25 de julho de 2021

Soneto Walfare

Os portoalegrenses, ali pelas cinco,

ocupam o ocaso na orla do Guaíba

entre skates crianças cervejas brincos

indistintos à luz, luxo e pindaíba.


Por aqui há espaços feitos para os ricos...

parque apenas se ampla e gratuita guarida,

do contrário, uma insípida urbe de ricos,

que aos domingos vão à praia ou Curitiba


comida, ônibus e, aos mais pobres, respeito 

tanto quanto espaços e malhas viárias:

só a equidade garante o parque perfeito


é preciso que se atenda esse direito:

à parte tantas flores e luminárias

entre esses parques, não há parques, prefeito.

15 de julho de 2021

Nas margens da língua, a linguagem neutra

    Em 1984, entre muitos outros hits, Lulu Santos e Paralamas destacavam-se nas rádios com versões para "Assaltaram a Gramática", composta por Lulu e o poeta Waly Salomão: "assaltaram a gramática / assassinaram a lógica/botaram poesia/na bagunça do dia-a-dia". Ao contrário do que o primeiro verso possa sugerir, a canção não defende nenhum ponto de vista conservador acerca da manutenção das características padronizadas da língua, e sim a subversão dessa linguagem - orientada, na canção, pela ação do poeta, ofício manejado por habilidade por Waly, que certamente ecoa na letra sua leitura do que concretistas, marginais, adeptos da poesia-práxis e outras correntes de experimentação linguística faziam com a língua portuguesa na década de 80, paralelamente às experimentações musicais de artistas como Lulu e Herbert, mesclando, por exemplo, o dub, o punk e o ska, ritmos que marcam a melodia de "Assaltaram a Gramática" e outros trabalhos das bandas. Alheios à concepção de que a língua está sempre em eterna transformação e que, mesmo os homens atribuindo-lhe uma estrutura aparentemente estável - o código, a norma, a tal Gramática do título - aquela segue seu caminho de absorção, remodelamento e criação de novas estruturas - morfológicas, sintáticas, semânticas e - por consequência - ortográficas, alguns parlamentares do país, em especial catarinenses, decidiram, nos últimos anos, combater a essência dinâmica das línguas, observadas desde sua origem, ao pretenderem determinar como a língua portuguesa deve ser usada no estado - refiro-me às recentes investidas contra a linguagem neutra nas Câmaras Legislativas catarinenses. 

    Perseguir uma língua, assaltando-lhe uma de suas características mais importantes, posto que lhe permite sobreviver e fortalecer-se em um mundo em contínua transformação (como o cantou Camões em seus sonetos) trata-se, evidentemente, de uma prática autoritária e burra. Esses projetos de lei, oriundos das cabeças ocas de deputades e vereadores de extrema direita, que sempre estiveram por aí, mas que pululam aos montes desde a ascensão de Jair Bolsonaro, após sua eleição em 2018, revelam-se arbitrários e infrutíferos como foram os atos de Maximiano, imperador de Roma que perseguiu a jovem e sábia Catarina de Alexandria que, mais além, por seus feitos, seria chamada de Santa Catarina - a padroeira (devido a sua inteligência e habilidade filosófica) de professores, estudantes, bibliotecários, advogados, ceramistas, todos eles de algum modo amantes da linguagem e conhecedores do caráter provisório e fervilhante de uma língua viva, que ora se expande, ora retrocede, mas sempre se renova, refletindo os múltiplos modos como os seres negociam valores, saberes e afetos através dos tempos. 

    Não precisamos sequer entrar no mérito da relevância de projetos de lei como esse, posto que vivenciamos a maior tragédia sanitária da história do estado de SC e do país, o que supostamente deveria demandar atenção máxima dos insignes legisladores à garantia de renda e bem-estar para uma população adoecida e endividada por conta da crise. Falemos do ponto de vista linguístico e social: os falantes não promovem mudanças (significativas) na língua que não sejam necessárias a sua existência, entendida aqui não somente como o ato de circular pelo meio, utilizando as estratégias (inclusive as linguísticas) de que necessitam para obter bem-estar mas, mais que isso, sobreviver. Lembremos, nesse ponto, que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. E o que muitas pessoas parecem não entender é que esse fato e o movimento ideológico em curso nas câmaras estaduais e municipais e federal estão diretamente conectados; esses deputades extremistas, com tais ações, colaboram para o extermínio da população LGBTQI+ em curso, uma vez que o discurso de suas falas raivosas possibilita a dispersão de valores ideológicos que normalizam exclusões e apagamentos sociais, o que rapidamente se transfigura em agressões e assassinatos, muitas vezes sem solução - os delegados, em sua maioria homens, parecem ter uma certa dificuldade em solucionar esses crimes em específico; Santa Catarina que o diga. No mesmo sentido, Sírio Possenti², renomade linguista, ao refletir sobre a linguagem neutra, convida-nos a olhar para além da gramática, sob uma perspectiva sociológica (sincrônica): o surgimento da linguagem neutra nasce do rompimento de barreiras sexistas por muito tempo sustentadas por homens, nas mais diversas estâncias de poder ainda vigentes na modernidade: os homens gramáticos (quais mulheres estudiosas da gramática conhecemos? Há muitas...), os homens no Jornalismo, os homens educadores, etc. Ainda, de acordo com Sírio, essa resistência às mudanças na forma como o corpo social usa a língua pretende, muitas vezes, isolar o caráter social da língua - como se isso fosse possível em uma debate legislativo, como este ao fim do qual o governador de SC, Carlos Moisés, sancionou a proibição de uso da linguagem neutra em espaços públicos e escolas.

