25 de dezembro de 2023

Ele

ombros largos feito montanha

desço seus braços em estado de 

formigamento     

cordilheira a noite inteira

a lhe devorar aos pouquinhos

o firmamento.


cai a chuva toda feita de espinhos

delicado, ele foge de cada gota

como se fossem sempre outras

pequenos barulhos lhe assomam

e eu, meu rosto de homem outro,

anuncio amor com os pés cheios de guizos

o esforço para não lhe ferir, no quarto,

os vestíbulos.

fracasso, feneço e tropeço à sua beira.


cordilheira a noite inteira

o melhor que faço é me fazer formiga

agora grito grito e não sou mais

ouvido nem firo

com paciência, reinício meu retiro

coloco o amor por ele nas costas

oitenta vezes mais pesado

do que meu próprio amor

e retomo pelos tornozelos

o desejo em ferrões

os zelos sob a forma 

de deslizes e atropelos.



21 de novembro de 2023

Anatomia do Espectador II

será que tem câmeras nessa sala mofada?

certamente não... para que vigiar o filme?

que outro lugar podemos nos comer

de forma barata sem dar na vista?


(o filme está preso, diz o policial

ao projecionista)


vinícius de moraes falava

de um cinema dos olhos

abro o zíper, abaixa a calça

imorais fazendo um

cinema das mãos 


(o filme está preso, diz o policial

ao projecionista)


seu Antônio deitado no piso

da sala de projeção 

peito nu para afastar o calor

(erótico ao extremo, o cinema ferve

a sala de projeção)


queimam os cinemas

e as cinematecas

de vez em quando

feito meu rabo às

sextas-feiras


da cadeia o filme foge uma hora

com ajuda dos comparsas

o grande risco, no entanto,

antieros, antiheroi, o mofo

vai comendo pouco a pouco

os rolos, as histórias,

o meu e o teu corpo


26 de outubro de 2023

volto a tomar meu medicamento

minha resistência a amigar-se com outra droga

meu ódio à sensação de embotamento

ponho de lado por um tempo

em prol do casal de noias

Diagnóstico & Tratamento

volto a não ler bulas

volto a promover misturas

não recomendadas pela ciência 

abro mais uma garrafa de vinho do porto

desviando do abuso e inconsciência

comemoro o fato de que não estou morto

tô vivo e isso não é pouco

comemoro pequenas alegrias e dias

enquanto a paz plena não chega

a saúde mental saiu para comprar um cigarro

e ainda não veio

o fato de que tudo mudo e gira o tempo todo

acerta minha bike psicodélica em cheio


as pessoas dizem:

é preciso cuidar com a 

banalização das doenças mentais

dizem isso com a maior desfaçatez

e sem mais

voltam a submergir em suas redes sociais

é preciso cuidar de um SUS que não satisfaz

um diagnóstico por vezes é caro, custoso, lento

corta pra minha mãe acordando cedo no relento

pra conseguir um médico que lhe cuide dos mil problemas

por ser pobre, mulher, idosa

precisando mentir sentir dores fortes

em pleno outubro rosa

porque do contrário

medirão sua pressão, e a pegando pela mão

a convidam a tentar consultar outro dia

é esse o sistema de que dependo

e por isso que não entendo

quem perde tempo fazendo fios e reels

cagando regra moral sobre saúde mental 

enquanto o conselho municipal 

de saúde vai ficando vazio

lá tiktoker de saúde não brota pra dar um pio


Eu quero saber

se a bupropiona

funciona

se a ritalina mais atina

que desatina

se a libido pode vir

em comprimido

se posso misturar vida

com drogas e drogas

assim por tantos anos

sem graves danos

se o doutor que as prescreve

em vinte anos se atreve

a fazer consigo o inventário

de efeitos colaterais

a quem interessam

poemas sonoros e virtuais

o ser e tempo da poesia?

certamente não ao poeta

paciente na sala de espera

de sua agonia.


