28 de março de 2020

confissões II

meu primo uma vez
caiu de moto fazendo uma curva
numa estrada de terra em Joaçaba
Neil Armstrong já pisou na Lua
mas Armstrong
nunca derrapou de moto e caiu numa valeta
que nem meu primo de Joaçaba
dê-me logo essa folha seca de teu herbário acidental;
tudo já aconteceu para ela, e isso é o seu bonito
o que vem depois do depois chamaremos de mistério;
a lua está gigante especificamente nessa noite
grávida de um eclipse que só pode ser visto
em dois ou três estados norte-americanos e
em dois ou três bares da Zona Sul da cidade
a depender dos equipamentos de que as pessoas dispõem
e também da marca da cerveja que vocês pedirem;
o próprio acaso trata de ser desigual e injusto em quase tudo
porque esperaria eu que algum sistema econômico, qualquer um, assim o seja!
sabe quem mais nasceu em Joaçaba?
Rogério Sganzerla!
na minha cidade só nasce boçal;
que pena nunca poder abraçá-lo
tudo já aconteceu para ele, e isso é o mais fudido;
seus filmes agora são puro mistério;
me lembro ainda dos dias em que marcamos de ver um filme
e ao fim ou durante transamos;
mas ou só lembro do filme
ou só lembra da foda
e isso é o mais comprido:
não obedece a memória à ordem que lhe desejamos impor
olha bem essa folha inesperada que te apareceu no meio de um livro no meio da tarde qualquer
qualquer a tarde, claro
pois o livro é especial:
dentro dessa relíquia achado no sebo
há um João e uma Dora
há um motivo e uma data
para aquilo que, antes do impresso,
vai manuscrito a caneta azul:
meu amor, com amor, para que etc etc te dedico
tudo isso é muito valioso para alguém em algum canto
não faz sentido para nós, mas podemos curtir esse espanto:
ainda há quem seja feliz além do muro que somos
espera um pouco
escuta esse barulho
há um homem pousando na lua dentro de meu dedo mindinho
ora que diabos, logo dentro do dedo mindinho! que disparate
escuta, espera, escuta esse barulho na nossa lua
não sei se de escape de moto ou foguete espacial
parece mais como um carro ou charrete
um caminhão, há um caminhão que passa aqui na nossa rua
é o caminhão que traz o lixo para casa
ou será o que leva?
conheço bem esse cheiro, e isso, dessa tristeza toda, é o único barato:
é o caminhão que traz o lixo passando por dentro do meu quarto

9 de março de 2020

confissões



podes ir, tranquilo
não restou um
único grão de ti comigo
nunca te contive nem
fui contido porque
isso de amor como moeda é heresia
o que se passa é que viajamos muito
roçamo-nos sempre
que foi possível
sem nunca se afanar
pois impossível
sequer pensável;
aquilo que viola omite e fere
não perturba o que se é
matéria que não se monta
remove nem desfragmenta
caminha certeira ao
ponto de ônibus mais próximo
e que vá até mais longe
no caminho as culpas
servem de passatempo
é bom jogar palavras cruzadas
& tudo que é bagunçado
onde se aprende a se equilibrar melhor
na matéria das memórias, toda ela
invenção e lacunas e areia
cada culpa uma árvore suspensa
e cada fruto a esconder uma palavra
que apodrece e emana
essa imensa sensação de que algo
foi aprendido em certo onde e quando;
nada, não fiquei com absolutamente nada
nem acho que levastes alguma coisa
é difícil alhear-se dessa ideia de que o corpo
e o que fizemos dele são feitos da mesma coisa
não são; e sequer o oposto (praias distantes, estrelas que não se reconhecem)!
o que fiz e o que fizemos não têm cheiro, não saem em fotografias
não afundam nem boiam no mar
fique tranquilo e não temas as folhas
e crisálidas e papeis de bala nem vibrações no celular
nada perturba, nada se alterou
há algo que segue, por mais que negue ainda
seu próprio nome, peso e história e só se deixe entrever
por vezes em oração, em confusa memória,
em sonho ou aleatória sensação,
que uma árvore ou palavra
- num dia estressado e vazio -
rememora






imagem: "A conversão de Santo Agostinho", de Fra Angelico.

3 de março de 2020

É difícil amar alguém e voar
ao mesmo tempo
e é por isso que as abelhas
quando copulam
caem por vezes ao chão
de asas amassadas
se esfregam na relva
do jeito que dá

(gentes às vezes se amam
em horas erradas
pois eram as horas
que havia pra se achar)

As abelhas às vezes se ligam
e marcam de se encontrar
não no bar da esquina
preferem a lata de refri
no fundo do saco à beira da praia
onde bêbadas de sacarose
transam com raiva

o abdômen do macho
se explode em seguida
e por isso ninguém
acha absurdo e nem fica triste
ninguém guarda memória
nem chora pensando em dias passados
vai a vida assim feita só dessa matéria
toda mel e morte, amor e antenas