20 de abril de 2009

O rio insone

Anoitece
O rio, cravado na paisagem
está imóvel como se dormisse.
E quem passa por ele diz que dorme.

Amanhece.
E lá está o rio cravado na paisagem como um cacto.
E por ser dia
quente
úmido
(vivo!)
dizem que o rio está morto.

Mas ele está vivo. Vivíssimo.
tão vivo quanto a luz do dia.
tão cravado na paisagem como a luz do sol.

O rio insone não dormiu.
Não tem dormido.
Não dorme.
Passa noites em claro; inerte.
Velando
a urbe ciliar
a urbe maxilar
ocular
tentacular
ocular dorsal glútea
sanguínea
sexual
urbe mental.

Urbe,
criança grande e doente:
difícil crer que ela é a filha; a filha que apodrece no leito,
aos cuidados do rio insone, que a vela.

Sim, é a urbe,
a filha-frágil
a sofrer no leito
no leito morto e vivo
do rio insone.

19 de abril de 2009

Eu ontem jantei com o amor e com o tédio

I

MANÁ

Comunhão dos pecados cometidos na sacristia,
o jantar foi servido à hora consagrada.
Havia pão
vinho
frutas
sol
trigo
areia
Havia muito e a mesa estava muito alinhada
Mas nos olhos revoltosos dos convivas
estribilhava o desejo pela chegada do sentido


II

DECORAÇÃO

Sentaram-se muito cerimoniosos
Fitaram-se; emaranharam-se
Ninguém corou. A mesa continuou tateando às cegas.

Anjos e cruzes
quadros de Lorca
e poemas de Picasso


III

ELE

-- Seu nome é Tédio? Não seria Ódio?
-- Isso de ódio é coisa de poeta autor de operetas e folhetins.
-- Então, seu nome é Tédio...
-- Não.
-- ?
-- Hoje é Tédio. Amanhã Ódio. E depois Cansaço. E depois Amor-demais. E Chuva-de-verão. E Missa. E Andorinha. E Estopim.
-- ???
-- Não sou mistério. Pelo contrário: nu. Seu michê à vossa mercê. Sou todos os nomes.
(Ela pensa em soltar um oh! de surpresa, e iniciar uma defesa cristã pela coroa exclusivamente divina.)

Ao invés disso, um oh! de prazer.

Uma sineta vinda de não-sei-pra-quê toca.

Gargalhadas de tenores estilhaçam os quadros da Via Crúcis.


IV

ELA

Ele (sarcástico):
-- Você vem sempre aqui?
Ela (esforçando-se para manter o ar angelical, apesar da saia curtíssima e das coxas intimadoras):
-- Sim. Daqui não saio. O resto é passatempo. Ilusão.

(Ela executa piruetas, esgares e ensaia posições de Vatsyayana.)

Ele aplaude.
Os dois riem. E choram.
Compartilham o pão do ridículo.


V

O PRINCÍPIO

Ela pensa em ouvir algo.
Ele pensa em pensar.
-- O que você disse? Eu achei lindo!
-- Não, nada. Nonada. Foi só o garçom se atrapalhando com a prataria.


VI

O EFEITO DO VINHO

Ela pensa em ouvir algo.
Então fala para ouvir depois.
Ele pensa em pensar.
Pensa em ouvir.
Pensa em falar.
Pensa pensa, e repensante a noite corre.


VII

O MEIO

(Continuo a servir o vinho)

-- Riso choro e grito parecem a mesma coisa?
-- Você esqueceu do gozo.
-- Ah, é vero.
(Ele coloca mais um naco de Aparência em sua boca)


VIII


AS PERNAS ABERTAS (ou A REVELAÇÃO DO INCESTO)

-- Um beijo?
-- Melhor não. Esperemos o garçom se afastar.
Precisamos manter o segredo. E a audiência.
Céus, a audiência!
Ah, se soubessem! O que fariam! O que fariam!
Ah, se soubessem!

(Por trás da porta, ouço barulho de tiro e de queda)


IX


O COCHICHAR POSSESSO (ou O COCHICHAR POSSEXO)

-- Ai, mas se soubessem...
-- Não haveria mais missa.
-- Nem televisão.
-- Nem literatura.
-- Nem A divina comédia.
-- Oh! Mas um motivo para o silêncio!

(o garçom entra sorrateiramente)


X

O QUASE-FIM

(O garçom ao entrar, depara-se com o casal unido, deitados sobre a mesa, inconscientes)

Copos e imaginações quebradas.
Cheiros de vela e família.
Bafos de vinho e serenata.
Restos de carne e poema.
Manchas de utopia e molho.


XI

O FIM ORIGINAL (ou o GARÇOM CANIBAL)

Eu, garçom
Acendi a vela
e com fúria,
comi com a febre de um ignorante, o que havia do amor e do tédio.
Subalterno com coroa de rei,
saciei-me.
Mas nada. Um grande nada.
Olho em volta: leio.
Nada. Só um dicionário embaralhado
e a mesa revirada.
Trabalho para mais trabalho.
Zero.
O gosto é bom, não nego.
Mas sabê-lo dói.

Dói.
Demais.

(As cortinas se fecham. A platéia que ainda resistia, revolta-se insandecida contra tudo)

Tudo!
Todos!
Nada!

(Mais vaias. Bananas. Danem-se. Acabou-se.)