Eu quero saber que horas chega a minha paz

Eu quero saber

quando vão banalizar política pública

quando as bobagens que nas redes e ruas são escutadas

serão pela escuta verdadeira confrontadas

por que isso sim curaria

mais escuta, mais costura,

informação, acolhimento, terapia


e enquanto a paz não chega,

vale o conselho da mãe da WD,

vai, seja forte, e volte viva


18 de outubro de 2023

Stella, é hora do seu remédio

já tomei remédio várias vezes e de várias cores
prescritos por várias senhoras vários senhores
para o pé para a mão para o rim pra bexiga
para todos os tipos de dor de barriga
minha mãe me dava meu pai não
na veia na boca na ponta dos cabelos no joelho
mas os remédios de cabeça minha mãe não dava
eles não existiam
nos remédios pra cabeça minha não acreditava os remédios pra cabeça eram
prescritos por várias senhoras vários senhores
era eu que dava os remédios para eles eu que ligava pra eles e para os remédio
quando eu nasci falavam mal desses remédios
e hoje falam ainda mais meus amigos falam
minha mãe fala minha professora fala meu pai não
alguns remédios dão dor de barriga mas eu tomo
pra passar outras dores
tento anotar num papel quais as dores mais importantes
para avisar a minha mãe, aos senhores, as senhoras, meu pai não
um dia eu espero que minha mãe acredite nos remédios para que depois eu acredite
mas isso vai ser depois de tomar os remédios porque já os tomei por anos, ainda estou tomando vou tomar agora inclusive peço a você licença

27 de agosto de 2023


oi, tudo bem?
há quanto tempo não te vejo
um trem-ave me atravessando
demorasse mais um tanto
não te reconheceria, desejo

vai se o desejo, vêm os vícios
cigarros fumados
têm seu quê de aprendizado
difícil medir o mal
sem vivalma do meu lado;
por todos os lados
um trem frenesi
me atravessando
sem freio
sob o fogo
simulacro  
dos vícios

oi, você está?
há quanto tempo não te vejo
um trem-flor me atravessando
pintasse a boca mais um tanto
não te reconheceria, desejo

me engajo sempre nessa fuga
cachoeira acima contramão 
com a luz cortada
ainda segue o trem
aos sacolejos na imensidão;
o impulso ao nada 
movimenta-o mesmo assim
falar sobre o objeto de desejo
é afastá-lo um pouco mais de mim

que mais posso fazer para além
de via linguagem sair desse mim?
trilhar os trilhos os trilhos de si
como objeto trem em movimento;
espatifar o céu de estrelas
nos olhos dos bichos me escondê-las
pela beleza como as abelhas
morrer fruto na palavra fim

oi, que há por aí nas antenas?

26 de julho de 2023

CUIDADO MADAME

eu sou maria gladys, você helena ignez

a vida chama às oito, mas só colamos às três

eu sou rato fudido, vc é rata fadada

arte improviso, pixo na praça

isqueiro roubado, cerveja barata

cinema de margem, desejo fumaça

feminino plural, sexo vampiro

quando ninguém mais espera

trilha arromba cena, no herói me atiro

quando ninguém mais ousa y quer

roubamo o cofre das vanguardas,

comemo o cânone de colher

vc uma homem eu um mulher

pra nois nenhum kikito

pra nois nenhum pouquito

desses grammys gremlins jabutis

os mil y outros quelônios

que esses demônios criam

para se sabonetear eu y tu

na cadeia eu y tu sem nada

escrito no lattes em nossa

novela sempre fora do ar

eu y tu sarrando y sarnando

modo cachorrada chanchada

sem osso sem moral sem paga

nos matam nos julgam nos apagam

a gente vai e mais grita se esfaqueia

droga barata injetada na veia y rodeia

y borra y apaga y goza outra vez

você maria gladys, eu helena ignez

25 de junho de 2023

questões de poesia

saber o que mallarmé

comia para lhe conter a 

azia já não dá mais pé

o que michaux queria do poema

não é tão relevante ao poeta

quanto saber o valor do michê

o poeta quer saber

se a bupropiona

funciona

se a ritalina mais atina

que desatina

se a libido pode vir

em comprimido

se pode misturar vida

com drogas e drogas

assim por tantos anos

sem graves danos

se o doutor que as prescreve

em vinte anos se atreve

a fazer consigo o inventário

de efeitos colaterais

a quem interessam tais carestias,

poemas sonoros e virtuais,

o ser e tempo da poesia?

certamente não ao poeta

paciente na sala de espera

de sua hipocondria.