    A discussão de tal tema é bastante complexa e deveria começar pela escuta de especialistas de diferentes áreas; de linguistas a representantes das organizações defensoras das minorias que advogam pela aceitação de tais modificações na língua, afinal é, sem dúvida, muito trabalhoso (mas não impossível) alterar um código/língua que concentra uma infinidade de usos, funções, responsabilidades e, sobretudo, poderes. Enquanto esse debate não ocorre seriamente, prosseguem os usos (com terminações/marcadores de neutralidade bem variados, visto que não há régua), e prossegue também o preconceito, inclusive por parte de pessoas que se julgam progressistas, o que reforça estigma e, em última instância, agressões. Nesse âmbito, a Linguística pode, entre outras atribuições, oferecer possibilidades/sugestão de uso de formas neutras de pronomes, substantivos, etc, sem que tais alterações perturbem³, por exemplo, o ensino escolar da língua e seu uso em repartições públicas. Tal área também, se ouvida, pode apresentar aos parlamentares um pouco mais sobre a história da língua portuguesa, oriunda do latim, uma língua na qual existia o gênero neutro - a evolução dessas formas para a formação do par masculino/feminino (sobretudo suas exceções e particularidades) nem sempre é bem compreendida por quem legisla. Definitivamente, não é o que vem ocorrendo nas Câmaras, como em Joinville, onde um projeto semelhante ao aprovado pelo Governador¹, para sustentar suas ideias, convidou, entre as 'autoridades' do assunto professores/influencers baseados não em seu saber na área da Linguística e sim em número de seguidores - como se constata no texto do projeto discutido em Joinville, que, entre outras intenções mais amplas, constitui uma evidente forma de limitar as manifestações de Ana Lúcia Martins, parlamentar que fez uso de termos neutros na tribuna em manifestações esse ano conforme a reportagem.
 
    Enfim, esse debate, atravessado por embates ideológicos, lembra de algum modo a falsa polêmica promovida por pessoas que advogavam e ainda o fazem contra o uso do termo "presidenta", a partir da eleição de Dilma Rousseff em 2010, mesmo havendo fundamentação linguística para isso. As únicas "leis" aceitáveis sobre aspectos morfológicos de uma língua são aquelas em torno do estabelecimento de uma gramática normativa (a definição de acordos ortográficos, por exemplo), necessárias para um adequado estudo de uma língua em âmbito nacional,  uma norma da qual muitos falantes sempre irão matreiramente escapulir, aqui & ali, nessas & naquelas situações sociais. Uma norma que pode sim ser alterada a fim de corresponder a interesses da sociedade, por exemplo, a proteção de "minorias". Assim, esses que enchem as câmaras de projetos superficiais nesse sentido querem soar como heróis patriotas, mas, na verdade, estão mobilizando recursos públicos para atirar contra um rio, que aliás possui mais do que 2 margens, alheio a binarismos, mas não esperemos que tais homens já tenham por ele navegado. Para esses, sugiro mais leitura e estudo antes de quererem determinar como o povo deve falar - leituras sobre linguística, mas também um pouco de poesia.

¹ note-se, ao longo do texto, o uso deliberado de alguns marcadores convencionais de gênero, posto que esse debate precisa ser aprofundado antes de resultar em exigências de uso e desuso - um dos graves vícios/carências dos projetos em voga.
 
² É importante observar que a posição de Sírio Possenti sobre esse assunto alterou-se. Aliás, vários projetos que tentam proibir o uso da linguagem neutra no país, inclusive o projeto de Willian Tonezi, na Câmara Municipal de Joinville, como também o do deputado estadual (RS) Ruy Irigaray
 utilizam uma frase antiga sua, de um artigo escrito em 2012, para sustentar suas argumentação contra esses usos. Alguém precisa avisá-los de que Possenti reviu tais posições, e essas encontram cada vez mais ecos entre os especialistas, bastando ver o número de trabalhos acadêmicos nesse sentido que vêm sendo publicados.

³ Um bom exemplo uso simples (e "inofensivo" à comunicação tradicional) de aplicação da linguagem neutra foi a utilização do pronome "elu" pela narradora Natália Lara para se referir a atleta Quinn, que se identifica com o gênero não-binário, em recente transmissão de futebol olímpico. Que tipo de prejuízo pode haver por conta de situações como essa? Com a palavra, os vereadores que não leem.