30 de dezembro de 2009

A pena é um sentimento muito pesado. É preciso ter cuidado de pássaro. Eis o porquê dos homens não voarem.

22 de dezembro de 2009

segunda carta aberta do poeta trágico

amigo,

acordei hoje pela manhã,
e os móveis continuavam em seus devidos lugares
(eles devem isso à ordem, bem como eu devo a minha loucura à minha humanidade)

o olhar pela janela buscou a paisagem,
a transparência do vidro nada tem de bela
pássaros bem sabem disso
(o caixilho da janela é um oráculo sedento
que pede devoração todos os dias)

passo os dedos
pelos móveis rústicos
lambo a camada fina de poeira sobre eles

manhã fria e calma dentro desse cubo donde lhe escrevo
lá fora, uma neblina vaga, sem qualquer mistério ou ilusão,
fácil divisar todas as árvores e pedras
(uma poeira fina que cai de um céu antigo)

bobagem minha, escrever a ti
(és uma caverna funda, vazia, na qual entro para soltar um urro animal e sair fugido)
inútil contar-te o gosto da poeira que cobre a exata geometria entre meu corpo, minha mesa, a cama a e as venezianas

afinal
lambo essa poeira para sentir novamente
aquela sede que ninguém pode saciar

com meu apreço e desespero,
teu amigo

16 de dezembro de 2009

minha senhora

Assim que as portas do ônibus se abriram, a multidão agoniada debateu-se para entrar. Deslizando um no suor do outro, o povo transbordou-se no carro. Vários tipos, vários rostos. Pêsames e Pesares. Pesos e medidas. Mulheres curvilíneas. Garotos com cabelos asfaltados. Óculos tortos, semáforos fechados.
Na primeira parada, entra uma mulher com uma criança no colo. Avança pelo corredor inquieta, com certeza aguarda a ocasião em que alguém - mais jovem, mais forte, ou ainda, mais generoso - levante-se e ceda o lugar a ela. O carro segue sua rota. Nas pessoas, pequenos movimentos de marola. Nada de mais. Espirros e Risadas. Ideias e Ideais. Um olhar procura o relógio do outro. Segunda Parada.
A mulher, assim que entrou, apoiou-se numa das barras de ferro verticais com uma das mãos. Na outra, o peso do seu pequeno e pesado fardo. Cara triste e roupas fajutas. Meus pesares, minha senhora. A mulher tem o rosto fechado. os olhos dançam, correm, reviram-se em busca de alguém. Ninguém. A música está tão boa, o papo também, a bunda da loira também, o romance policial também, a divagação também, o olhar perdido também. Estão todos contentes. Alguém ouve o que os outros pensam? O rosto da mulher está fechado. Está irritada, sem dúvida. A criança tem a cara triste de um adulto.
Um filho é algo pesado, sem dúvida. Não é fácil criar um. Mas a mochila é algo pesado. O poema é muito pesado. O pacote de salgadinho também. O vazio da vida também. O dia de trabalho nas costas também. O fingir-que-não-estou-vendo também, tudo é muito pesado nessa vida. A mulher demonstra cansaço. Quer chamar atenção talvez. Ela bufa. A criança perdeu seu olhar em alguma curva que o motorista fez com desleixo. Fomes e tédios. Bonés e bolsas femininas.
Quarta parada e uma mulher, sentada à janela, tenciona chamar a mãe com o fardo. Ensaia, titubeia. Ao seu lado, um adolescente impassível como um morto. Então ela chama: "Será que ele fica quietinho no meu colo?", apontando o menino loiro sem olhar. A mulher se limita a sorrir, um sorriso furtado, mais para um alongamento da boca do que riso. Ventricular, ela nega. Não, ele não ficaria. O adolescente continuou impassível. Ignora os postes que se acendem e a mulher com seus braços de pedra.
Ônibus lotado, ninguém desce. Apenas sobem e sobem. Pontes e curvas. A mulher troca a criança de braço. Esta não manifesta qualquer reação. Ônibus lotado, pessoas limítrofes. "Qualquer erro topográfico será considerado assédio sexual", diz o regimento.
No fundo do ônibus, nas laterais: pessoas e pessoas a balançar na marola urbana. No centro, uma mulher se afoga, agarrada em seu fardo, sua bóia. Caos no trânsito das ideias.
Colado na parede do carro, próxima à primeira fila de bancos, um adesivo: "banco preferencial para idosos, gestantes e pessoas com crianças ao colo". Rabiscado na camisa do adolescente, "Marlboro" também. "Jesus te ama" também. Rasurado no banco último, "Puta velha" também. Há tanta leitura nessa vida. Chicletes e Bitucas. As pessoas continuam marolando. E a mulher continua com o rosto fechado.
O olhar agora é mais calmo, como se ela estivesse cansada de procurar um olhar-testemunha. Sim, ninguém vê. Mesmo lotado, as pessoas não estão aqui.
Nova curva mal-feita. "Filho da puta", grita o homem de uniforme azul ao motorista, acrescentando mais um risco ao ônibus rasurado. A mulher quase caiu, tonteou, mas segurou-se firme e manteve a criança no braço.
Sétimo, oitavo ponto. Ponto. Ponto. Um rosto fechado e longe de mulher estuprada. Um olharzinho triste de ausência. Bocas ridentes e bocejantes aguardam o ponto final da virgulosa viagem.
Alguém puxa o cordão de aviso. Um apito. A mulher e seu fardo vão descer no penúltimo ponto. Ninguém se moveu.
O ônibus para. Descem. O ônibus fica incrivelmente leve. Ninguém se moveu. Estátuas e
recepcionistas. Postes e domésticas. Crianças e desempregados. Poetas e pescadores.
Logo o carro chega ao terminal. Parada final. Aguardo todos descerem. Sozinho, contemplo-me. Recordo os rostos. Recordo-me. Levanto da minha poltrona, cuja posse consegui com um movimento rápido de peixe, assim que as portas do ônibus se abriram.
A criança era pesada, bem sei. A imagem panorâmica dela com seu fardo, ali diante dos meus olhos, também. Minha crônica também é, mulher.
Meus pesos e pesares, minha senhora

6 de dezembro de 2009

sem estrelas

à saída da boate
o carro, com imaginação automática
4 bocas, beleza hidráulica
e pernas turbinadas
arrancou,
ao som de gritos eletrônicos
e uivos techno,
deixando marcas
e estampas coloridas
sobre o asfalto

carta aberta do poeta trágico

você,

hoje abri dez vinte livros de poemas, de bons poetas
e escamote-ios
como se precisasse de paixões

e meu consolo é que
sob essas figuras baixas e pobres de linguagem
que tento reproduzir
dorme a língua
lépida e lírica
que transita entre teu sexo, as chagas, e os poemas dos outros

miserável

Eu