No texto 3# sobre livros publicados recentemente em território catarinense, uma leitura de "Pedra, poro, pele" (Ed. Micronotas, 2019), de Maria Cecília Takayama Koerich, uma celebração da liberdade e desejo sob a ótica feminina, e portanto obra oportuna para se pensar alguns caminhos e descaminhos trilhados por parte das autoras do estado nas últimas décadas.
MINHA SENHORA DE MIM
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
recusando o que é desfeito
no interior do meu peito
Observo essas curvas:
contorno
imagino Coisas tantas
e sinto o rosto queimar
será que pensas como eu?
que desejas escondida na timidez
o kama sutra, a janela indiscreta,
o beijo da mulher aranha
um clichê- seu michê
sua dama de companhia
amante
tudo e nada
mais e além
já passei do ponto
de revelar o que sinto
prefiro, anonimamente,
arder
Ao buscar registrar um ato de escrevivência (aqui centrado na experiência de ser mulher nesse ponto da História), como explica no posfácio, Maria Cecília Takayama Koerich dialoga com as mulheres suas leitoras, como também com uma tradição das letras catarinenses, uma senda trilhada por mulheres de outras gerações, como Antonieta de Barros, Eglê Malheiros, Maura de Sena, cuja obra vem sendo recuperada por projetos de pesquisa e extensão da Universidade Federal de Santa Catarina e muitas outras autoras que compõem o instável conceito literatura catarinense aqui também tensionado pelo termo literatura feminina (que para Nélida Piñon deve ser chamada de escrita por mulheres*, e para outres sequer existe). Assim, o livro de Maria Cecília dialoga especialmente com as autoras dos anos 70 e 80 (o recorte aqui se restringirá à região Norte do estado), como Mila Ramos, Lucy Assumpção, Rita de Cássia Alves e Dúnia de Freitas, que celebram em sua poesia, entre tantas outras temáticas, as dores e delícias de ser mulher; ainda que, ao adotar uma perspectiva erótica sobre as escolhas anteriores, como fez Maria Teresa Horta em 71, Maria Cecília se diferencie das outras propostas cujas lentes transitam entre o sentimental, as investigações filosóficas e psicológicas, o misticismo, o retrato autobiográfico e o registro cotidiano na esteira dos marginais, em obras entre as quais se pode destacar "Danada" (Edições Ipê, 1990), de Dúnia de Freitas, cujo projeto gráfico de capa (que exibe o rosto sorridente e belo da autora, com seus cabelos curtos e óculos) e o título sugerem o registro livre da feminilidade e o confronto com a moralidade imposta por sociedade - ainda hoje - bastante patriarcal, que desagua, entre outros pontos, na formação de um sistema literário predominantemente masculino no sentido de que, embora haja inúmeras vozes femininas, à poucas são dadas o lume e as leituras merecidas. Ler Maria Cecília (este é o seu segundo livro de poemas), tal como ler Mila, Lucy, Patrícia, Rita, Maura, Antonieta, Urda, Elizabeth, Ryana, Ana, Bruna, Edla, Katherine e tantas outras, além de colaborar para o fim do questionamento cíclico em torno de conceitos atrelados a um certo sistema literário, que precisa superar seus déficits e contradições justamente por meio da recepção privilegiada da escrita feita por mulheres catarinenses, alimenta um raro prazer - de autocuidado e encontro com o Outro:
pelas coisas que não fez
irão julgar
pelas coisas que fez
nada é superfície quando
se é mulher
as regras são rígidas
gaiolas pequenas
limite escasso - apertado espaço
sobreviver é desafiar o jogo
sub
ver
são
resistência
*Conforme SHARPE, Peggy. Entre Resistir e Identificar-se: para um teoria da prática da narrativa brasileira de autoria feminina. Florianópolis: Editora Mulheres; Goiânia: Editora da UFG. 2007.