28 de março de 2009

O dadaísta

Batom nas paredes
Vasos chineses viram arte cubista
Cortinas de renda, arte abstrata
Na cozinha, uma curiosa instalação:
pegadas de lama no piso branco.

O artista se decompôs em arte nonsense
para expressar sua agonia.
Um grito como o de Münch, silencioso:
um grito que pede atenção.


(Dezembro de 2007)

21 de março de 2009

Encontro ao acaso

Encontro ao acaso
Aos pés do ocaso
Ele declama Cacaso
Ela faz pouco caso
Mesmo assim, ata-se o caso
Após um tempo sofrendo com o descaso
O coração dele pergunta ao vaso:
“Querida planta, será que ela se casa?”
“Eu caso”, dizem ambos ao padre Cássio.

A lua-de-mel para inaugurar a nova casa
É noite tórrida que tudo arrasa
(corpos entrelaçados em tela cubista de Picasso)
Ela diz, “meu corpo é tua casa”
Ele responde com um beijo, um forte amasso
E com uma declaração gostosa, porém casta
E esse baile de amor dura anos ao som de uma canção devassa
Enquanto isso, o acaso, que tudo assiste, se afasta
Vai contar as novidades para o ocaso
Contará que o amor tudo transpassa
Para poder tranquilamente afogar-se num oceano raso.

(2007)

14 de março de 2009

Eterno torpor

---Hã?

Estava deitado. Minha mente, agindo como um velho computador, revelava os detalhes do ambiente aos poucos, sistematicamente. Vi um guarda-roupa à esquerda da cama. Acima de meu corpo, giros e giros silenciosos de um ventilador. Surgiu uma cadeira. Surgiu uma mulher sobre ela. Surgiu um par de olhos fixos em mim, me interrogando com virulência. Eu não distinguia qualquer som: somente rugas dançando, e uma boca em movimentos nervosos de afogado. Essa mulher parecia ser minha esposa.

---Hã? (só conseguia dizer isso.)

Estava confuso. Nada fazia sentido. Mais alguém entrou no meu quarto. Parecia minha filha. Distingui os primeiros sons: dinheiro-fora-água. Quem disse aquelas palavras? Não sabia. Invadiu o ambiente, uma canção de rock. E a mulher ali, contorcendo sua boca, a me fitar. O que queria?

---Hã?
---Você tá bêbado? Drogado? Levante-se!

A confusão aumentava. Ergui meu corpo, e enconstei-me na cabeceira da cama. Acabara de acordar, com certeza. Entretanto, sentia uma sensação de entorpecimento no corpo muito incomum. Como se eu ainda dormisse, mesmo estando acordado. Como se eu ainda estivesse acordando. Lentamente, eu acordava de um grande sono. A canção de rock continuava. A mulher, agora, já estava de pé, movimentando-se de forma preocupada. Olhava pra mim, olhava pra menina, que é lógico, era minha filha. Sim, era ela.
Um cheiro de carne assada se misturou com o som do rock. A mulher, ou melhor, a minha mulher falava muito, mas eu só assimilava algumas palavras. Palavras com um cheiro ruim: hospital-droga-noite-falar-ouvindo, ouvindo, ouvindo...

--- Sim, eu estou te ouvindo - falei.
--- Então me diga: o que eu disse?
--- Hã?

Com rapidez, a mulher se aproximou de mim, e sentou na borda da cama. Senti que ela queria me acariciar ou me bater: um dos dois. Nada fez, e eu fiquei com a dúvida até novas sensações me distraírem. Durante alguns minutos (quantos?) várias imagens, aromas e sons dançaram sobre a minha cabeça. Com as duas (Marina, minha mulher e Duda, minha filha) ao redor da cama, adormeci.

--- Vum-Vum-Vum.

