15 de setembro de 2021

Construção para Darci de Matos

constroem prédios de infinitos andares
só não amam as matas ciliares.
constroem alianças, definem jantares
só não amam as matas ciliares.

circulam na Câmara, encontram-se em pares
só não amam as matas ciliares.
costuram acordos, praticam malabares
só não amam as matas ciliares.

celebram à mesa, garrafas, manjares
(à volta dos rios, secura, pesares)
concebem conflitos, açulam o cão de Ares
(à volta do fogo, jazigos, hectares)
fragilizam códigos, infectam azares

                               & as      águas      livres                                                     os    bichos


                                                                      os    ares

7 de setembro de 2021

"Coliseu Tropical" e os poemas de acordar




Em sua coluna poética para o Jornal do Brasil, Mário Faustino selecionou e observou diversas correntes da poesia brasileira e de outras nações. Ao comentar a poesia social, a partir do panorama norte-americano, falou sobre poetas competentes que "documentam e celebram uma época (...) poetas que 'promovem' a poesia, poetas cujos poemas podem ser lidos, declamados ou cantados". Um comentário tímido, quase a defender do esquecimento¹, no vasto mar das vanguardas, àqueles que se propõe a cantar os dilemas das cidades com viés participativo, buscando mobilizar o leitor-cidadão, sem perder de vista as graças do canto. O poeta social brasileiro remonta a antigas linhagens de nossa poesia, especialmente a satírica, de Gregório, Gonzaga, até os arroubos românticos contra a injustiça social, observada em Castro Alves e outros companheiros de sua geração. Tome-se, por exemplo, esse trecho extraído de Maria Firmina dos Reis, contemporânea de Alves, em poema condoreiro no qual o eu-lírico se dirige a um jovem poeta:

"(...)
Canta, poeta, a liberdade, ─ canta.
Que fora o mundo sem fanal tão grato…
Anjo baixado da celeste altura,
Que espanca as trevas deste mundo ingrato.
Oh! sim, poeta, liberdade, e glória
Toma por timbre, e viverás na história.
Eu não te ordeno, te peço,

Não é querer, é desejo;
São estes meus votos ─ sim.
Nem outra coisa eu almejo.
E que mais posso eu querer?
Ver-te Camões, Dante ou Milton,
Ver-te poeta ─ e morrer."

A defesa insistente pela liberdade dos poetas românticos deve ser lida à luz do contexto escravista, sustentado pelo liberalismo em voga; e aqui  Alfredo Bosi nos lembra que comércio livre, dentro da ideologia reinante no final do século XIX, não significava necessariamente trabalho livre.  Isso posto, a superação do falso paradoxo liberalismo-escravismo e o estudo da evolução dessas ideias até o presente são condições para se ler a poesia que hoje encara os mil faces neoliberais, todas elas nem um pouco encabuladas com a história de manutenção da exploração servil que se arrasta no Brasil, dada sob a forma, hoje ainda!, do trabalho escravo, das (cada vez mais) múltiplas formas de subemprego, da tentativa insistente de afastar mulheres do mercado, bem como perseguição violenta às populações negras e indígenas e o ataque aos movimentos sociais, todos atos que organicamente fazem parte desse mesmo sistema econômico a ser combatido. O poeta social do século XXI, então, está saturado de história, compondo canções de acordar, já que é impossível para este dormir, em um país cuja educação, precarizada e sabotada, faz questão de propagar narrativas colonialistas para manter as máquinas girando. Entre outros atordoantes poemas de "Coliseu Tropical", quinto livro de Viegas Fernandes da Costa, destaca-se este "A MÁQUINA", que sonoramente envolve o leitor em uma armadilha mecânica:

A máquina mói a gente
A gente cansa da máquina.
Mas a máquina, que não tem nervo nem músculo,
que põe a gente minúsculo,
esta não cansa da gente.
E seu ranger de cerrados dentes e azeitadas engrenagens,
e seu torcer persistente,
primeiro põe a gente doente,
depois desistente 
como um velho cuco sem vida.


O ano é 2021 e ainda, outra vez mais, cabe-se fazer uma poesia do prosaico e circunstancial; a despeito de leituras que contestam a possibilidade de se atrelar o discurso poético a qualquer territorialização, impõe-se ao poeta a necessidade de construção de um contradiscurso ao feixe discursivo, via publicidade, artes espetaculares, telejornais, redes sociais, escolas, etc, que moldam as massas ao gosto fascista no Brasil dos anos Bolsonaro (2018-2022?). Para resistir, a memória histórica e a individual convergem nesse livro, frequentemente pelo recurso da crônica e da narrativa, dado o objetivo do autor de relembrar a quem o lê acerca de outras formas de vida e relação com Gaia. Aliás, a palavra "terra" (terra como pertencimento, terra a ser ambientalmente protegida, como territórios imaginários da infância, como objeto da luta de classes, terra como solo) tem seus sentidos vários amplificados nessa obra, não só porque "o campo é nosso coliseu tropical", como o autor comprova a partir de diferentes olhares - sempre meticulosos, ancorado na leitura e anotação - para a história de SC (O nome Desterro aqui ganha força ao invés de Florianópolis) e do BR, mas também pela consciência de que, a despeito da incessante evolução tecnológica, cuja estetização e espetacularização são tão caras ao Estado necropolítico², nunca deixamos de ser barro, em contínuas trocas com a natureza:

VII MIGRAÇÃO

hoje sonhei contigo
estávamos sentados sobre as dunas
pescando o mar
duas baleias descansavam serenas
com seus filhotes
e a brisa nos devolvia os corpos
(...)

Logo, ao invés de celulares, o livro de Viegas contrapõe experiências lúdicas/corporais ("Eu que chutei latas de azeite na rua"[...]): são muitos os caminhadas/encontros (como as visitas do Ornitorrinco) nas imagens desse livro,  assim como as referências à transmissão oral de saberes, ou ainda os bilhetes como pontes de contato, como ocorre em "BILHETES QUE ERNESTO ENVIOU PELOS CORREIOS EM ENVELOPES COM ENDEREÇO DO REMETENTE DESCONHECIDO; os poemas-personagens, aliás, cumprem um papel importante em um livro que frequentemente se mostra referencial/denotativo, desaliviando o efeito cumulativo por meio do aforismo, do humor e da fábula.  Essa intenção circunstancial, transparecida  nas contínuas alusões nos poemas, e guiada por meio das "Explicações desnecessárias", ao final do livro, onde se referenciam alguns pontos de partida, parte deles extraídos do noticiário nacional, mas também outras da observação da natureza, bem como estudo da história e literatura de Santa Catarina, ou ainda extratos da memória, uma das forças motoras desse livro - essa intenção é o contraponto natural ao desejo de fazer da poesia um instrumento de intervenção no real. Esse processo pode ser percebido em diferentes momentos da poesia catarinense, mesmo antes da década de 60, quando o termo poesia social passa a concorrer (por mais discutível que o seja) com outros movimentos poéticos localizados naquele momento, ainda que não tenha contornos precisos quanto à forma. Afinal, não se trata de aderir a alguma moda, mas alçar a palavra à condição de discurso/debate, entendido como ação, algo percebido em parte da poesia significativa do simbolista Cruz e Sousa ou nas poéticas de Trajano Miranda e Ildefonso Juvenal no começo do século XX. A partir dos anos 60, as referências dessa poesia multiplicam-se³ pelo estado, inclusive na Blumenau, cidade natal de Viegas, com a poesia atuante de Lindolf Bell (poeta maior, Bell é uma referência declarada pelo autor de "Coliseu Tropical"), não apenas pelo conteúdo/forma dos textos mas também pelas iniciativas, junto com Alcides Buss, de divulgação da palavra poética - ação, enfim. Dessa forma, um sentimento de urgência/obrigação leva, por vezes, o poeta a abrir mão de outras poéticas, desinteressadas na missão de intervir diretamente no real por meio do registro crítico do que se passa em determinados datas/locais, para tentar acertar/acordar os habitantes desse aqui-e-agora:

"Tem este lugar onde o dia nasce poesia e clichê. Onde o dia nasce promessa. Onde o dia veste um pote de margarina. O diabo é que sempre há, na padaria da esquina em que tomo meu café, um televisor ligado no telejornal."

Chama a atenção o papel central que as leituras da história exercem no livro de Viegas. São frequentes na obra, por exemplo, as alusões a Canudos e Contestado, episódios em geral mal compreendidos pela população brasileira, cuja instrução formal, controlada pelo Estado-algoz, esforçou-se por ocultar ou adulterar a compreensão de duas das maiores tragédias do país. Para Rosa e Trevisan⁴, "discutir a Guerra do Contestado enquanto biopolítica é uma tarefa desafiante, já que não houve uma valorização consequente do acontecimento, porque o sofrimento e as barbáries não foram suficientemente elaborados e transformados em um valor cultural.". É, então, num campo marcado pela alienação histórica, circunscrito em um estado construído sobre violências recobertas por narrativas fantasiosas colonialistas, que Viegas - professor e historiador- joga, sempre buscando mostrar ao leitor quão integrados estão (não se tratam, como pode parecer, de "pontas") fatos históricos de um certo passado e um certo presente, que não pode ser lido de forma anacrônica - a criança morta à praia, como peixe, não está distante, sob uma arbitrária construção histórica, dos homens e mulheres mortos no Congo em nome da expansão colonial, posto que o mesmo sistema econômico as produziu, este mesmo que segue aí lançando celulares cada vez mais leves e mais funcionais:

"Presidente que manda atirar em cidadãos brasileiros é coronel", está escrito na ficção de Donaldo Schüler. O império caboclo de João e Zé Maria, Teodora e Maria Rosa, de Adeotado o flagelo de Deus. Dez mil mortos nas contas dos generais brasileiros que - e pandemia do século vinte nos mostrou - não sabem contar. Dez mil mortos apagados da biografia do Brasil escrita pelas historiadoras Lilia Schwarz e Heloisa Starling. Era o ano de mil novecentos e doze nas terras do Contestado. O dragão de ferro arrebentando a mata e ferindo a terra, o gafanhoto de aço semeando a morte. Pela primeira vez na história botaram gafanhotos de aço para semear a morte no céu. Na conta dos olhos que viram a terra calcinada, nove mil foram as casas queimadas, vinte mil as vidas humanas destruídas pelo Estado nacional.  

E assim, pensando o agora a partir do olhar para o passado, Viegas Fernandes da Costa "prevê" o futuro também, afinal é sabido, por quem ainda guarda algum senso, o esgotamento de recursos que fatalmente marca a continuidade da expansão da doutrina neoliberal pelo país. Esse poema, por exemplo, foi publicado antes do início do alargamento da faixa litoral de Balneário Camboriú e, mesmo não retratando diretamente esse fato, bem que o poderia ser. "Coliseu Tropical" é, pois, um retrato em movimento de um país, com seus estados e cidades tropicais, e um convite ao acordar para a tarefa de se repensar seu destino, partícipes que somos dessa história:

Tudo deságua nesse mar
o sol, os barcos, a lama
Também nossa infâmia
é alimento dos teus peixes
Nossa tristeza diluída nos rios
capilares de tua existência
Nossa insônia, gula, falta 
esparramada em tuas praias
no profundo dos teus abismos
onde brilham coloridas
assustadas aberrações.


¹ Não faltam exemplos de olhares preconceituosos da crítica literária a textos com viés participativo/social; vide, por exemplo, o modo como Antonio Hohlfeldt analisa as obras de Alcides Buss e Carlos Damião em "A literatura catarinense em busca de identidade", associando "madureza" de estilo ao desenvolvimento de outros temas que não o social.

² Para usar termo extraído dos versos do autor, cujos poemas estão repletos de referências da Literatura, História, Filosofia, etc.

³ Muitos nomes devem ser lembrados por algum estudo amplo que mapeie essas poéticas. Alguns ainda pouco lidos e pouco estudados como, por exemplo, Maura Senna Pereira e Ildefonso Juvenal.

 ⁴ROSA, Geraldo Antonio da Rosa; TREVISAN, Amarildo Luiz. BIOPOLÍTICA NA CATÁSTROFE DO CONTESTADO: CONTRIBUIÇÕES PARA REPENSAR A FORMAÇÃO DE PROFESSORES. Disponível em: http://www.anpedsul2016.ufpr.br/portal/wp-content/uploads/2015/11/eixo12_GERALDO-ANTONIO-DA-ROSA-AMARILDO-LUIZ-TREVISAN.pdf

25 de julho de 2021

Soneto Walfare

Os portoalegrenses, ali pelas cinco,

ocupam o ocaso na orla do Guaíba

entre skates crianças cervejas brincos

indistintos à luz, luxo e pindaíba.


Por aqui há espaços feitos para os ricos...

parque apenas se ampla e gratuita guarida,

do contrário, uma insípida urbe de ricos,

que aos domingos vão à praia ou Curitiba


comida, ônibus e, aos mais pobres, respeito 

tanto quanto espaços e malhas viárias:

só a equidade garante o parque perfeito


é preciso que se atenda esse direito:

à parte tantas flores e luminárias

entre esses parques, não há parques, prefeito.