17 de junho de 2023

Carta de amor

Florianopólis, Slam Xodó, 17 de Junho de 2023
 
Xodó, meu grande amor,
Ontem sonhei com você.
Os yanomami acreditam que, quando se sonha com alguém, é porque aquela pessoa está pensando muito na gente, contrariando a lógica psicanalítica de que a imagem do sonho fosse algo represada aqui, em quem sonha. Eu te pergunto: tens pensado em mim?
Por que carta não recebo. Nem mensagem, nem zap, nem DM, pombo correio, nada. Mas sonhei com você. E no sonho, você pairava em silêncio e outro alguém surgia e dizia: teu amor está feliz.
Meu grande amor,
Se você está feliz, eu estou feliz.
Amo muito tu.
Teu beijo me amortece feito cachaça de jambu.
Com Amor, Edu.

mas preciso amassar essa carta e tratar de outros amores.
Vou até recomeçar.

Cachorrópolis, Slam Xodó, 17 de Junho de 2023.

Xodós,
Contei para a Su que estou há semanas sem saber o que falar nesse rolê amoroso.
Pq meu coração demi tá vazio, eu demoro muito para me apaixonar.
E quando me apaixono, é sempre um amor cometa intenso que passa uma vez na minha vida
e depois só volta na próximo século.
Já recitei muitas vezes esse ano o poema sobre minha amiga cris, em que falo sobre demissexualidade. Ser demi e sapio é me atormenta. Falar sobre isso é como sair de um segundo armário, um armário dentro do armário de que todes nós saímos - ou ainda vamos sair.

homens, mulheres, não binaries.
o que eu amo é me sentir, ao mesmo tempo, acolhido e provocado, salvo e sacaneado por alguém seja quem for; isso para mim é que é amor. E é tão raro, tão raro. Não devia, mas eu odeio ser demi. Por que desse espaço eu não consigo sair, só me cabe aceitar e me amar muito nele.
Suelem ouve e diz: por que vc não fala sobre seu filho?
É o maior xodó de todos, mas não posso. Ultimamente, eu tenho chorado todos os dias em que não estou ao seu lado, de tanta saudade.
O nascimento dele mudou tudo. Me fez rever e bagunçou cada aspecto de quem sou: sexualidade,
masculinidade, sonhos de trabalho e faculdade. Ser pai tem sido uma viagem do caralho, repleta de amor, surpresa e tensão. Téo vai fazer cinco anos daqui a 3 dias, no dia 20 de Junho.  Téo, eu quero sempre sonhar com vc, porque de vc gosto demais.
Não vai ser hj que falarei mto do meu amorzão, gente, porque não quero me acabar em choro,
É sábado, dia de Slam Xodó, espero que a minha e a nossa noite acabe em gozo.
Ontem eu estava no slam Estrela D'alva. Vários xodós estavam lá, Mari Félix tava lá, Paula tava lá, WD tava lá, Íris e Rolvo tavam lá. Enquanto uma galera recitava, encostei na Corvalan, que fumava um cigarro e exalava aquela energia sensacional. Fiamos uma prosa e ela me leu um poema seu sobre inteligência emocional, que bateu forte em mim que nem haxixe do bom. Day, a tua poesia bate forte e me inspira. Naquela hora eu soube o que diria se avançasse pra segunda rodada. Falaria dos amores que me cercam, que me estendem a mão, sua vozes, seu corpos e assim e nunca me deixam eu me sentir só.
Obrigado meus amores. na ausência do teozão vcs são os meus xodós. Assim que acabar esse slam eu vou entrar no carro e tocar direto pra Joinville encontrar minha razão de viver, que deve estar com saudade de mim. 

