Em 1984, entre muitos outros hits, Lulu Santos e Paralamas destacavam-se nas rádios com versões para "Assaltaram a Gramática", composta por Lulu e o poeta Waly Salomão: "assaltaram a gramática / assassinaram a lógica/botaram poesia/na bagunça do dia-a-dia". Ao contrário do que o primeiro verso possa sugerir, a canção não defende nenhum ponto de vista conservador acerca da manutenção das características padronizadas da língua, e sim a subversão dessa linguagem - orientada, na canção, pela ação do poeta, ofício manejado por habilidade por Waly, que certamente ecoa na letra sua leitura do que concretistas, marginais, adeptos da poesia-práxis e outras correntes de experimentação linguística faziam com a língua portuguesa na década de 80, paralelamente às experimentações musicais de artistas como Lulu e Herbert, mesclando, por exemplo, o dub, o punk e o ska, ritmos que marcam a melodia de "Assaltaram a Gramática" e outros trabalhos das bandas. Alheios à concepção de que a língua está sempre em eterna transformação e que, mesmo os homens atribuindo-lhe uma estrutura aparentemente estável - o código, a norma, a tal Gramática do título - aquela segue seu caminho de absorção, remodelamento e criação de novas estruturas - morfológicas, sintáticas, semânticas e - por consequência - ortográficas, alguns parlamentares do país, em especial catarinenses, decidiram, nos últimos anos, combater a essência dinâmica das línguas, observadas desde sua origem, ao pretenderem determinar como a língua portuguesa deve ser usada no estado - refiro-me às recentes investidas contra a linguagem neutra nas Câmaras Legislativas catarinenses.
Perseguir uma língua, assaltando-lhe uma de suas características mais importantes, posto que lhe permite sobreviver e fortalecer-se em um mundo em contínua transformação (como o cantou Camões em seus sonetos) trata-se, evidentemente, de uma prática autoritária e burra. Esses projetos de lei, oriundos das cabeças ocas de deputades e vereadores de extrema direita, que sempre estiveram por aí, mas que pululam aos montes desde a ascensão de Jair Bolsonaro, após sua eleição em 2018, revelam-se arbitrários e infrutíferos como foram os atos de Maximiano, imperador de Roma que perseguiu a jovem e sábia Catarina de Alexandria que, mais além, por seus feitos, seria chamada de Santa Catarina - a padroeira (devido a sua inteligência e habilidade filosófica) de professores, estudantes, bibliotecários, advogados, ceramistas, todos eles de algum modo amantes da linguagem e conhecedores do caráter provisório e fervilhante de uma língua viva, que ora se expande, ora retrocede, mas sempre se renova, refletindo os múltiplos modos como os seres negociam valores, saberes e afetos através dos tempos.
Não precisamos sequer entrar no mérito da relevância de projetos de lei como esse, posto que vivenciamos a maior tragédia sanitária da história do estado de SC e do país, o que supostamente deveria demandar atenção máxima dos insignes legisladores à garantia de renda e bem-estar para uma população adoecida e endividada por conta da crise. Falemos do ponto de vista linguístico e social: os falantes não promovem mudanças (significativas) na língua que não sejam necessárias a sua existência, entendida aqui não somente como o ato de circular pelo meio, utilizando as estratégias (inclusive as linguísticas) de que necessitam para obter bem-estar mas, mais que isso, sobreviver. Lembremos, nesse ponto, que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. E o que muitas pessoas parecem não entender é que esse fato e o movimento ideológico em curso nas câmaras estaduais e municipais e federal estão diretamente conectados; esses deputades extremistas, com tais ações, colaboram para o extermínio da população LGBTQI+ em curso, uma vez que o discurso de suas falas raivosas possibilita a dispersão de valores ideológicos que normalizam exclusões e apagamentos sociais, o que rapidamente se transfigura em agressões e assassinatos, muitas vezes sem solução - os delegados, em sua maioria homens, parecem ter uma certa dificuldade em solucionar esses crimes em específico; Santa Catarina que o diga. No mesmo sentido, Sírio Possenti², renomade linguista, ao refletir sobre a linguagem neutra, convida-nos a olhar para além da gramática, sob uma perspectiva sociológica (sincrônica): o surgimento da linguagem neutra nasce do rompimento de barreiras sexistas por muito tempo sustentadas por homens, nas mais diversas estâncias de poder ainda vigentes na modernidade: os homens gramáticos (quais mulheres estudiosas da gramática conhecemos? Há muitas...), os homens no Jornalismo, os homens educadores, etc. Ainda, de acordo com Sírio, essa resistência às mudanças na forma como o corpo social usa a língua pretende, muitas vezes, isolar o caráter social da língua - como se isso fosse possível em uma debate legislativo, como este ao fim do qual o governador de SC, Carlos Moisés, sancionou a proibição de uso da linguagem neutra em espaços públicos e escolas.
¹ note-se, ao longo do texto, o uso deliberado de alguns marcadores convencionais de gênero, posto que esse debate precisa ser aprofundado antes de resultar em exigências de uso e desuso - um dos graves vícios/carências dos projetos em voga.
² É importante observar que a posição de Sírio Possenti sobre esse assunto alterou-se. Aliás, vários projetos que tentam proibir o uso da linguagem neutra no país, inclusive o projeto de Willian Tonezi, na Câmara Municipal de Joinville, como também o do deputado estadual (RS) Ruy Irigaray utilizam uma frase antiga sua, de um artigo escrito em 2012, para sustentar suas argumentação contra esses usos. Alguém precisa avisá-los de que Possenti reviu tais posições, e essas encontram cada vez mais ecos entre os especialistas, bastando ver o número de trabalhos acadêmicos nesse sentido que vêm sendo publicados.
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