15 de julho de 2021

Nas margens da língua, a linguagem neutra

    Em 1984, entre muitos outros hits, Lulu Santos e Paralamas destacavam-se nas rádios com versões para "Assaltaram a Gramática", composta por Lulu e o poeta Waly Salomão: "assaltaram a gramática / assassinaram a lógica/botaram poesia/na bagunça do dia-a-dia". Ao contrário do que o primeiro verso possa sugerir, a canção não defende nenhum ponto de vista conservador acerca da manutenção das características padronizadas da língua, e sim a subversão dessa linguagem - orientada, na canção, pela ação do poeta, ofício manejado por habilidade por Waly, que certamente ecoa na letra sua leitura do que concretistas, marginais, adeptos da poesia-práxis e outras correntes de experimentação linguística faziam com a língua portuguesa na década de 80, paralelamente às experimentações musicais de artistas como Lulu e Herbert, mesclando, por exemplo, o dub, o punk e o ska, ritmos que marcam a melodia de "Assaltaram a Gramática" e outros trabalhos das bandas. Alheios à concepção de que a língua está sempre em eterna transformação e que, mesmo os homens atribuindo-lhe uma estrutura aparentemente estável - o código, a norma, a tal Gramática do título - aquela segue seu caminho de absorção, remodelamento e criação de novas estruturas - morfológicas, sintáticas, semânticas e - por consequência - ortográficas, alguns parlamentares do país, em especial catarinenses, decidiram, nos últimos anos, combater a essência dinâmica das línguas, observadas desde sua origem, ao pretenderem determinar como a língua portuguesa deve ser usada no estado - refiro-me às recentes investidas contra a linguagem neutra nas Câmaras Legislativas catarinenses. 

    Perseguir uma língua, assaltando-lhe uma de suas características mais importantes, posto que lhe permite sobreviver e fortalecer-se em um mundo em contínua transformação (como o cantou Camões em seus sonetos) trata-se, evidentemente, de uma prática autoritária e burra. Esses projetos de lei, oriundos das cabeças ocas de deputades e vereadores de extrema direita, que sempre estiveram por aí, mas que pululam aos montes desde a ascensão de Jair Bolsonaro, após sua eleição em 2018, revelam-se arbitrários e infrutíferos como foram os atos de Maximiano, imperador de Roma que perseguiu a jovem e sábia Catarina de Alexandria que, mais além, por seus feitos, seria chamada de Santa Catarina - a padroeira (devido a sua inteligência e habilidade filosófica) de professores, estudantes, bibliotecários, advogados, ceramistas, todos eles de algum modo amantes da linguagem e conhecedores do caráter provisório e fervilhante de uma língua viva, que ora se expande, ora retrocede, mas sempre se renova, refletindo os múltiplos modos como os seres negociam valores, saberes e afetos através dos tempos. 

    Não precisamos sequer entrar no mérito da relevância de projetos de lei como esse, posto que vivenciamos a maior tragédia sanitária da história do estado de SC e do país, o que supostamente deveria demandar atenção máxima dos insignes legisladores à garantia de renda e bem-estar para uma população adoecida e endividada por conta da crise. Falemos do ponto de vista linguístico e social: os falantes não promovem mudanças (significativas) na língua que não sejam necessárias a sua existência, entendida aqui não somente como o ato de circular pelo meio, utilizando as estratégias (inclusive as linguísticas) de que necessitam para obter bem-estar mas, mais que isso, sobreviver. Lembremos, nesse ponto, que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. E o que muitas pessoas parecem não entender é que esse fato e o movimento ideológico em curso nas câmaras estaduais e municipais e federal estão diretamente conectados; esses deputades extremistas, com tais ações, colaboram para o extermínio da população LGBTQI+ em curso, uma vez que o discurso de suas falas raivosas possibilita a dispersão de valores ideológicos que normalizam exclusões e apagamentos sociais, o que rapidamente se transfigura em agressões e assassinatos, muitas vezes sem solução - os delegados, em sua maioria homens, parecem ter uma certa dificuldade em solucionar esses crimes em específico; Santa Catarina que o diga. No mesmo sentido, Sírio Possenti², renomade linguista, ao refletir sobre a linguagem neutra, convida-nos a olhar para além da gramática, sob uma perspectiva sociológica (sincrônica): o surgimento da linguagem neutra nasce do rompimento de barreiras sexistas por muito tempo sustentadas por homens, nas mais diversas estâncias de poder ainda vigentes na modernidade: os homens gramáticos (quais mulheres estudiosas da gramática conhecemos? Há muitas...), os homens no Jornalismo, os homens educadores, etc. Ainda, de acordo com Sírio, essa resistência às mudanças na forma como o corpo social usa a língua pretende, muitas vezes, isolar o caráter social da língua - como se isso fosse possível em uma debate legislativo, como este ao fim do qual o governador de SC, Carlos Moisés, sancionou a proibição de uso da linguagem neutra em espaços públicos e escolas.

    A discussão de tal tema é bastante complexa e deveria começar pela escuta de especialistas de diferentes áreas; de linguistas a representantes das organizações defensoras das minorias que advogam pela aceitação de tais modificações na língua, afinal é, sem dúvida, muito trabalhoso (mas não impossível) alterar um código/língua que concentra uma infinidade de usos, funções, responsabilidades e, sobretudo, poderes. Enquanto esse debate não ocorre seriamente, prosseguem os usos (com terminações/marcadores de neutralidade bem variados, visto que não há régua), e prossegue também o preconceito, inclusive por parte de pessoas que se julgam progressistas, o que reforça estigma e, em última instância, agressões. Nesse âmbito, a Linguística pode, entre outras atribuições, oferecer possibilidades/sugestão de uso de formas neutras de pronomes, substantivos, etc, sem que tais alterações perturbem³, por exemplo, o ensino escolar da língua e seu uso em repartições públicas. Tal área também, se ouvida, pode apresentar aos parlamentares um pouco mais sobre a história da língua portuguesa, oriunda do latim, uma língua na qual existia o gênero neutro - a evolução dessas formas para a formação do par masculino/feminino (sobretudo suas exceções e particularidades) nem sempre é bem compreendida por quem legisla. Definitivamente, não é o que vem ocorrendo nas Câmaras, como em Joinville, onde um projeto semelhante ao aprovado pelo Governador¹, para sustentar suas ideias, convidou, entre as 'autoridades' do assunto professores/influencers baseados não em seu saber na área da Linguística e sim em número de seguidores - como se constata no texto do projeto discutido em Joinville, que, entre outras intenções mais amplas, constitui uma evidente forma de limitar as manifestações de Ana Lúcia Martins, parlamentar que fez uso de termos neutros na tribuna em manifestações esse ano conforme a reportagem.
 
    Enfim, esse debate, atravessado por embates ideológicos, lembra de algum modo a falsa polêmica promovida por pessoas que advogavam e ainda o fazem contra o uso do termo "presidenta", a partir da eleição de Dilma Rousseff em 2010, mesmo havendo fundamentação linguística para isso. As únicas "leis" aceitáveis sobre aspectos morfológicos de uma língua são aquelas em torno do estabelecimento de uma gramática normativa (a definição de acordos ortográficos, por exemplo), necessárias para um adequado estudo de uma língua em âmbito nacional,  uma norma da qual muitos falantes sempre irão matreiramente escapulir, aqui & ali, nessas & naquelas situações sociais. Uma norma que pode sim ser alterada a fim de corresponder a interesses da sociedade, por exemplo, a proteção de "minorias". Assim, esses que enchem as câmaras de projetos superficiais nesse sentido querem soar como heróis patriotas, mas, na verdade, estão mobilizando recursos públicos para atirar contra um rio, que aliás possui mais do que 2 margens, alheio a binarismos, mas não esperemos que tais homens já tenham por ele navegado. Para esses, sugiro mais leitura e estudo antes de quererem determinar como o povo deve falar - leituras sobre linguística, mas também um pouco de poesia.

