31 de outubro de 2009

poemas para ler escondido do seu chefe

I

DOS CARIMBOS

à brasa e tinta uma marca de posse
a marca corre pela metrópole-eternamente-burgo
e eis que vira uma marca de ausência
venda triste
troca falida
empréstimo roubado
alienação amigável
já não se sabe mais
os donos ficaram no caminho
(falência com memória, mas sem saudades)

mas se ausência não tem marca
o que é isso então, à brasa e tinta?

carimbos são cicatrizes sobre o papel

II
OSWALD & OSWALD Poesia Iltda.

Há poesia
na flor
na dor
no beija-flor (que beija-flor?)
no elevador

mas na sala do chefe não há poesia

III

TEMPO

Aqui o relógio é peça sexuada

IV

PRESSA PRESSA

Todas as horas acabaram enquanto eu abria os olhos

o tempo não dói, não, despertador

não há despertar para dor alguma:
pode tocar à vontade, que a gente já acorda morto

V

SETOR DE VENDAS

ventilador vendedor grampeador corredor elevador perfurador computador picotador
fazem o diabo à quatro com a dor por aqui
qualquer dia, alguém sente ela

VI


ASSINATURA

o bom poeta põe sua assinatura em cada verso
e é o leitor que autentica
que reconhece
que apaga
rasura
mistura
corrompe
promove
vende troca compra a poesia,
essa mercadoria

VII

MISSÃO

O chefe ordenou ao encarregado dos chamamentos para que ele orientasse o coordenador dos auxiliares para que esse, num grito de pressa e solidão, encontrasse alguém para servir um cafezinho aos convidados.

VIII

CARTA COMERCIAL

A secretária vai bater os convites à máquina.
O chefe pediu: "Capriche nos pronomes"
Pobrezinha, é meio surda, ouviu "Capriche nos pormenores"

IX

CARO SENHOR DOUTOR ORLANDO BENEVALENTE

Convidamos a sua pessoa tão lustrosa e castiçalosa, para um jantar devorador beneficente organizado por nosso, digo, pelo escritório do sr. meu chefe.
Dia 20, às 8 horas em ponto ou quase isso, no salão oval, digo, esférico de nossas instalações. Tal jantar, digo, ceia tem por secundal intuito arrecador fundos (bem fundos mesmo) para a caridade caridosa do Dr. Bonança, sr. meu chefe. Sua esposa & amantes também estão convidadas, bem como seus filhos e outros penduricalhos. A comida estará gelidamente deliciosa e o champagne-champanha estará raivosamente espumante. A entrada custa o singelo-belo valor de 100 reais por cabeça, digo, pessoa, digo, diploma.
o Dr. Bonança - sr. meu chefe - quer imensamente vê-lo de corpo presente nessa festa-festa da solidariedade-solidão. Para tanto, solicitamos a gentileza óbvia de confirmar sua presença e de seus convidados-agregados. Para isso, o Senhor Doutor pode utilizar diversos meios como telefone carta e-mail ou fofoca entre telefonistas e secretárias.

Atenciosamente distraídos,
Bonança Negócios Ditos Financeiros Ltda.

X

ENCOMENDA

Que esse poema chegue
o mais poeticamente possível
nas mãos do Sr. Diretor!

XI

TRAJETO

Desbravando poltronas, canetas, câmeras e portas fechadas,
o auxiliar chegou à porta do Sr. Diretor.
Bateu na porta como se doesse nele.
Entregou o poema para a preciosa apreciação do Sr. Diretor

A porta bateu na sua cara
duas vezes batida.

XII
SR. DIRETOR


Homem gordo de muitos sorti-privelégios, sabe tudo das leis do comércio.
É o rei, diz o capacho da porta do banheiro que sonha com a promoção
Tem faro para os negócios, dizem os amigos que o rodeiam (enlaçam-no?).

Bem, rugir ele sabe.

XIII

A MODERADA APRECIAÇÃO

pegou com delicadeza o poema
(não quis passar os dedos pelas arestas)
letra por letra
(não quis pular linhas)
conferiu.
pegou a calculadora. depois a régua. depois o dicionário.
jogou contra à luz e achou-o suspeito
(seria falsificado?)
chamou o auxiliar

XIV

CONSELHO VINDO DO CHÃO

-- Doutor, talvez o senhor devesse lê-lo.
(doutor bonança se irrita e levanta-se com fúria)
-- Nada devo! Sou um homem de palavra e negócios certos.
Não devo a ninguém! Pago meus débitos!

XV

PAUSA ETERNA PARA UM CAFÉ

-- está despedido! Para o olho da rua!