Fim.














16 de junho de 2023

Vamos eu e você tomar um café da tarde
lá em casa, depois do trabalho. Fechado?
Só não chama mais ninguém porque onde
eu moro é bem apertado.

Se vc mora em área sujeita a alagamentos 
e deslizamentos,
Se vc se mata pra pagar aluguel - como eu -
Se mora num terreno pequeno
com várias outras casas
Se mora de favor
ainda que entre muito afeto
ainda que não falte comida e amor
se o teu aluguel compromete
mais de 30% da tua renda
entenda
sua moradia também é precária
a gente se sente assim, muito otária,
vendo um plano diretor ser aprovado
pra enriquecer construtoras 
e favorecer desmatamentos
enquanto há cada vez mais gente
dormindo sobre o cimento.

Estresse do caralho.
Vamos eu e você dar uns bjo, fumar um fininho
e tomar um vinho
lá em casa, depois do trabalho. Fechado?
Só não geme tão alto que as paredes são
de papel e os vizinhos tão aqui colados.

uma cidade sem privacidade
uma cidade sem a menor vontade
de pensar coletivamente
vc e vc mesmo contra a fome
contra a corrente
contra qq um que lhe passe pela frente.
morador de rua morre de frio
mas se vc abrir agora as redes da prefeitura
estão cheias de gracinhas sobre obras executadas
quero que se foda essa ponte estaiada
a marina da beira mar e o engordamento das praias
a gente quer outros restaurantes populares
o engordamento das nossas crias
queremos moradias populares
políticas públicas em prol de melhores dias.

Vamos eu e você amanhã dar um passeio
Amanhã eu não posso e nem depois
tenho trabalho tenho rolê tenho academia
Amanhã você não pode nem depois 
tem filho pra criar tesão represado louça suja na pia
Mas vamos mesmo assim à rua dar um passeio
vamos ao centro, vamos às margens
deixar o protesto no front
de batalha ainda mais cheio.


Tá foda. Mas há quem resista.
Os movimentos resistem.
Quem é de luta se organiza.
Se a gente não faz isso, 
o fascismo deita e rola.
uma cidade que permite
que um vereador escroto
persiga uma educadora
utilizando recursos
que deveriam estar
sendo revertidos em prol
da educação de todes
não será nunca uma
cidade digna de nota, que dirá de magia.
educação é diversidade, Bericó
educação é inclusão, seu bocó
e não sou que afirmo isso
é lei, está na constituição,
é ciência, está na BNCC
quem é você
pra dizer o que um
educador deve fazer
em seu espaço de trabalho?
vereador não tem que interromper aula
é professor e aluno que devem interromper
o funcionamento de uma câmara que
não segue aquilo que deveria seguir
que é o respeito às leis e aos interesses 
de uma maioria que de muitas coisas precisa
e a maioria hoje passa fome
e a maioria hoje passa mal
e a maioria hj vive de modo precário
ideologia não põe comida na mesa
ideologia não paga salário
só se for o teu, otário.

15 de junho de 2023

Ratoeira (segunda versão)

 Meu cravo encarnado, meu manjericão

Dá 3 pancadinhas no meu coração... 


vai embora o velho amor

no mesmo trem desce outro novo

cansado de vai e vem me faço nuvem

e eu chovo eu chovo e chovo


Vão rodando vão se amando

O amor velho e o amor novo

Vai girando meu planeta

Entre o sol e a lua

O que quer que eu peça ao vento

acabo sempre na mesma rua

Na mesma rua!

Na mesma porta mesma cama

meus versos se enroscando

pelas mesmas costas nuas

- Ah, não! Amor velho, não!


Eu não quero o teu amor

Já não quero essa roubada 

Eu não quero o teu amor

Eu amo mesmo a cachorrada


Vem chegando novo amor

levo ele então pra roda de Ratoeira

Pra comigo a dois trovar

Tecer o canto, o rolê das rendeiras

Pq além de fazer verso

homem tem que saber fiar!