¹ note-se, ao longo do texto, o uso deliberado de alguns marcadores convencionais de gênero, posto que esse debate precisa ser aprofundado antes de resultar em exigências de uso e desuso - um dos graves vícios/carências dos projetos em voga.
 
² É importante observar que a posição de Sírio Possenti sobre esse assunto alterou-se. Aliás, vários projetos que tentam proibir o uso da linguagem neutra no país, inclusive o projeto de Willian Tonezi, na Câmara Municipal de Joinville, como também o do deputado estadual (RS) Ruy Irigaray
 utilizam uma frase antiga sua, de um artigo escrito em 2012, para sustentar suas argumentação contra esses usos. Alguém precisa avisá-los de que Possenti reviu tais posições, e essas encontram cada vez mais ecos entre os especialistas, bastando ver o número de trabalhos acadêmicos nesse sentido que vêm sendo publicados.

³ Um bom exemplo uso simples (e "inofensivo" à comunicação tradicional) de aplicação da linguagem neutra foi a utilização do pronome "elu" pela narradora Natália Lara para se referir a atleta Quinn, que se identifica com o gênero não-binário, em recente transmissão de futebol olímpico. Que tipo de prejuízo pode haver por conta de situações como essa? Com a palavra, os vereadores que não leem.

6 de junho de 2021

Os muitos mergulhos de "poço certo"

                                                             


    No texto 4# sobre obras da literatura catarinense publicadas nos últimos anos, um mergulho breve em "poço certo", primeiro livro de poemas do historiador e curador Fernando Boppré. Um bom livro começa por um bom título: ambíguo e sonoro, "poço certo" remete o leitor de imediato a uma série de referências e possibilidades interpretativas, desde aquelas ligadas ao senso comum e à cultura de massa, como a ideia de se estar no fundo do poço, que representa o estado degradante de tantas instituições brasileiras neste momento de nossa história, e que também se estende à percepção de muitas pessoas em face das doenças mentais, sobretudo nesses dois anos de pandemia da covid-19, até um diálogo possível com obras e conceitos da tradição filosófica e literária: Poe, Nietzsche, Irmãos Grimm, etc, por se tratar de uma metáfora ligada à profundidade e ao desconhecido e, no caso particular do título de Boppré, acrescida também de uma certa inevitabilidade também, o que acentua a ambiguidade: o destino a um tempo desconhecido e certo de quem nele se aventura. O poço, contudo, por mais fundo e certo, nem sempre é fatal, como se lê em Neruda

Si cada día cae
dentro de cada noche,
hay un pozo
donde la claridad está encerrada.


Hay que sentarse a la orilla
del pozo de la sombra
y pescar luz caída
con paciencia.  


(Pablo Neruda - Últimos Poemas)

    No lançamento da obra, realizado em 2020, promovido pela Caiaponte Edições, a partir de poemas escritos pelo autor anos antes, o autor destacou a história de composição dos poemas, atrelando às leituras possíveis a tematização da experiência com a depressão, e identificando a origem do título no nome de uma localidade situada nos limites de Alfredo Wagner, cidade no interior de SC. A explicação do título ready-made, tomado de empréstimo de uma gruta, naturalmente, não limita a potência desse nome, que aponta para alguns saltos e mergulhos dados no livro: quer seja para dentro de episódios históricos de Santa Catarina, ou para dentro de um quadro, ou para dentro de si mesmo, nos poemas em que o eu-lírico se revela explicitamente. Aliás, esse pode ser um dos percursos a se tomar na leitura desses textos: o confronto entre uma perspectiva íntima e particular da realidade e a análise meticulosa desta, às vezes mais sob uma ótica fisiológica do que racional, como se evidencia na primeira das 4 partes do livro, "Evidência e Extensão". Nesse primeiro quarto, prevalece a descrição e observação de elementos concretos, em diálogo direto com a poética cabralina, assinalado sobretudo no poema "Rock", no qual Homem (barro) e Rocha são confrontados por meio de sintaxe concisa e dura, forjada na escola das facas do poeta pernambucano. Em outros poemas desse segmento, cede o poeta às metáforas como no belo poema "Oceano":


A vasta e única extensão a que chamam
Mar não passa de Pasto afundado em
Sal e Água, corcunda que no Horizonte
se abaixa; desaparece e faz lembrar que
Lá longe se erguerá
E passará a se chamar
Continente

    Os recursos utilizados nessa primeira parte são bem variados, entre eles a composição de haikais com observações entomológicas no par "A infame cigarra"/"Achado", e também textos no qual se sobressai o olhar do historiador de Arte, novamente comprometido com o ready-made/colagem, ao apresentar, em "Pierre Prins', um fragmento em prosa com análise da técnica utilizada pelo pintor (parágrafo 1) e do entrelaçamento do conteúdo e forma, via técnica, e que surpreende o leitor em um novos mergulhos: dentro da luz do quadro/poço e do conceito de Representação. A presença do Eu se afirma explicitamente em outros poemas, como no par "Balneário I - só" e "Balneário II - grupo", às vezes de modo quase abrupto, como em "Gralha", que celebra as falastronas aves que compõem a geografia sulista, ameaçadas pelo desaparecimento das araucárias de nossa paisagem. "Crime  de desejo", "Cracas & Naves" e "Entrada" (em que a forma do poema sustenta, escora da linguagem melódica, o confronto entre as forças do peso e da gravidade) são alguns exemplos de como as mais elaboradas construções desse primeiro segmento (e do livro) afastam-se do discurso subjetivo, ainda que haja ali um olhar e, por vezes, uma fala, nos trechos em que, por meio do aforismo, o eu-lírico historiador/crítico/observador curioso da natureza insinua-se,  contribuindo para a leitura que, até então, então se fazia da realidade sob um ponto de vista objetivo/meramente óptico. Na segunda parte da obra, "Gente", o Eu tem espaço para se multiplicar em autorretratos e também em gestos de aproximação com pessoas próximas, como em "A partida"/"Arquivo", ou desconhecidas/afastadas em "Alto da costa", parceria com Giba Duarte, que impõe uma reflexão sobre algumas consequências desastrosas da modernidade - especificamente, nesse caso, da paisagem catarinense, o que enriquece a experiência de leitura desse livro em nosso estado. Aqui nesse segundo quarto está "Crime de desejo", uma bonita leitura/elogio à obra densa, poço profundo, composta pelo romancista Lúcio Cardoso, que nos remete à superioridade de algumas composições mais impessoais dentro do conjunto de poemas do livro. No caso desse poema, há novamente o exercício da colagem (mas sempre com materiais e estilos diversificados, o que engrandece o saldo final), ao justapor um comentário crítico sobre o autor a um trecho de sua obra. Não é o único poema que recorre com simplicidade e precisão à citação; podemos destacar aqui também a bela metáfora transcrita em "A história é o gesto com que passamos a manteiga no pão" - presente na terceira seção do livro "Vicissitudes"; poemas que remetem o estilo do autor a outro bardo-crítico conhecido pela versatilidade, Sebastião Uchoa Leite, que, entre outros procedimentos intertextuais, copiou e colou obras visuais em seus poemas. 