Sou péssimo com onomatopéias. Mas foi isso que ouvi logo que reabri meus olhos. As pás do ventilador giravam, giravam e giravam... e aquele som me pareceu extremamente familiar. E calmo. E tedioso. E eterno.
Não sei quando tempo fiquei ali deitado, até Marina entrar no nosso quarto. Deitou-se a meu lado. Tinha o rosto calmo. Aconchegou-se a mim, sem dizer qualquer palavra. No ambiente, nenhum sinal daquelas estranhas sensações. Sua fala era pausada e compreensível. Suas palavras soavam comuns: não tinham cheiro nem sabor. Palavras, apenas. Minha filha também entrou. Pediu dinheiro. Iria sair.

--- Onde vais? -Perguntei. Fiz isso com uma fala que soou mecânica, como soam as falas dos atores medíocres.
--- Sair. Cair fora. Mas não se preocupe. Só vou tomar água.

Marina sorriu. Duda sorriu e partiu. Eu não fiz nada. Como sempre, não fiz nada.
Marina fixou aqueles seus olhos pequenos em mim e sorriu. Falou em sairmos. Falou em ficarmos. Minha mente, velho computador, não reconhecia aquelas palavras. Eram perfeitas, fáceis de serem assimiladas. O sorriso de Marina era bonito. A música que vinha da sala era boa, agradável. Mas minha mente estranhava. Como se aquela sensação estranha, que me havia atingido há pouco, houvesse retornado. Uma sensação de estranhamento, de recusa ao ambiente que me rodeava. Agora eu entendia perfeitamente tudo o que estava à minha volta. Mas ainda me sentia estranho. Uma estranheza calma, tediosa. Eterna.
Marina ainda sorria, fitando-me. Disse que eu estava distraído, com o pensamento em outro lugar. Quis dizer que estava totalmente em outro lugar. Eu era outro lugar. Como sempre, não disse nada.
Ela, um pouco receosa, talvez me estranhando, enlaçou meu corpo como se eu estivesse querendo fugir. Mas eu estava calmo: Lucidez; Eterno; torpor: Entorpecimento.
Como sempre, não pretendia fugir.
Ainda desconfiada, perguntou-me se eu ainda a amava.
Minha mente, velho computador, pensou e pensou e pensou. O ventilador girava, girava e girava...
Ante o meu silêncio, ela insistiu. E então, amava ou não amava?

--- Hã?

Isso saiu calma e naturalmente. Não havia mais nada a dizer. Comecei, então, a perceber que todo aquele ambiente me gritava algo. A cadeira, a respiração calma de Marina, o barulho do ventilador: tudo me dizia que eu precisava, urgentemente, fugir daquele lugar.

9 de março de 2009

A santa graça de um domingo

Em meio à mansidão pastoril,
um bebê chora, uma senhora chora,
e o mundo parece ter parado.
---Orai!Orai!O salvador logo virá!
E todos dormem na santa paz da missa.
Mas, eis que surge
correndo pelo corredor principal,
uma mulher gritando.
Ensanguentada, roupa rasgada,
os seios à mostra e o corpo em carne viva.
---Onde está Deus? Digam-me!
Então o bebê calou-se,
A senhora sorriu,
começou a chover,
o padre disse rapidamente:
---Ide em paz e que Deus vos acompanhe!
---Graças a Deus, respondeu-se em balidos.
E logo a segunda-feira se fez.

Agora, carros e sapatos tamborilam sobre o ceú negro da cidade.
Enquanto a mulher, aquela mulher invisível,
continua aos pés de Cristo,
no altar,
agora vazio.

7 de março de 2009

Advertência

Aviso a todos os que leem essas palavras,
que não há nada de empolgante aqui.
O que havia de belo você, leitor, não viu:
as aventuras, meus desejos,
meus erros e medos agora são pre-história
pré-poema
pré-parto
pré-fico
pré-estado.
o que disse e o que senti,
tudo isso jaz, a partir de agora,
em cavernas:
meus beijos, meus olhares, meus gritos:
todo o meu passado em pictografia;
rabiscos oníricos de criança.

Leia meu livro. Seja ator, e finja que me conhece ao ler as palavras que desenho,
mas saiba que este aqui não sou eu.
Você, leitor,
é um desconhecido com quem eu, eu-mesmo, esbarrei,
há um segundo atrás,
antes de pegar uma pedra lascada e escrever esse poema.