sala. Há cheiro. Há sons. Uma mistura de flores de infância e perfumes de homens e mulheres. Uma mistura de urina e café. Uma mistura de sexo e susto e fumaça e alecrim. Sim, há esculturas. Rachadas, trincadas, levadas ao chão. Quem passeia por aqui pergunta-se (isso sempre acontece, perguntar é única opção do homem nesse lugar) quem é o responsável por estarem sangrando seus pés. Uma dor lancinante: um caco fincado nos pés. Pés de velho ou bebê, isso varia. O tempo varia, a luz varia, e o homem (ah!o homem...) varíola. O homem se pergunta quem o tornou doente, de uma hora para outra. Seus olhos não veem mais. "Quem fez isso comigo? Acenda-se a luz que eu quero ver!"
Controvertida, a memória. Extremamente humana, a memória. Tão humana quanto a violência gratuita ou a mentira.
Alguém devia perguntar: por que vistes, se já sabia da incerteza? Por que entrastes, se sabias que haveria medo?
Mas não há mais ninguém ali. Os sons que rondam a sala são uma profusão de notas vindas de todos os cantos. Notas que se misturam com os passos de quem passeia pelos corredores. Esses passos estão perdidos. "Quem fez isso comigo? Onde está luz"
Dir-se-ia que a Arte cansa. Sim, mas ela não faz isso sozinha. A culpa é desse desejo de imobilidade que acaba ofuscando o que era tão puro e simples: um rabisco de criança, um sorriso de um velho, as ondas do cabelo de uma mulher qualquer.
A Arte está aí. Olhe, mas não a oprima. Sinta-a mas não interfira nela. Ninguém precisa disso. A Arte já é propriedade; não é necessário esforço. Somente olhe: de todos os lados! Com todos os sentidos! Em todas as horas! Olhe sem se preocupar com a luz ou a trilha sonora. Não preocupar-se é possuir.
"Mas eu quero a luz, eu quero saber!"
Ah...a humanidade. Acendam-se as luzes então. É só acender que tudo se esclarece.
Não há mais escuridão. O que há é uma sala de jantar com os convivas degustando o jantarzinho...