    No terceiro quarto do livro, repetem-se temas e recursos do anterior, e aqui novamente um Eu que ora se oculta em prol de perspectivas inesperadas, como a viagem por dentro de uma história da filofofia e das religiões em "Era Axial", ora se assume, muitas vezes pelo viés da autoironia, como no interessante texto que fecha o segmento, "A experiência de L-F. Céline", a partir de uma alusão ao gênio controverso. O tom confessional atinge aqui sua plenitude ao se conectar ao último quarto do livro, "Epílogo", que traz apenas uma página contendo dois fragmentos parafraseados da obra de Robert Walser e Walt Whitman, chaves que indicam o sofrimento que acompanhou o autor na construção da obra e da reflexão do artista, experimentada nos três primeiros quartos do livro, sobre a relação tensa entre Subjetividade, Captação/Apreensão da realidade e os caminhos da Representação na criação poética. Podemos ver isso em poemas distribuídos nas 3 partes primeiras em vários textos, como na bela construção visual de "Doze eixos", em novas críticas à realidade social e a um certo (certos?) conceito de História, e também neste a seguir (de "Vicissitudes), em que a narrativa breve humorística simula um salto rápido e profundo no poço certo da Criação, e que por isso bem poderia integrar-se à família dos textos galeanescos em "O Livro dos Abraços":

Carlos Ap

Alguns partes do pouco,

do quase nada.

Carlos Asp é um deles.

Artista, diz, inconformado, 

não ser preciso voltar

ao gênero da Paisagem

na pintura:

"Mas se eu já estou Nela?"

Em seus desenhos ele fala

Do céu, do azul, do mar verde,

Das pedras negras na areia grossa.

Tem vez lembra dos black holes,

Que conhece com a profundidade

De astrólogo, poeta e pecador.


22 de maio de 2021

Senhora dos Cânticos

 

    No texto 3# sobre livros publicados recentemente em território catarinense, uma leitura de "Pedra, poro, pele" (Ed. Micronotas, 2019), de Maria Cecília Takayama Koerich, uma celebração da liberdade e desejo sob a ótica feminina, e portanto obra oportuna para se pensar alguns caminhos e descaminhos trilhados por parte das autoras do estado nas últimas décadas.

Em 1971, ainda sob vigência do Estado Novo português, criado pela ditadura salazarista, o PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), órgão de censura de Portugal, impedia a circulação de uma série de obras consideradas subversivas, marxistas, comunistas ou ainda "imorais". Foi esse último termo que o PIDE usou para qualificar a obra "Minha Senhora de Mim" (Publicações Dom Quixote , 1971) - a obra apresentava 59 poemas, em evidente diálogo - paródico - com a tradição medieval como sugere o título, que focalizavam a experiência feminina de se estar no mundo, concentrando-se tematicamente nas experiências do desejo e do sexo. A obra foi considerada imoral e um "ataque à nação portuguesa", que naqueles dias estava já há décadas mergulhada em governos ditatoriais e, por extensão, fálicos. A esse cenário medíocre, no qual não se estava assegurada a liberdade de expressão, muito menos para o diálogo sobre as experiências de prazer feminino, Horta contrapôs uma poética desabusada, livre e formalmente transgressora ao atacar tabus erigidos desde a fundação de Portugal e que se encontram formalizados nos versos das cantigas medievais, por ela parodiados:

MINHA SENHORA DE MIM

Comigo me desavim

minha senhora

de mim


sem ser dor ou ser cansaço

nem o corpo que disfarço


Comigo me desavim

minha senhora

de mim


nunca dizendo comigo

o amigo nos meus braços


Comigo me desavim

minha senhora

de mim


recusando o que é desfeito

no interior do meu peito

 

    Superada a maré autoritária no país, Maria Teresa Horta firmou-se como uma das principais vozes da poesia portuguesa contemporânea, tornando-se seu livro amoroso um clássico e um dos mais belos livros eróticos da tradição lusa. Em proposta tematicamente similar, ainda que em outro contexto bem mais recente, o Brasil de 2019, porcamente administrado por Jair Bolsonaro, pequeno e ridículo como os outros ditadores com que se parece, destaca-se o livro "Pedra, pele e poro", de Maria Cecília, autora nascida em São Paulo e radicada em Joinville/SC, uma coleção de pequenos poemas de amor e gozo, escritos em linguagem ao mesmo tempo livre (formalmente, por vezes recorrendo à prosa poética) e densa, marcada por associações sonoras simples, que sustentam, por vezes, metáforas fortes ligadas à compreensão e expressão da sexualidade feminina. Sem título, os textos parecem por vezes compor um longo poema em fragmentos, no qual se impõe uma perspectiva livre de entrega e busca do amor, do sexo, por vezes entrelaçados na trama do poema,  regida pelo exame dos componentes materiais (a pedra, o poro, a pele) e psicológicos da experiência de ser mulher e de ser corpo a serviço de Eros - o que pressupõe não apenas a pesquisa livre e radical de novas formas de se obter prazer como também o cuidado com o corpo - os olhos nesse livro não apontam tanto para o objeto amado - o olhar da donzela - como se firmou tantas vezes nas epopeias e canções, quanto apontam para si mesma, onde às vezes há conflito e noutras plenitude, mas sempre descoberta. Não que lhe faltem armas para o jogo,  posto que a devoração do outro se inicia pelas mãos, pela boca, ou mesmo por instrumentos (de garfo e faca vou ao seu encontro), em constante renovação das infinitas coreografias possíveis entre corpos, corpo assumidamente erótico, que se acentue aqui o pleonasmo, como nesse livro se destaca o uso de alguns clichês recorrentes na tradição erótica - prática assumida por um eu-lírico que reconhece, nos gestos de si e de outrem, conquanto a busca pelo novo, a repetição de alguns gestos fundamentais do jogo amoroso:

Observo essas curvas:

contorno 

imagino Coisas tantas

e sinto o rosto queimar

será que pensas como eu?