Vem chegando novo amor

levo ele então pra roda de Ratoeira

que resiste na Caeira

Pra fisgar sua atenção 

Mas ele me escapa na Capoeira

por uma fresta no meu coração


Ele sempre tão envolvente,

chamando nas ideia divergente

Com seus mil corres, lutas e fitas

Fora as responsa fora o batente

Fora essa foda em frações capitalistas


Foda-se esse amor monoculturado!

A plantar organicamente amor no mundo

eu e você lado a lado

Te amar no Moçambique,

Te amar no Campeche, 

Te amar na Galheta

Ser pescado por teu pau na minha boca

Navegar nas águas da tua buceta


Foda-se esse amor monocultivado!

Esse amor mídia que se faz 

hoje no presente pelas redes

É muito mais careta

que o que se fazia

Em outras redes em

Em anos passados


Hey, Te amar no Carianos

por muitos e muitos anos

Te amar no Rio Vermelho

fodendo igual dois coelhos

Te amar no Monte Verde

Eu e tu contra a parede


meu cravo encarnado, meu manjericão

três tapas bem dados nesse rabão

meu galho de malva, meu buquê de flor

te encontro na esquina entre o prazer e a dor


Ah, não! lá vem ele, o velho amor


chega depois de muitos anos 

com um segredo pra contar

já não sou mais o mesmo

meu corpo fora de lugar


chega depois de muitos anos

com um segredo pra contar

cola então no meu ouvido:

me aperta forte vou gozar


chega depois de muitos anos

com um segredo pra contar

supero o ranço que de ti tenho

e enfim me ponho a te escutar:


"falaí cuzão, se não falou

que queria falar?"

"vc vai me ouvir, vc vai guardar bem?"                         

"vou, e te dou uma só estrofe:"


meu cravo encarnado, meu manjericão

dá três pancadinhas no meu coração

meu galho de malva, meu buquê de flor

nascestes no mundo para ser meu amor... 



11 de junho de 2023

Ratoeira (Roteiro)



Meu cravo encarnado, meu manjericão
Dá 3 pancadinhas no meu coração...         (lento, em cantilena)


vai embora o velho amor

no mesmo trem desce outro novo

cansado de amar me faço nuvem

e eu chovo eu chovo e chovo


vai embora o velho amor

vai de jegue, a trote lento 

e por isso me atormento

vai embora o velho amor

vai a jato, vai de avião

mergulho então na cachorrada

embarco na carreta furacão


Vão rodando vão se amando

O amor velho e o amor novo

Vai girando meu planeta

Entre o sol e a lua

O que quer que eu peça ao vento

acabo sempre na mesma rua

Na mesma rua!

Na mesma porta mesma cama

meus versos se enroscando

pelas tuas costas nuas


Eu não quero o teu amor
Já não quero essa roubada          (lento, parodicamente em cantilena)
Eu não quero o teu amor
Eu amo mesmo a cachorrada


Vem chegando novo amor

chamo ele então pra roda de Ratoeira

Pra comigo a dois trovar

Tecer o canto, o rolê das rendeiras

Pq além de fazer verso

homem tem que saber fiar!


Vem chegando novo amor

Chamo ele então pra roda de Ratoeira

que resiste na Caeira

Pra fisgar sua atenção 

Mas você me escapa na Capoeira

Você Me escapa feito um rio

a cortar meu coração

 

Você sempre tão envolvente,

chamando nas ideia divergente

Com seus mil corres, lutas e fitas

Fora as responsa fora o batente

Fora essa foda em frações capitalistas


Foda-se esse amor monocultivado!

A plantar organicamente amor no mundo

eu e você lado a lado

Te amar no Moçambique,

Te amar no Campeche,

Te amar na Galheta

Ser pescado por teu pau na minha boca

Navegar nas águas da tua buceta


Foda-se esse amor monocultivado!

