I
até tarde da noite
antes de dormir
kauan faz um stencil
e pensa no devir
nada concreto:
um barco atravessa um traço
leve, negro traço
eis tudo que restou
das noites de antes
como ele
muito dantes, há três mil grécias
poetas distantes
homeros virgílios e dantes
em vigília, ergueram taças
umedeceram penas e,
anacreontes de ontem,
criaram invisível trilha
entre o sentido e o escrito
o coração virado sempre pra parede
contempla o branco demoradamente
(nele o barco em sua negra marola)
a procurar,
antes do porvir, sua ruína
antes do papel, os pensamentos
noite contra noite, kauan e o ofício de levar a cabo a espera
- designer de anteriores -
a reconstruir, toda noite, o passado
em busca de novos versos
versões felizes para o doído
e nunca olvidado
II
muito antes do corpo sobre a cama,
o prazer da linguagem
bem antes do caminho pra casa,
sem rosto amigo e estrela-guia,
bem antes dos estranhos corredores,
de alheias casas,
os acordos da linguagem
dois dias por dia,
a saldar e contrair
linguísticas dívidas
de deliciosa mora
correm as pessoas para cá e lá
a trabalhar, dentro do corpo,
vestidos para os desejos
e em cada palavra só o vestígio
do que querem realmente
quando se cansam do verdadeiro prazer
de repente
(para se descansar a língua da linguagem)
deitam-se à cama os homens
e põem-se como gatos
a se lamberem os corpos
III
o que vai ser desse agora
trabalho, aposta ou feitiço
depende do que foi o antes
com seus atropelos e prejuízos
há muitos anos,
onde hoje é o corpo dessa mulher
havia um lote de terra
susserania hereditária
onde lá mil outras morreram
para que esta
decididamente
atravesse a rua apesar do movimento dos carros
há muitos anos, todos os dias
duas mãos se apertam no escuro
em busca de um novo antes
distinto daqueles outros
com seus acertos, vacilos, rompantes
sem recalque, sem saudade:
um antes para ter de onde se ir
e para se ter a quem contar
casca com que se possa
sair à noite para a festa
roupa que se possa
trajar no dia de seu mais novo nascimento
30 de março de 2018
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