que desejas escondida na timidez

o kama sutra, a janela indiscreta,

o beijo da mulher aranha

um clichê- seu michê

sua dama de companhia

amante

tudo e nada

mais e além

já passei do ponto

de revelar o que sinto

prefiro, anonimamente,

arder

    Ao buscar registrar um ato de escrevivência (aqui centrado na experiência de ser mulher nesse ponto da História), como explica no posfácio, Maria Cecília Takayama Koerich dialoga com as mulheres suas leitoras, como também com uma tradição das letras catarinenses, uma senda trilhada por mulheres de outras gerações, como Antonieta de Barros, Eglê Malheiros, Maura de Sena, cuja obra vem sendo recuperada por projetos de pesquisa e extensão da Universidade Federal de Santa Catarina e muitas outras autoras que compõem o instável conceito literatura catarinense aqui também tensionado pelo termo literatura feminina (que para Nélida Piñon deve ser chamada de escrita por mulheres*, e para outres sequer existe). Assim, o livro de Maria Cecília dialoga especialmente com as autoras dos anos 70 e 80 (o recorte aqui se restringirá à região Norte do estado), como Mila Ramos, Lucy Assumpção, Rita de Cássia Alves e Dúnia de Freitas, que celebram em sua poesia, entre tantas outras temáticas, as dores e delícias de ser mulher; ainda que, ao adotar uma perspectiva erótica sobre as escolhas anteriores, como fez Maria Teresa Horta em 71, Maria Cecília se diferencie das outras propostas cujas lentes transitam entre o sentimental, as investigações filosóficas e psicológicas, o misticismo, o retrato autobiográfico e o registro cotidiano na esteira dos marginais, em obras entre as quais se pode destacar "Danada" (Edições Ipê, 1990), de Dúnia de Freitas, cujo projeto gráfico de capa (que exibe o rosto sorridente e belo da autora, com seus cabelos curtos e óculos) e o título sugerem o registro livre da feminilidade e o confronto com a moralidade imposta por sociedade - ainda hoje - bastante patriarcal, que desagua, entre outros pontos, na formação de um sistema literário predominantemente masculino no sentido de que, embora haja inúmeras vozes femininas, à poucas são dadas o lume e as leituras merecidas. Ler Maria Cecília (este é o seu segundo livro de poemas), tal como ler Mila, Lucy, Patrícia, Rita, Maura, Antonieta, Urda, Elizabeth, Ryana, Ana, Bruna, Edla, Katherine e tantas outras, além de colaborar para o fim do questionamento cíclico em torno de conceitos atrelados a um certo sistema literário, que precisa superar seus déficits e contradições justamente por meio da recepção privilegiada da escrita feita por mulheres catarinenses, alimenta um raro prazer - de autocuidado e encontro com o Outro:

Irão constranger

pelas coisas que não fez

irão julgar

pelas coisas que fez

nada é superfície quando

se é mulher

as regras são rígidas

gaiolas pequenas

limite escasso - apertado espaço

sobreviver é desafiar o jogo

              sub

                          ver

                                     são

                         resistência


*Conforme SHARPE, Peggy. Entre Resistir e Identificar-se: para um teoria da prática da narrativa brasileira de autoria feminina. Florianópolis: Editora Mulheres; Goiânia: Editora da UFG. 2007.

12 de maio de 2021

Verde, Amarelo, Azul e Ódio



Lançado em janeiro de 2021, ano II da pandemia do
coronavírus, em Florianópolis, "Verde, Amarelo, Azul e Branco", editado de modo independente pelo autor, espelha a ignorância e ausência de empatia dos catarinenses no momento mais grave de sua história.

Na capa do livro, um pássaro morto sugere as cores de uma certa bandeira esquecida. O peito esmagado, ele mesmo bandeira, previne o seu expectador acerca da crueza que lhe aguarda. A profunda humanidade da prosa de Marco se materializa na construção de narrativas, aqui, muito próximas dos leitores. Se em seus livros anteriores já se observava o constante entrelaçamento dos gêneros conto e crônica (do qual se destacam textos como "Agarrar os silêncios" e "O estupro de Madhyamgram", de "Carnaval de cinzas", 2016, Editora Redoma) aqui essa mescla é forjada por meio de narrativas curtas, marcadas por períodos curtos e tensos - é a tentativa de ligação direta com o coração anônimo daqueles que, pelas timelines e caixas de comentários das redes sociais, exibem com orgulho um órgão de lata destituído de empatia pelos sofrimentos dos outros seres vivos. O permanente estado de angústia e estresse ocasionado pela pandemia que assola o começo deste século aproxima ainda mais o leitor dessas ficções-realidade - intenção para a qual colabora o vocabulário enxuto. Uma economia, aliás, importante em tempos de exaustão, pois, como Marco afirma em recente crônica para o Desacato, portal no qual mantém uma coluna, há um esgotamento de notícias. Há um esgotamento de pronúncia, pois estamos, há mais de um ano, numa nota infeliz e numa tarefa hercúlea de conscientizar as pessoas da necessidade urgente de haver muito cuidado uns com os outros. Diante desse estado de crise, o artista, já de antemão em conflito com os leitores, busca dialogar com aqueles que sofrem pelo luto e ainda mantêm firme o pacto coletivo de cuidado mútuo (supostamente um dever de todos), rebela-se contra a horda anticiência e lança luz sobre aspectos sociológicos da pandemia - em "OS HOMENS DETESTAM EUNICE", "A SAGA DE GILMARA" e "NÃO CHOVE NOS OLHOS DE MIRNA", três belos contos trágicos desse livro, evidencia-se a onipresente misoginia nas mais variadas camadas das vidas das protagonistas, que precisam por vezes travar também luta contra a miséria. Esses contos parecem a face inversa daqueles que exibem protagonistas homens propagando vírus e opressões às pessoas a sua volta, sejam crianças, adultas ou idosas - mas com explícita preferência por vítimas femininas. Conforme recente reportagem do portal Catarinas, SC é um dos estados mais feminicidas durante a pandemia. Estamos, pois, diante de um livro de ficções-realidade.

O cuidado com a linguagem no livro também se mostra no verso de Augusto dos Anjos (poeta moderníssimo) escolhido como epígrafe, extraído do belo soneto "Vandalismo" - meu coração tem catedrais imensas; ao passo que acena para a obra de Augusto, um apaixonado pela ciência que conectou Biologia , Filosofia e Arte sob ritmos alucinantes, a referência a Augusto também nos leva a todo um grupo de escritoras e escritores brasileiros, toda a classe artística enfim, que foram pouco lidos e celebrados, silenciados à margem de um sistema literário financiado pelo capital branco e patriarcal, como hoje, de modo análogo, silenciam-se especialistas/pesquisadores em um debate que deveria ser científico, mas é carnavalescamente tocado por apresentadores de tv, prefeitos, governadores, parlamentares e influencers digitais. O belo verso, também, parece nos lembrar que o desassossego  e rebeldia de Augusto dos Anjos dialoga com o estado espírito exaurido em que se encontram aqueles que lutam contra a maré de desinformação, mentiras e ataques sistemáticos a direitos básicos garantidos, fragilmente, por nossa Constituição - em especial a classe artística, que tem, no estado de Santa Catarina, o autor como um de seus principais representantes dada à contribuição de Marco como escritor, diretor, ativista cultural, pesquisador e professor. O livro conecta-se, assim, a "Harmonias do Inferno", que se abre com um verso de Baudelaire, outro rebelde maldito, ao apresentar uma resposta iconoclasta a uma sociedade caótica marcada pela ascensão de políticas neoliberais e desprezo pela vida humana nas mais variadas esferas sociais- e agora, desde 2016, administrada pelos guardiões imbecis de infames projetos de Estado.

