22 de maio de 2021

Senhora dos Cânticos

 

    No texto 3# sobre livros publicados recentemente em território catarinense, uma leitura de "Pedra, poro, pele" (Ed. Micronotas, 2019), de Maria Cecília Takayama Koerich, uma celebração da liberdade e desejo sob a ótica feminina, e portanto obra oportuna para se pensar alguns caminhos e descaminhos trilhados por parte das autoras do estado nas últimas décadas.

Em 1971, ainda sob vigência do Estado Novo português, criado pela ditadura salazarista, o PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), órgão de censura de Portugal, impedia a circulação de uma série de obras consideradas subversivas, marxistas, comunistas ou ainda "imorais". Foi esse último termo que o PIDE usou para qualificar a obra "Minha Senhora de Mim" (Publicações Dom Quixote , 1971) - a obra apresentava 59 poemas, em evidente diálogo - paródico - com a tradição medieval como sugere o título, que focalizavam a experiência feminina de se estar no mundo, concentrando-se tematicamente nas experiências do desejo e do sexo. A obra foi considerada imoral e um "ataque à nação portuguesa", que naqueles dias estava já há décadas mergulhada em governos ditatoriais e, por extensão, fálicos. A esse cenário medíocre, no qual não se estava assegurada a liberdade de expressão, muito menos para o diálogo sobre as experiências de prazer feminino, Horta contrapôs uma poética desabusada, livre e formalmente transgressora ao atacar tabus erigidos desde a fundação de Portugal e que se encontram formalizados nos versos das cantigas medievais, por ela parodiados:

MINHA SENHORA DE MIM

Comigo me desavim

minha senhora

de mim


sem ser dor ou ser cansaço

nem o corpo que disfarço


Comigo me desavim

minha senhora

de mim


nunca dizendo comigo

o amigo nos meus braços


Comigo me desavim

minha senhora

de mim


recusando o que é desfeito

no interior do meu peito

 

    Superada a maré autoritária no país, Maria Teresa Horta firmou-se como uma das principais vozes da poesia portuguesa contemporânea, tornando-se seu livro amoroso um clássico e um dos mais belos livros eróticos da tradição lusa. Em proposta tematicamente similar, ainda que em outro contexto bem mais recente, o Brasil de 2019, porcamente administrado por Jair Bolsonaro, pequeno e ridículo como os outros ditadores com que se parece, destaca-se o livro "Pedra, pele e poro", de Maria Cecília, autora nascida em São Paulo e radicada em Joinville/SC, uma coleção de pequenos poemas de amor e gozo, escritos em linguagem ao mesmo tempo livre (formalmente, por vezes recorrendo à prosa poética) e densa, marcada por associações sonoras simples, que sustentam, por vezes, metáforas fortes ligadas à compreensão e expressão da sexualidade feminina. Sem título, os textos parecem por vezes compor um longo poema em fragmentos, no qual se impõe uma perspectiva livre de entrega e busca do amor, do sexo, por vezes entrelaçados na trama do poema,  regida pelo exame dos componentes materiais (a pedra, o poro, a pele) e psicológicos da experiência de ser mulher e de ser corpo a serviço de Eros - o que pressupõe não apenas a pesquisa livre e radical de novas formas de se obter prazer como também o cuidado com o corpo - os olhos nesse livro não apontam tanto para o objeto amado - o olhar da donzela - como se firmou tantas vezes nas epopeias e canções, quanto apontam para si mesma, onde às vezes há conflito e noutras plenitude, mas sempre descoberta. Não que lhe faltem armas para o jogo,  posto que a devoração do outro se inicia pelas mãos, pela boca, ou mesmo por instrumentos (de garfo e faca vou ao seu encontro), em constante renovação das infinitas coreografias possíveis entre corpos, corpo assumidamente erótico, que se acentue aqui o pleonasmo, como nesse livro se destaca o uso de alguns clichês recorrentes na tradição erótica - prática assumida por um eu-lírico que reconhece, nos gestos de si e de outrem, conquanto a busca pelo novo, a repetição de alguns gestos fundamentais do jogo amoroso:

Observo essas curvas:

contorno 

imagino Coisas tantas

e sinto o rosto queimar

será que pensas como eu?

