26 de fevereiro de 2023

Bruno e Dom

Bruno e Dom
têm nomes e dons
rostos, vozes, histórias
e o peso do nosso luto, se somado,
não dá uma grama do peso que há
no peito da família que os ama
não vence o frio que deixaram
sobre as camas (sem chama)


É sempre assim:
a comoção nos toma e nos inflama
mas a internet é um solo que não pega fogo
(sem chama).

Cuidar dos vivos
é saudar os mortos
cuidar dos mortos
é fazer justiça
e para fazer justiça
é preciso manter vivos
os vivos.

Bruno e Dom
Brunas e Donas
Bruno e Dom estão em Palhoça agora
e precisam de nossa ajuda
Bruno e Dom estão ali na beira da BR101
nas comunidades e aquilombamentos
e por vezes vêm para o centro das cidades
pedir o fim do marco temporal, da violência, da fome
e precisamos ajudá-los.

Bruno e Dom tem fome
mas sua cidade não tem restaurante popular
se chamam Chico Mendes, Dorothy Stang, Berta Cáceres,
Vitor Guarani Kaiowa,
precisamos descobrir-lhes seus novos nomes e novas formas
(a luta é a mesma, desde há muito);
Bruno e Dom também se chamam
Bruna Andrade e Isabella Colst
mulheres trans assassinadas nos Ingleses
em outro crime sem solução.
É sempre assim:
a comoção nos toma e nos inflama
mas a internet é um solo que não pega fogo
(sem chama)

Cuidar dos vivos
é saudar os mortos
cuidar dos mortos
é fazer justiça
e para fazer justiça
é preciso manter vivos
os vivos

Uma poética TDAH II

enquanto cruzamos o Túnel Antonieta de Barros

ouço conselhos de Marco

você precisa se organizar

falo isso porque te amo e te quero bem

e sei que o mundo devora quem dá bobeira

é noite e eu fico calado pensando 

procurando uma forma de explicar

a ele que há 31 anos eu sei isso

e me esforço para não ser devorado

para eu mesmo não me devorar

depois já é a rua Hercílio Luz

e em outro cruzamento

um grupo de homens cishet

passa pelo slam a

debochar do varal de 

poesias amorosas

o medo que senti

relatei a WD

para quem a poesia é 

também - pressenti

a penúltima chance de 

se entender 

como faço para minha 

mensagem calar fundo

lá onde a dor ainda 

não tem nome e forma?

respiro fundo

e na dúvida entro

em outro túnel

21 de fevereiro de 2023

Demi II


Mexa comigo porque ando só.
Em amores perros me consumi
e renasci das cinzas desse pó
da zona cinza em que o amor
demi nasce e não se encerra
renasci mais forte, mais seguro,
mais gostoso, melhó...

Mexa comigo porque ando só
forjado em rebeldia e fogo no rabo
me faço demiurgo
e pela noite te procuro
de bar em bar,
de ave em ave,
nos motéis em São José
nas piscinas naturais da Lagoa
onde sinto medo e já não dou mais pé
ali também, pessoa, te procuro
meu corpo arde sobre camas estranhas
os sentidos do amor eu apuro
adivinho de sonhos e de sanhas
desejo extraído de entranhas
me abro em relações sem senhas
a ali me aventuro (e ali te procuro)

contrasenso amar um único fruto
que uma, hora, como tudo!
se corrói, por sua natureza,
muito antes amar a madureza
os frutos e seu processo
nosso amor em contínua negação
da ideia de progresso
sem medo de dizer
RETROCESSO!,
volto, me expurgo,
saio sozinho pela noite
mergulho no escuro
de encontro ao passado
eu e você lado a lado
de olho no futuro que não
cessa de nos acontecer

Mexa comigo por ando só
a cachorrada poliamorosa
não dispensa um xodó
o que se leva dessa vida
é o que se come o que se bebe
o que se fuma e o que se goza
o que se, namora, enfim, e só!
Por isso venha sem dó
com vinho e com massagem
para lamber os cantinhos do corpo
e não deixar crescer ali o pó
para envolver tuas coxas
às minhas axilas e inventar
marinheiros que somos 
um novo tipo de nó 
Mexa comigo, que eu deixo,
consentimento e com sentimento,
que é como se viramos
no vale demissexual
venha que ainda é carnaval
e é um desperdício eu e vc 
nesse samba de uma nota só
mexa comigo, que eu deixo,
mexa comigo porque ando só.

Felice

Quero sempre sonhar com você
Porque de você gosto demais
Quero sempre sonhar com você
Porque olhar já não posso mais
Sonhar é ver dormindo e deitado
Entre os bichos e a relva
sentir medo à posição ereta
de ser flagrado em sua 
própria casa.

À custa me levantam
o despertador
inimigo número um 
da onirografia
institui a quarta feira 
de cismas e a imagem
velha que vc faz de mim alija.

Aí morro, em eternidades falecidas,
bem longe dos teus cabelos
e mergulho na luz 
embotada do real
já há muito despida
de sensualidade.

2 de fevereiro de 2023

Cachorrada II

em "Betsy", de rubem fonseca,

a voz narrativa oculta o binário

homem-animal em prol de um bios

comum: acordo e me refestelo

(preguiçosamente!) na cama

com medo das feridas que há

para se lamber ao longo do dia.


em "Clau", de liniker,

o jogo é breve - por um instante

todes comemos escondidos

alguma coisa de nossas mães;

passado o pito, volta o cão 

na palavra 'você'; só não voltam

pra perto você, Betsy e outras nuvens

choradas nas caixas de luto e afeto.


que cruzamentos haveria

entre o queer e o animal?

se pergunta gabriel giorgi

parece que em mim também

se apetecem travessias singulares

em tardes de praia limiares

uns olhos que eram negros

um, dois, téo:

agora são mais castanhos

o pelo que era negro e escorrido 

o meu cheiro preferido

um, dois, téo:

aqui se crispa entre as mãos

a palavra você, entãose afasta

guapeca, guaipeva,

sem rastro, sem choro,

sem olhar para trás.

Cachorrada I


em Copacabana Mon Amour (1970), de Rogério Sganzerla, no minuto 01:09:22, o trabalhador, após matar o patrão, desfila pelo morro, enquanto dois cachorros de última hora tomam isso por um convite à farra geral na América.

em Linha de montagem (1983), de Renato Tapajós, no minuto XX:XX, enquanto um grupo de mulheres confraternizam-se à saída da fábrica, um catioro de rua de pelo preto passa por trás do proletariado e acessa a fábrica para implodi-la.

em Nitrato (1974), de Alain Fresnot, por alguns segundos, em meio ao inventário do abandono, surge, na tela, paulo emílio salles gomes, gato ao colo, a falar sobre bichanos e por isso o cinema não acaba a despeito de tantos atentados dos nossos caudilhos.

Na abertura de La teta asustada (2009), de Claudia Llosa, os perritos observam as tradições peruanas dispostas à mesa e torcem para que o Capital lhes deixem alguns nacos.

em Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (2018), de Renée Nader Messora e João Salaviza, os cães do povo Krahô, que nunca viraram latas na vida, celebram, entre os vivos, os mortos, cientes de que são parte igual da natureza - a serem chorados e amados também, por que não?

em A carrocinha (1955), de Agostinho Martins Pereira, Mazaroppi vive a fábula reencenada em cada esquina brasileira: o Novo Poder tem uma idade, uma cor e um gênero e odeia perritos de rua tanto quanto odeia pobres. Os próprios cachorros oferecem ao povo a saída (feminina) para nossos problemas américos: a tomada das ruas (femininas), donos que somos de nossas guias (explosões).