Esse amor mídia que se faz 

hoje no presente pelas redes

É muito mais careta

que o que se fazia

Em outras redes em

Em anos passados


Hey, Te amar no Carianos

por muitos e muitos anos

Te amar no Rio Vermelho

fodendo igual dois coelhos

Te amar no Monte Verde

Eu e você contra a parede


meu cravo encarnado, meu manjericão            (ágil, mesmo tom das outras estrofes)

três tapas bem dados nesse rabão

meu galho de malva, meu buquê de flor

te encontro na esquina entre o prazer e a dor


chega depois de muitos anos 

com um segredo pra contar

já não sou mais o mesmo

meu corpo fora de qualquer lugar


chega depois de muitos anos

com um segredo pra contar

cola então no meu ouvido:

me aperta forte vou gozar


chega depois de muitos anos

com um segredo pra contar

supero o ranço que de ti tenho

e enfim me ponho a te escutar:


"falaí cuzão, se não falou              (Usar voz / posição no mic pra indicar novo personagem)

que queria falar                          
falaí, 
te dou uma estrofe:"


meu cravo encarnado, meu manjericão (em cantilena, reduz o ritmo nos 2 versos finais)

dá três pancadinhas no meu coração

meu galho de malva, meu buquê de flor

nascestes no mundo para ser meu amor...



26 de maio de 2023

Na prateleira...

na prateleira, nos poemas que um dia escrevi,
ali não, nos livros, fechados ou abertos, não estou.
ali, na prateleira da cozinha,
aquela mais embaixo,
entre temperos quase vencidos e ingredientes
só usados de vez quando, quando lhe apetece um bolo,
ali, numa sacola plástica dobrada, estou todo dia.
nas mensagens que mandei essa manhã,
nos áudios que mandei essa tarde,
ali não estou.
ali, entrando e saindo de portas,
entre crianças, a desenhar o verbo to be, 
estou - até o sinal.
quando na festa me vê,
mas não me ouve,
nessa festa não estou.
agora que não estou mais, 
quando alguém, goste ou não, 
vocaliza uma linha do meu poema, 
ali, feito voz, volto a estar.
quando alguém lança um bola ao ar, de plástico, couro, borracha,
leve ou pesada, pequena ou grande, e corre atrás dessa bola e a lança outra vez ao ar
e outra e outra, ali estou sempre 
e meus sapatos, não.
porque não estou, não se pintam as pedras.
quando alguém voltar a pintá-las, estaremos.
de surpresa ligo para mim mesmo:
estou e não me respondo, 
me escondo e durmo até tarde. 
se te apareço no sonho, 
saiba, estou com saudade.
quando, depois, bem depois, 
um jovem vai atrás dos antigos, a saber 
quem era aquele tio, aquela mãe, aquela vó, 
daquele rosto e daquele corpo e daquela voz
e recompõe ao mundo uma memória fugaz que não serve pra nada,
ali, na imagem inédita do passado, eu faço morada.


13 de maio de 2023

eros cura a depressão?

as várias mensagens por

responder e as fotos

por curtir dizem: não


hoje não, Hades,

voltes mais tarde

que não saio de casa:

a pia está cheia,

o drive está cheio,

pendurado no varal

meu par de asas.


eros cura a depressão?

o trabalho que dá abrir-se

em poemas, sessões de terapia,

conversas, esquemas, receituários,

o afeto sempre a mordiscar

o esmilinguido salário,

o leitor sempre com

um conselho ligeiro à mão,

não não não não!

tem horas que eros 

é um baita cuzão

e o depressivo faz

o papel de otário.


por que se demora na tristeza,

ele não vai trocar o disco?

por que ignora a face psicossocial

de sua enfermidade

para enfim curá-la,

ela não tem essa vontade?

por que insistem em ladainhas

pirão ralo d'água 

solidão e farinha,

por que não vivem

o agora, o hoje, 

por que não dizem: 

não choro, não saboto,   

não reclamo, nem de mim nem de você,

pernas para que te quero, Eros!

hoje só quero meu gato ao meu lado

quem te viu, quem te vê, Psiquê!

online hoje apenas para

skincare e autocuidado,

hein, hein? por quê?


eros cura a depressão?

sim! e não.

quando se encontram na rua

de madrugada 

voam garrafas

e comprimidos

e saem os dois na mão.


no outro dia, de ressaca,

um se levanta atrasado e vai trabalhar,

e outro confere discretamente

o celular, deixa um ou dois likes,

e depois mete o pé.