que desejas escondida na timidez

o kama sutra, a janela indiscreta,

o beijo da mulher aranha

um clichê- seu michê

sua dama de companhia

amante

tudo e nada

mais e além

já passei do ponto

de revelar o que sinto

prefiro, anonimamente,

arder

    Ao buscar registrar um ato de escrevivência (aqui centrado na experiência de ser mulher nesse ponto da História), como explica no posfácio, Maria Cecília Takayama Koerich dialoga com as mulheres suas leitoras, como também com uma tradição das letras catarinenses, uma senda trilhada por mulheres de outras gerações, como Antonieta de Barros, Eglê Malheiros, Maura de Sena, cuja obra vem sendo recuperada por projetos de pesquisa e extensão da Universidade Federal de Santa Catarina e muitas outras autoras que compõem o instável conceito literatura catarinense aqui também tensionado pelo termo literatura feminina (que para Nélida Piñon deve ser chamada de escrita por mulheres*, e para outres sequer existe). Assim, o livro de Maria Cecília dialoga especialmente com as autoras dos anos 70 e 80 (o recorte aqui se restringirá à região Norte do estado), como Mila Ramos, Lucy Assumpção, Rita de Cássia Alves e Dúnia de Freitas, que celebram em sua poesia, entre tantas outras temáticas, as dores e delícias de ser mulher; ainda que, ao adotar uma perspectiva erótica sobre as escolhas anteriores, como fez Maria Teresa Horta em 71, Maria Cecília se diferencie das outras propostas cujas lentes transitam entre o sentimental, as investigações filosóficas e psicológicas, o misticismo, o retrato autobiográfico e o registro cotidiano na esteira dos marginais, em obras entre as quais se pode destacar "Danada" (Edições Ipê, 1990), de Dúnia de Freitas, cujo projeto gráfico de capa (que exibe o rosto sorridente e belo da autora, com seus cabelos curtos e óculos) e o título sugerem o registro livre da feminilidade e o confronto com a moralidade imposta por sociedade - ainda hoje - bastante patriarcal, que desagua, entre outros pontos, na formação de um sistema literário predominantemente masculino no sentido de que, embora haja inúmeras vozes femininas, à poucas são dadas o lume e as leituras merecidas. Ler Maria Cecília (este é o seu segundo livro de poemas), tal como ler Mila, Lucy, Patrícia, Rita, Maura, Antonieta, Urda, Elizabeth, Ryana, Ana, Bruna, Edla, Katherine e tantas outras, além de colaborar para o fim do questionamento cíclico em torno de conceitos atrelados a um certo sistema literário, que precisa superar seus déficits e contradições justamente por meio da recepção privilegiada da escrita feita por mulheres catarinenses, alimenta um raro prazer - de autocuidado e encontro com o Outro:

Irão constranger

pelas coisas que não fez

irão julgar

pelas coisas que fez

nada é superfície quando

se é mulher

as regras são rígidas

gaiolas pequenas

limite escasso - apertado espaço

sobreviver é desafiar o jogo

              sub

                          ver

                                     são

                         resistência


*Conforme SHARPE, Peggy. Entre Resistir e Identificar-se: para um teoria da prática da narrativa brasileira de autoria feminina. Florianópolis: Editora Mulheres; Goiânia: Editora da UFG. 2007.

12 de maio de 2021

Verde, Amarelo, Azul e Ódio



Lançado em janeiro de 2021, ano II da pandemia do
coronavírus, em Florianópolis, "Verde, Amarelo, Azul e Branco", editado de modo independente pelo autor, espelha a ignorância e ausência de empatia dos catarinenses no momento mais grave de sua história.

Na capa do livro, um pássaro morto sugere as cores de uma certa bandeira esquecida. O peito esmagado, ele mesmo bandeira, previne o seu expectador acerca da crueza que lhe aguarda. A profunda humanidade da prosa de Marco se materializa na construção de narrativas, aqui, muito próximas dos leitores. Se em seus livros anteriores já se observava o constante entrelaçamento dos gêneros conto e crônica (do qual se destacam textos como "Agarrar os silêncios" e "O estupro de Madhyamgram", de "Carnaval de cinzas", 2016, Editora Redoma) aqui essa mescla é forjada por meio de narrativas curtas, marcadas por períodos curtos e tensos - é a tentativa de ligação direta com o coração anônimo daqueles que, pelas timelines e caixas de comentários das redes sociais, exibem com orgulho um órgão de lata destituído de empatia pelos sofrimentos dos outros seres vivos. O permanente estado de angústia e estresse ocasionado pela pandemia que assola o começo deste século aproxima ainda mais o leitor dessas ficções-realidade - intenção para a qual colabora o vocabulário enxuto. Uma economia, aliás, importante em tempos de exaustão, pois, como Marco afirma em recente crônica para o Desacato, portal no qual mantém uma coluna, há um esgotamento de notícias. Há um esgotamento de pronúncia, pois estamos, há mais de um ano, numa nota infeliz e numa tarefa hercúlea de conscientizar as pessoas da necessidade urgente de haver muito cuidado uns com os outros. Diante desse estado de crise, o artista, já de antemão em conflito com os leitores, busca dialogar com aqueles que sofrem pelo luto e ainda mantêm firme o pacto coletivo de cuidado mútuo (supostamente um dever de todos), rebela-se contra a horda anticiência e lança luz sobre aspectos sociológicos da pandemia - em "OS HOMENS DETESTAM EUNICE", "A SAGA DE GILMARA" e "NÃO CHOVE NOS OLHOS DE MIRNA", três belos contos trágicos desse livro, evidencia-se a onipresente misoginia nas mais variadas camadas das vidas das protagonistas, que precisam por vezes travar também luta contra a miséria. Esses contos parecem a face inversa daqueles que exibem protagonistas homens propagando vírus e opressões às pessoas a sua volta, sejam crianças, adultas ou idosas - mas com explícita preferência por vítimas femininas. Conforme recente reportagem do portal Catarinas, SC é um dos estados mais feminicidas durante a pandemia. Estamos, pois, diante de um livro de ficções-realidade.