Nos contos do livro, os narradores não poupam juízos morais às escolhas e crenças dos protagonistas. No terceiro conto, A MÁSCARA DE TEOBALDO, o personagem principal, um homem de 75 anos, arrogante como seu xará shakespeariano (lembre-se aqui que é entre brancos e idosos que o capitão cloroquina tem mais aprovação mesmo diante dos mil insultos à democracia e à ciência), acaba internado em virtude da contaminação pelo coronavírus. Recuperado após dura internação, continua a propalar discursos negacionistas, chegando ao ponto de ofender familiares que o corrigiam quanto às verdadeiras causas de sua contaminação e doença. A máscara do personagem é retirada ao longo de toda a narrativa, em sua escolha, tal como nas demais histórias do livro, de enfatizar comportamentos irracionais em face da pandemia - e da perspectiva da morte. Não contente com esse caminho discursivo que acentua para o leitor, frase a frase, dos descaminhos estúpidos dos cidadãos-personagens, o narrador emite, ao fim, um juízo de valor definitivo, que cai sobre o leitor como pena - "Teobaldo perdeu o único pingo da razão que o conectava à realidade". No conto anterior, situado no bairro do Itacorubi, a "pena" é ainda mais severa - Vinicius perde os avós, para cuja contaminação contribuiu diretamente ao ignorar o distanciamento social e visitar os parentes idosos. Compreende-se tal escolha estilística - nada desnecessária em uma sociedade surda à verdade científica - com o artista precisando gritar por sobre elaboradas algazarras -, mas notemos que, aqui, em "Verde, Amarelo, Azul e Branco" o julgamento moral explícito de boa parte dos contos contrasta com a composição das narrativas de "Harmonias do Inferno" (Editora Letra D'água, 2010), obra menos condescendente, que resistem como passeios (não guiados, ou melhor, não explicitamente guiados) pelos diversos círculos infernais que se escondem no interior das instituições (em crise) e das pessoas (doentes). Guardadas as diferenças, resta o saldo urgente dessas narrativas que são também cartas, crônicas, manifestos e urros contra um estado de coisas promovido não por vírus, mas por homens - com cor, saldo bancário e endereço. 


25 de março de 2021

Cinemateca Brasileira (1993, Ozualdo Candeias)

para cada segundo de filme, 24 fotogramas

é urgente que se digitalizam as nossas memórias todas

atirá-las numa grande e esquecida nuvem

aqui um dia já foi um matadouro

tombada a infância,

restam rolos e rolos

de adolescência em loop;

um vira lata fade out

e nem um pouco fedido

inaugura a obra ainda

em construção

quem sabe assim

governo e iniciativa privada

façam alguma coisa

algumas coisas precisam

ser celebradas assim

no improviso no depósito 

embebidos em nitrato e desejo:

o futuro, o cinema, a juventude

por exemplo


obs: sobre o mesmo tema, consultar também "Nitrato", curta também assistido.




7 de março de 2021

Rubens da Cunha, guardador de paisagens

Publicado em 2020 pela Andarilha Edições, editora artesanal da poeta e artista visual Deisiane Barbosa, o livro "a guardadora da ponta e outras biografias inventadas", de Rubens da Cunha, fortalece e renova uma poética fundada na geografia de paisagens, sejam elas naturais, afetivas ou místicas.

O termo "guardador" de imediato remete ao epíteto do guardador de rebanhos atribuído a Alberto Caeiro, face pessoana, mas atrelar a poesia de Rubens a uma outra obra ou autor constituiria equívoco; desde "Campo Avesso", lançado em 2001, o poeta catarinense/baiano constrói uma obra singular, marcada pela introspecção psicológica, meditação geográfica e precisão vocabular, ressoando, mas nunca a repetir, uma gama de autores para muito além do célebre português, de modo que o livro de Caeiro está para sua obra como também estão os livros de Manoel de Barros e João Cabral (entre uma gama de outros autores com os quais sua poética dialoga) que, a despeito de suas diferenças formais, irmanam-se ao sobrepor ao viés antropocêntrico/subjetivista a percepção e apreensão sensorial da natureza brasileira enquanto elemento fundamental de suas poéticas. No caso de Rubens, a experiência de migrar das paisagens catarinenses para o Recôncavo, com sua peculiar geografia de encontro de águas marítimas e fluviais, de matas e rochedos, renova um espírito atento à natureza desde os primeiros livros produzidos em Santa Catarina, que frequentemente evocam o vocabulário natural: "Campo Avesso" (2001, Editora Letradágua)"Casa de Paragens" (2006, Edufsc), "Curral" (2015, Editora da UFSC).  Como revelado em entrevista a Cláudio B. Carlos, em 2008, a infância e a adolescência do autor ocorreram no espaço natural do interior catarinense, o que ajuda a explicar o laço que há entre "a guardadora de pontes" e outros livros recém surgidos na literatura brasileira com inquietantes força e beleza, como "Torto Arado" (2019, Editora Todavia), de Itamar Vieira Junior, e "Batendo pasto" (2020, Relicário), de Maria Lúcia Alvim, cuja essência ressoa o universo rural brasileiro, marcado pela fabulação enquanto ato de resistência e de conexão profunda com os outros, com a terra e, por extensão, com as metáforas pastoris, aqui devidamente tropicalizadas pelo poeta baiano:

I

ao lado de cada rio
há derrames
rosas
bombas
e agressivos encontros nas margens

ao lado de cada rio
há tropeços
caminhos
trocas
e um fraco amor entupindo os bueiros

talvez haja até
dedos tripas cus

talvez haja até
baobás imersos
imensos alguidares

um e outro medo
e toda a solidão

Nesse contexto, o imaginário poético brasileiro está povoado de imagens sobre a Bahia construídas pelo olhar sentimental e exterior do poeta-turista-cantor - são inúmeras as canções sobre o desejo de voltar ou conhecer o estado, por exemplo. O livro de Rubens passa à margem dessa tradição ao propor um estudo imaginário por dentro desse espaço: é sobre o cotidiano da cidade, mas também o cotidiano das árvores, das garças, dos rios, que esse livro fala, enquanto desvela uma coleção de personagens, seja na condição de trabalhadores ou passantes - se a poesia moderna francesa nos relegou o ideal dândi, respondemos com o jovem João, esfinge brasileira na porta do bar:

"II

João é jovem.
Fica durante horas sentado nos batentes das portas
de bares e mercadinhos.

As pessoas já se acostumaram
É o João atrasado, dizem.

A todos nós, ele vê passar
A todo nós, ele olha como que filtrando-nos

Não é fácil enfrentar a mirada silenciosa de João Atrasado.

Mais do que nos filtrar
ele nos frita
e nos devora em seu atraso.

E assim, enquanto estuda personagens, Rubens se mostra um deles, ainda que os poemas, exceto o final, não lhe apontem as sombras, afinal tratam-se de biografias imaginárias; o poeta mostra-se no olhar, visto que aquele que olha é olhado/refletido também, sempre, como se percebe em uma das biografias do livro, na qual as aspas sugerem outras imagens para além das projetadas no poema e aí se tem, entre o real e o imaginado, dois artistas a conversar:

"III

Luiz vende frutas
Elas são cuidadosamente colocadas no carrinho de mão.
"É meu jeito de fazer esculturas"
e chora porque o cliente pediu a manga que se avizinhava das uvas,
destruindo a combinação entre melancias e seriguelas.

