Publicado em 2020 pela Andarilha Edições, editora artesanal da poeta e artista visual Deisiane Barbosa, o livro "a guardadora da ponta e outras biografias inventadas", de Rubens da Cunha, fortalece e renova uma poética fundada na geografia de paisagens, sejam elas naturais, afetivas ou místicas.
O termo "guardador" de imediato remete ao epíteto do guardador de rebanhos atribuído a Alberto Caeiro, face pessoana, mas atrelar a poesia de Rubens a uma outra obra ou autor constituiria equívoco; desde "Campo Avesso", lançado em 2001, o poeta catarinense/baiano constrói uma obra singular, marcada pela introspecção psicológica, meditação geográfica e precisão vocabular, ressoando, mas nunca a repetir, uma gama de autores para muito além do célebre português, de modo que o livro de Caeiro está para sua obra como também estão os livros de Manoel de Barros e João Cabral (entre uma gama de outros autores com os quais sua poética dialoga) que, a despeito de suas diferenças formais, irmanam-se ao sobrepor ao viés antropocêntrico/subjetivista a percepção e apreensão sensorial da natureza brasileira enquanto elemento fundamental de suas poéticas. No caso de Rubens, a experiência de migrar das paisagens catarinenses para o Recôncavo, com sua peculiar geografia de encontro de águas marítimas e fluviais, de matas e rochedos, renova um espírito atento à natureza desde os primeiros livros produzidos em Santa Catarina, que frequentemente evocam o vocabulário natural: "Campo Avesso" (2001, Editora Letradágua)"Casa de Paragens" (2006, Edufsc), "Curral" (2015, Editora da UFSC). Como revelado em entrevista a Cláudio B. Carlos, em 2008, a infância e a adolescência do autor ocorreram no espaço natural do interior catarinense, o que ajuda a explicar o laço que há entre "a guardadora de pontes" e outros livros recém surgidos na literatura brasileira com inquietantes força e beleza, como "Torto Arado" (2019, Editora Todavia), de Itamar Vieira Junior, e "Batendo pasto" (2020, Relicário), de Maria Lúcia Alvim, cuja essência ressoa o universo rural brasileiro, marcado pela fabulação enquanto ato de resistência e de conexão profunda com os outros, com a terra e, por extensão, com as metáforas pastoris, aqui devidamente tropicalizadas pelo poeta baiano:
Iao lado de cada rio
há derrames
rosas
bombas
e agressivos encontros nas margens
há tropeços
caminhos
trocas
e um fraco amor entupindo os bueiros
dedos tripas cus
baobás imersos
imensos alguidares
um e outro medo
e toda a solidão
Nesse contexto, o imaginário poético brasileiro está povoado de imagens sobre a Bahia construídas pelo olhar sentimental e exterior do poeta-turista-cantor - são inúmeras as canções sobre o desejo de voltar ou conhecer o estado, por exemplo. O livro de Rubens passa à margem dessa tradição ao propor um estudo imaginário por dentro desse espaço: é sobre o cotidiano da cidade, mas também o cotidiano das árvores, das garças, dos rios, que esse livro fala, enquanto desvela uma coleção de personagens, seja na condição de trabalhadores ou passantes - se a poesia moderna francesa nos relegou o ideal dândi, respondemos com o jovem João, esfinge brasileira na porta do bar:
"IIJoão é jovem.
Fica durante horas sentado nos batentes das portas
de bares e mercadinhos.
As pessoas já se acostumaram
É o João atrasado, dizem.
A todo nós, ele olha como que filtrando-nos
ele nos frita
e nos devora em seu atraso.
"III
Luiz vende frutas
Elas são cuidadosamente colocadas no carrinho de mão.
"É meu jeito de fazer esculturas"
e chora porque o cliente pediu a manga que se avizinhava das uvas,
destruindo a combinação entre melancias e seriguelas.
[...]"
João, Sandra, Luiz, e também Graça, a mulher que carrega garças brancas & invisíveis nos ombros; eis alguns personagens fantásticos desse livro cuja vida interior é retratada com amorosidade e familiaridade pelo poeta/paisagista, emigrante-morador. Não raro, em poemas divididos em seções, a primeira apresenta e descreve o rio personagem, a natureza-protagonista, para então surgir, na seguinte seção, uma biografia humana, como a da mulher à beira do rio-personagem a xingar os turistas. A poesia de Rubens da Cunha tende à interiorização afetiva-existencial desde os primeiro livros, como se constata no poema na leitura de "Campo Avesso" ou "Casa de Paragens". Como ensina Marco Vasques, em crônica/leitura do livro de Rubens, a palavra 'recôncavo' "significa cavidade funda, enseada, gruta, antro, cavidades entre rochedos, ou seja, ao recôncavo são dadas as matérias dos dentros, dos interiores, das pulsões visíveis apenas àqueles que se dispuserem à observação permanente dos silêncios dos abissados." Assim, nos poemas de "a guardadora de pontes", em paralelo à narração das biografias, por vezes completamente entrelaçadas, Rubens apresenta paisagens naturais e interiores, como quem diz que há uma força de rio e uma amplidão de campos gerais no interior de cada um dos moradores daquela terra; como quem aponta uma continuação/extensão do movimento das águas e dos pássaros nos movimentos da memória, crença e desejo no inconsciente. Tal relação já se percebia, com outras tintas e outros ares, nos livros escritos em Santa Catarina:
(Fragmento/penúltimo poema)
Chama atenção na construção dos versos de "a guardadora da ponte" a precisão rítmica dos poemas sustentada por uma série de aliterações, um recurso utilizado pelo poeta desde os primeiros livros, mas que encontra aqui novas cores e melodias, dada a incorporação das palavras, ritmos, entidades e imagens que só se encontram no Recôncavo:
"O corpo de Sandra nada pesa sobre a terra. 39 quilos, 60 anos.passa os dias assim,
sem deixar os passos na terra.
Apenas o Subaé é capaz
de senti-la ancestre,
de sabê-la
a Nanã pesada e lodosa que ela é."
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