XVI

NO OLHO DA RUA

e o auxiliar não mais auxiliar
foi caminhando,
invisível e cambaleante
como se fosse um cisco

16 de outubro de 2009

a perdição dos amantes

-- comigo
-- qualquer coisa, pode ser qualquer coisa desde que seja doce, cristal ou febre
-- para uma vala funda
-- solta-me numa baforada longa

me traia
me traga
me trague
me traz
e ele me pergunta
me traga
ele me traga
me traga
e ele me pergunta "o quê? O quê?"

é nesse momento que meu corpo é arrastado e eu sublimo

11 de outubro de 2009

Aniversário

alguém jogou um bolo de anos nas minhas costas
e disse que foi eu que o fiz
arre, eu lá sou escultor!

eu sou de rasuras,
me amassando todo dia
sou de garranchos
escrevo torto por linhas ainda mais tortas
para desembocar em mais um dia

eu não faço anos
calendário é coisa muito antipática:
nada como o céu
que é arbitrário em sua noite-dia
mas sabe chover de repente

vida também é engraçada
contamos tudo
dedo por dedo
letra por letra
para morremos de repente

eu não faço anos
calendário é coisa demais organizada para eu seguir
tempo, sim
gasto e regasto
mato e beijo

feliz tempo para mim e para todos nós

3 de outubro de 2009

Omnibus

Se ele andasse com elas abertas, talvez tivesse algo de pássaro.
Lotado. Como meu próprio cheiro e sinto repulsa. As mãos vão ao bolso em busca de minhas moedas. Alguém me chama. Não, não, é outro. É outro, o chamado. Eu sou quem chama. Chama, chama. Quente, quente: carro repleto de chamas e chamamentos.
A mão volta trazendo um batom. Um canivete. Uma camisinha. Um pedaço de pão velho. As moedas não são minhas. O homem ao lado fede como uma quarta-feira.
De repente, um aquário. Não mais ônibus. Sim, um aquário: cardume de rêmoras com as têmporas coladas nas janelas. Visgo. Falta água, ar: borbulhar, borbulhar. Falta coral, direção. Nadar é tudo o que temos.
Não. De repente uma boîte. No teto do carro, uma placa com os dizeres: "proibido o pole dancing. Use as barras apenas para equilibrar-se". Postes e placas: jogos de luz e concreto.
Leio um capítulo por dia do Livro da Juventude. É o que lê a senhora-gorda-de-uniforme-rosa-fraco (enfermeira?). Às vezes jornais e revistas de outros. Às vezes as curvas que fazem as bundas jovens das mulheres. Às vezes um homem bonito. Às vezes uma criança bonita. Quente, quente, quem me chama? E quem é chama?
Se o carro andasse com elas abertas, talvez me sentisse mais distante e menos só.
O carro é público. Público e indiscreto como uma vida. De repente, uma vida: uma teia repleta de nós. Nós.
O adolescente pulou a catraca e caiu no meu colo. Levei as mãos ao bolso e eram seios bem jovens. Cheiro de balas. Suor. Visgo. Sede. A mulher fechou o livro e foi como se desse um tapa. Leio jornal e estampas de camisa.
Aquela placa, aquele aviso. É uma piada. Uma provocação aos que tem desejos suicidas. Quem fez está rindo de mim.
Há uma mulher. Ela quer adivinhar meu rosto. Alguém desceu. Dois homens embarcaram. Há algo de gangorra aqui, mas não sei explicar muito bem. Vem uma música lá de fora. Há música aqui dentro. Celular. Um bêbado canta e ele nina os demais. As mãos estão dadas. Tenho sete faces, pois sete lados. Não respiro: como cheiros. Lotado.
Lotado. Apertado Apertado. Cocei meu nariz e eu já sou outra pessoa. Meu nariz é adunco e tenho 67 anos. Não, eu tenho 3 anos. Alguém me prensa. Tem uma barra, acho que é um pau, que insiste em prensar-se contra minha bunda. Uma criança, ela quer me adivinhar. Alguém coçou meu olho. Queria fechar os olhos e cantar baixinho, mas é proibido conversar com o motorista.
Tire esse pinto daqui. Quero chegar logo. Lotado, lotado. Não é para todos esse carro. Abro um livro de poemas e me sinto nu. Um bandido. Que sede. Descem mais pessoas. Subiram outras. Subiram as mesmas. Chama chama, quente quente. Lá fora, eu vejo um bando de cães passeando.
"Para sua segurança este veículo apenas se movimenta com as portas fechadas". Ai Jesus, nunca entendi essa frase.

É uma piada, né?