XII

O FINAL ALTERNATIVO (Proposta Alencariana. Escolhida pelo voto popular)


Ele (amoroso):
-- Oh, eu não sou o Tédio. Sou eu! o Ted! Eu: seu complemento!
-- Oh, eu sabia. Eu sabia. As convenções... não é... mentiras necessárias, justas. Trabalhamos pra isso. Justo.

(o garçom figurante mudo-cego-surdo-tuberculoso-analfabeto recolhe a mesa e sai sorrindo de forma cortês)

As cortinas cerraram-se, e as auras da noite, acariciando o riso das flores, cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal.

(Aplausos insandencidos. Entram os vendedores de guloseimas.)

Reticências e Reticências e Reticências



19.04.2009

18 de abril de 2009

Namoro

Ela olhou pra mim.
e seu sorriso veio como uma carta.

Penúltimo poema sobre a morte

A vida é, desde seu início,
Ultimato.
Assim, a morte, grande pedaço da vida, não deveria surpreender.

E a vida é também, desde o início,
Estopim.

Mas a morte,
mesmo na corda bamba,
entre vivas e tiros,
vem sempre,
calma e risonha.

E assim, nos surpreende, a morte.

11 de abril de 2009

Meu retrato na parede

Linda criança, rosto de anjo!
Como eu queria ser você novamente...
Doçura me falta, rudeza eu esbanjo
Enquanto você ri, chora, não mente.

Talvez eu ainda seja você, meu arcanjo
Talvez você não tenha sumido, somente
Saiu para colher flores para o arranjo
Que daremos à nossa mãe, docemente...

Somos o mesmo ser, mas somos irmãos
Peço que retorne; brinquemos juntos!
Desça dessa parede; dá-me tuas mãos!

Peteca, bola, pipa, carrinho-de-mão
Há tantas brincadeiras, tantos assuntos
Que esqueci! Relembre-me! Dá-me tuas mãos!


(Início de 2008)

Velhas novas

Acordou, como sempre fazia, às oito horas da manhã. Calçou os chinelos, lavou o rosto na pia, foi à porta principal buscar o jornal. Na capa do jornal, viu uma foto que lhe remeteu a algum lugar que já estivera. Pensava nisso quando o telefone tocou. Era um colega de trabalho. Hora extra hoje? Não, tudo bem. Contem comigo. Foi à cozinha, preparou um café. Sentou-se. Em que pensava mesmo? Não lembrou. Foi folheando as páginas do jornal, sem se deter em nenhum texto ou imagem. Chegou ao fim dos cadernos, sem ter achado nada de útil. Esportes, cultura, política, economia: nada lhe despertara o interesse, por que nada daquilo era novo. Mataram uma mulher com um furadeira. O papa pediu paz. O povo pediu justiça. Dois homens encapuzados entraram na loja, anunciaram o assalto e pediram que toda a paz e justiça fossem postas em sacolas. O dólar recuou muito nessa última semana, ao contrário da equipe do Flamengo, que desde que o técnico Zezinho assumiu, tem avançado muito na tabela do campeonato. No capítulo da novela de hoje, Irã dará um beijo e fará as pazes com os EUA. Chuva e vento assinaram um cessar-fogo, e darão uma trégua nesse fim-de-semana. O papa pediu trégua. Aconteceu na noite de Domingo: o namorado pediu trégua à namorada, e ante a recusa dela, o jovem matou-a com uma furadeira. O técnico Zezinho disse que isso acontece. Vitórias vêm e vão. Como vento, como a chuva. Como a paz, a justiça ou uma furadeira penetrando a parede. Não perca a folhetim, hoje, às nove horas, logo após a emocionante partida entre Dow Jones e Nasdaq.
De fato, nada de novo no país do carnaval.

9 de abril de 2009

Corações-de-leite

Nosso amor é instantâneo
Ao primeiro despejo de água fervente
Cozinha-se me três minutos e alimenta
uma corja de inamantes

Nosso amor é comida de microondas
Nosso amor é natureba
Não engorda e não faz crescer
Nosso amor é comida congelada

Nosso amor não é integral, não é francês, nem caseiro:
Nosso amor é dormido

Nosso amor não dá água na boca; dá no corpo inteiro.
Nossso amor é desnatado, desidratado, perecível
Nosso amor é assim, como uma guloseima:
Não sabemos do que é feito e sabemos que nos faz mal
Mas não ligamos, somos crianças:
Temos corações-de-leite.


(2007)

O fim de um sonho

Rimas tolas, poesia explicada, poesia domingo-de-missa.
O lirismo que julgava ter, que nem havia nascido.
O médico:
-- Tente fazer um soneto.
-- Tome. Eis o soneto.
-- Argh! Agora...uns versos simples, sem rimas.
-- Tome.
-- Credo! Que é isso? Complete pra mim: batatinha quando nasce...
-- Esparrama pelo chão!

O médico joga longe o estetoscópio e limpa a garganta.
-- E então, doutor?
-- Zero.
-- Não é possível tentar uma paródia bandeiriana?
-- Não. A única coisa a fazer é assistir televisão.


(2007)

Circunlóquios

Todo poema já é ao primeiro verso
um rodeio, um amontoado de adornos
para se expôr uma verdade límpida e vesga
por isso o silêncio é tão respeitado:
na lata
na cara
na faca
no peito



(final de 2007)