[...]"

João, Sandra, Luiz, e também Graça, a mulher que carrega garças brancas & invisíveis nos ombros; eis alguns personagens fantásticos desse livro cuja vida interior é retratada com amorosidade e familiaridade pelo poeta/paisagista, emigrante-morador. Não raro, em poemas divididos em seções, a primeira apresenta e descreve o rio personagem, a natureza-protagonista, para então surgir, na seguinte seção, uma biografia humana, como a da mulher à beira do rio-personagem a xingar os turistas. A poesia de Rubens da Cunha tende à interiorização afetiva-existencial desde os primeiro livros, como se constata no poema na leitura de "Campo Avesso" ou "Casa de Paragens". Como ensina Marco Vasques, em crônica/leitura do livro de Rubens, a palavra 'recôncavo' "significa cavidade funda, enseada, gruta, antro, cavidades entre rochedos, ou seja, ao recôncavo são dadas as matérias dos dentros, dos interiores, das pulsões visíveis apenas àqueles que se dispuserem à observação permanente dos silêncios dos abissados." Assim, nos poemas de "a guardadora de pontes", em paralelo à narração das biografias, por vezes completamente entrelaçadas, Rubens apresenta paisagens naturais e interiores, como quem diz que há uma força de rio e uma amplidão de campos gerais no interior de cada um dos moradores daquela terra; como quem aponta uma continuação/extensão do movimento das águas e dos pássaros nos movimentos da memória, crença e desejo no inconsciente. Tal relação já se percebia, com outras tintas e outros ares, nos livros escritos em Santa Catarina:

DA NASCENTE AO ESTUÁRIO

(Fragmento/penúltimo poema)

É sempre noite quando se finda um poema
(o rio concedeu suas águas para o mar)

O poeta enclausura-se outra vez vazio
e adormece ausente de qualquer palavra.

http://casadeparagens.blogspot.com/2011/03/el-perro.html

Chama atenção na construção dos versos de "a guardadora da ponte" a precisão rítmica dos poemas sustentada por uma série de aliterações, um recurso utilizado pelo poeta desde os primeiros livros, mas que encontra aqui novas cores e melodias, dada a incorporação das palavras, ritmos, entidades e imagens que só se encontram no Recôncavo: 

"O corpo de Sandra nada pesa sobre a terra. 39 quilos, 60 anos.

[...]

Santa e sibilina
passa os dias assim,
sem deixar os passos na terra.

Apenas o Subaé é capaz
de senti-la ancestre,
de sabê-la
a Nanã pesada e lodosa que ela é."

Aproveite-se esse poema para se ressaltar o caráter feminino do livro, apontado na escolha do título, ainda que entre os personagens desfilem homens e mulheres feitas das mesmas carne e dor humanas . Um feminino que reconhece nas águas dos rios um elemento atávico de conexão com outro tempo, muito distante do Brasil milico-patriarcal de 2020. No poema final, que fecha este texto como um convite à leitura de "a guardadora de pontes e outras biografias inventadas", mas também da obra completa desse autor entre o Sul e o Norte, o autor cede à primeira pessoa, remetendo-nos a seu trabalho de cronista (do qual emergiu "Aço e Nada", coletânea publicada em 2007 pela Design Editora), em um texto pessoal, em que o fabulador de biografias revela um pouco de sua própria história no Recôncavo, ainda em curso/escritura:





16 de fevereiro de 2021

A sala da febre


aqui é a sala da febre

não se aceita outro estado senão a sezão

não se aceitam outros corpos sequer os febris

se aqui queres estar, venha ardendo

do contrário, mandamos todos para casa

não nos interessa o atropelamento

o edema o trauma o miocárdio apodrecido

salvo esteja o coração envolto em chamas

salvo seja a febre a esquina o motor o choque e a sepse

há mesas cadeiras paredes mas não energia

é preciso que a pessoas a tragam de casa

essa é a sala da febre

um conjunto de salas compõe um parque febril

aquilo que faz a febre é o corpo

as pessoas apenas a trazem e por isso não interessam

essa é a sala da febre

favor deixar apenas a febre entrar

as pessoas são acompanhantes

e devem aguardar lá fora



Arte: "A Clínica Agnew" (1889), de Thomas Eakins.

7 de fevereiro de 2021

J. R. R. Tolkien fala sobre os contos de fada

 Por ora só direi isto: um "conto de fadas" é aquele que toca ou usa o Reino Encantado, qualquer que seja seu propósito principal, sátira, aventura, moralidade, fantasia." (p. 10)

"Há uma ressalva; se houver alguma sátira presente no conto, há uma coisa da qual não se deve zombar: a própria magia. Naquela história ela deve ser levada a sério, sem escárnio nem explicações que a invalidem. Dessa seriedade o conto medieval Sir Gawain e o Cavaleiro Verde é um exemplo admirável."(p.12)

"A magia do Reino encantado não é um fim em si, sua virtude reside nas suas operações, entre elas a satistação de certos desejos humanos primordiais. Um desses desejos (como veremos) é entrar em comunhão com outros seres vivos. Assim, uma história não poderá tratar da satisfação desses desejos, com ou sem operação de máquina ou magia, e na medida em que tiver êxito aproximar-se-á da qualidade e do sabor do conto de fadas." (p. 13)

Perguntar qual a origem das histórias (não importa como estejam qualificadas) é  perguntar qual é a origem da linguagem e da mente." (p. 17)


Em "Árvore e Folha", de J. R. R Tolkien, 2013, Editora Martins Fontes.

Tradução de Ronald Eduard Kyrmse



11 de janeiro de 2021

a natureza joga sem choro

a perda e metamorfose

Não há mais rinocerontes negros ocidentais

Nem rinocerontes brancos do Norte

Mas há em compensação

abelhas coloridas com fipronil

ideais para se misturar

aos cereais diarreicos matinais

Não há mais ursos polares

posto que não há mais polos

o gelo que por acaso resta

é mera quimera de pinguins 

embriagados de tiacloprido

Não há mais meros, 

e com eles a noção de medo e perigo

perdeu o mar a sensualidade e as festas que só

em águas profundas se podiam forjar

dia triste cheios de ais

para poetas e vendedores de picolé

que veem minguar os encontros, as imagens e as tatuíras 

a lira está em promoção 

só hoje!

enquanto durarem os cardumes

Não há mais imensos tigres

mas cada vez mais

eletroinsetos peixetilenos dinotefurões

tomando corações de assalto

contra o céu paraquático  

plana o belo glifosato

com suas asas cancerígenas

abençoando a chuvachumbo e as sulfoxaflores

a natureza toma em silêncio

a saída discreta pelos fundos

ciente de que sumir 

também é se transformar.