O cuidado com a linguagem no livro também se mostra no verso de Augusto dos Anjos (poeta moderníssimo) escolhido como epígrafe, extraído do belo soneto "Vandalismo" - meu coração tem catedrais imensas; ao passo que acena para a obra de Augusto, um apaixonado pela ciência que conectou Biologia , Filosofia e Arte sob ritmos alucinantes, a referência a Augusto também nos leva a todo um grupo de escritoras e escritores brasileiros, toda a classe artística enfim, que foram pouco lidos e celebrados, silenciados à margem de um sistema literário financiado pelo capital branco e patriarcal, como hoje, de modo análogo, silenciam-se especialistas/pesquisadores em um debate que deveria ser científico, mas é carnavalescamente tocado por apresentadores de tv, prefeitos, governadores, parlamentares e influencers digitais. O belo verso, também, parece nos lembrar que o desassossego  e rebeldia de Augusto dos Anjos dialoga com o estado espírito exaurido em que se encontram aqueles que lutam contra a maré de desinformação, mentiras e ataques sistemáticos a direitos básicos garantidos, fragilmente, por nossa Constituição - em especial a classe artística, que tem, no estado de Santa Catarina, o autor como um de seus principais representantes dada à contribuição de Marco como escritor, diretor, ativista cultural, pesquisador e professor. O livro conecta-se, assim, a "Harmonias do Inferno", que se abre com um verso de Baudelaire, outro rebelde maldito, ao apresentar uma resposta iconoclasta a uma sociedade caótica marcada pela ascensão de políticas neoliberais e desprezo pela vida humana nas mais variadas esferas sociais- e agora, desde 2016, administrada pelos guardiões imbecis de infames projetos de Estado.

Nos contos do livro, os narradores não poupam juízos morais às escolhas e crenças dos protagonistas. No terceiro conto, A MÁSCARA DE TEOBALDO, o personagem principal, um homem de 75 anos, arrogante como seu xará shakespeariano (lembre-se aqui que é entre brancos e idosos que o capitão cloroquina tem mais aprovação mesmo diante dos mil insultos à democracia e à ciência), acaba internado em virtude da contaminação pelo coronavírus. Recuperado após dura internação, continua a propalar discursos negacionistas, chegando ao ponto de ofender familiares que o corrigiam quanto às verdadeiras causas de sua contaminação e doença. A máscara do personagem é retirada ao longo de toda a narrativa, em sua escolha, tal como nas demais histórias do livro, de enfatizar comportamentos irracionais em face da pandemia - e da perspectiva da morte. Não contente com esse caminho discursivo que acentua para o leitor, frase a frase, dos descaminhos estúpidos dos cidadãos-personagens, o narrador emite, ao fim, um juízo de valor definitivo, que cai sobre o leitor como pena - "Teobaldo perdeu o único pingo da razão que o conectava à realidade". No conto anterior, situado no bairro do Itacorubi, a "pena" é ainda mais severa - Vinicius perde os avós, para cuja contaminação contribuiu diretamente ao ignorar o distanciamento social e visitar os parentes idosos. Compreende-se tal escolha estilística - nada desnecessária em uma sociedade surda à verdade científica - com o artista precisando gritar por sobre elaboradas algazarras -, mas notemos que, aqui, em "Verde, Amarelo, Azul e Branco" o julgamento moral explícito de boa parte dos contos contrasta com a composição das narrativas de "Harmonias do Inferno" (Editora Letra D'água, 2010), obra menos condescendente, que resistem como passeios (não guiados, ou melhor, não explicitamente guiados) pelos diversos círculos infernais que se escondem no interior das instituições (em crise) e das pessoas (doentes). Guardadas as diferenças, resta o saldo urgente dessas narrativas que são também cartas, crônicas, manifestos e urros contra um estado de coisas promovido não por vírus, mas por homens - com cor, saldo bancário e endereço.