26 de abril de 2023

meu poete preferide

meu poeta preferido, na adolescência, era manuel bandeira
e eu passava a tarde inteira lendo seus poemas no sofá
tinha um chamado Porquinho da Índia
no qual ele arrematava que o porquinho da índia
tinha sido sua primeira namorada.
eu mudei muito desde essa época
mas essa ternura geral por todos os seres,
ainda me toca muito. 
ainda precisa ser repetida, semeada, recriada em novos poemas e exposta,
como um estandarte, um escudo, uma bandeira.

tem uma fita gramatical aí que tem gente 
que não curte a palavra poetisa e fala o poeta e a poeta
vamo neutraliza essa fita assim:
meu poete demissexual preferide é a WD,
pra quem deixo um beijo.
é inspirador sempre ouvir sua poesia
sabendo que por trás daquela levada venenosa
tem luta, correria e rolê... rolê só de ida / pra curtir a vida / baby traz bebida     [cantado]

meu poete preferide é a liza. 
para mim, uma baita atriz,
que potencializa
não só o poema que diz
como o espaço por onde
ele passa, feito brisa.

meu poete preferide é Adão Ventura. 
um poeta já falecido, a ser redescoberto,
como muitos escondidos artistas pretes do cânone branco.
salve solano trindade, salve cruz e sousa, conceição evaristo,
salve sebah, mvhs, breno, gab, rafa, hoa, corvalan, ariana, andressa, salve geral,
salve trajano margarida e indefonso juvenal
poetas que resistiram, que criaram redes, se aquilombaram em sarais, 
festas, rodas de conversa, poemas,
tudo isso nessa ilha, muito anos da gente nascer,
meus poetes preferides.

meu poete preferide é ana cristina césar.
descobrir seus livros foi uma paixão avassaladora, em nada diferente dos grandes amores que tive de carne e osso, porque eu não sei separar muito bem os afetos em prateleiras, os vivos e os mortos, os próximos e o distantes - acho besteira. como eu, ana c. amava cartas, poesia. como eu, ana c. estudou Letras e lutava contra a depressão. hoje tenho 32 anos. ana c. tinha 31 quando partiu. ana c. cadê você?

meu poete preferide é a belaisa, que acabou de se apresentar/que ainda vai se apresentar.  gosto do jeito que ela junta & bagunça as palavras, acho que ela envolve mto bem a gente numa trama quando fala. e aí ela ainda fala com aquela voz dela... ai.

meu poeta preferide é meu filho téo. ele, como toda criança que tem seu direito ao amor e à escuta atendidos, diz poemas maravilhosos. ele tem 4 anos e disse que quando fizer 44 vai ganhar um patinete de aniversário.

meu poete preferide é a Suellem, que não sabia, até outro dia, que esse slam iria ocorrer.
nos encontramos por acaso e lhe contei que havia um lugar onde era prazeroso ver e ouvir o som, a imagem, o corpo e o sentido.
isso me faz pensar que meu poete preferido está por aí na cidade e ainda não falou seus poemas porque a cultura, as políticas públicas, e o tempo livre do trabalhador assalariade ainda não se encontraram a ponto dele estar aqui entre nós hoje. estarmos aqui fazendo esse rolê acontecer quem sabe seja o caminho para meu poete preferide aparecer. obrigado por vir, é bom te ver.

meu poeta preferide nunca ganhou um slam. ele sequer compete, fala sempre nos mikes abertos e quando fala abala a estrutura de quem estava distraíde. 

meu poete preferide é stela do patrocínio. cazuza. mc carol. brecht. adilia lopes. caco de oliveira. angelo. hilda hilst. sabotage. magrão. roberto piva. 

ish, não dá, a lista é muito comprida. 
pra sair de fininho
como cacaso faria
deixo um beijo pra paula,
minha poeta preferida.
e um último e demorado beijo
prus poetes que atravessam minha vida.





23 de abril de 2023

Cheiro de Amor (Roteiro)




Feito fumaça num quarto fechado

Você tomou conta dos quatro cantos

Acende um cigarro, queima a brasa

Eu sou o quarto, tu a fumaça                                   (cantado)


[tosse e afasta a fumaça com os braços

como se espanasse uma nuvem de fumaça pra fora do quarto]


De novo sinto o cheiro de amor no ar:

cebola & alho, o par perfeito, bem picados,

numa panela a refogar.


Batata Laranja, Abóbora Cabotiá

Batata Rosa, Gengibre, Alface

As frutas e legumes compõem

seu prato, decoram sua casa;

há um aroma vegetal por seu corpo, 

seu sexo, sua face.


Cheiro de alho nas mãos dela

uma nova forma de se preparar berinjela

ela vai e vem

de um lado a outro da cozinha,

à procura de uma certa faca,

uma seda, um abridor, uma tigela.


Chá de Malva, Hortelã

Azedinha, Ora pro Nobis, Salsão

Ele conhece as pancs, 

e está sempre a aprender uma nova receita

macarronada de palmito,

pasta de amendoim caseira

pesto vegano de manjericão

ele macera bem os ingredientes

pra logo mais nos macetarmos entre a gente

nus pelo chão


Não bastasse todas as coisas

em que se esmera

sabe ainda fazer

delícias com nabo

legumes com quem

não tinha me amigado

conversam comigo

em seu refogado

lugares de sabor

em que nunca tinha estado:

saio dali sem nunca mais vê-lo 

mas levo comigo o seu tempero


As cenouras de molho

pra durarem mais

beck bolado com alecrim

pra ficar rapidim em paz

os grãos no remolho

pra remoção de fitatos

a fumaça subindo da cozinha

em direção ao quarto...


Outra vez sinto o cheiro de amor no ar:

Bethania e Itamar, o par perfeito,

servidos sobre a cama e sobre a mesa

A louça lavada, a roupa amassada 

chocolate 80% cacau ou eu, escolha a sobremesa

seus ombros largos me envolvem

suas coxas me prendem

e chapo no cheiro de flor que seu corpo tem.


ei! te amar ainda

num mundo repleto

de gente linda

e carente de toque e afeto

me causa muito embaraço

por isso escrevo, traço e retraço

teu rosto em mil poemas

preferiria tretas e esquemas

suco de umbu, sorvete de pitaya

preferiria tardes de chapo

sem olhar para o relógio

eu entrego o meu corpo, é lógico!

para novos cultos, em novos altares

eu juro que mergulho fundo pelos ares

e o amor agora, o amor hoje

corre indiferente a esse Amor, Ainda

que por dentro me arde 

e como se não bastasse 

ainda me enche de embaraço

eu tô tentando te manter no peito 

mas a fumaça ocupa muito espaço


Sinto de novo o cheiro de amor no ar.

Na sua cozinha há sempre um aroma novo

de plantas a emergir das panelas

ela vai e vem

de um lado a outro

da minha vida

e os meus poemas...

                                               têm o cheiro dela.

23 de março de 2023

Eu já tomei meu remédio hoje?

se tomei, deveria estar mais feliz

se tomar uma dose muito alta,

complico as coisas mais um triz.


fico atento aos detalhes:

na roda ao lado a moça diz

eu nem sei o que comi no almoço rs

e todo mundo racha o bico.


corta pra sessão onde minha psico

me ensina a usar uma agenda 

como se eu tivesse chegado hoje ao planeta

a usar os alertas

a fazer na mão um X com a caneta


eta vida besta meu deus

eu já tomei meu remédio hoje?

pago um almoço para quem me ajudar.

17 de março de 2023

Felice II

volto do teu sonho 

ouvindo som alto

em vez de tomar a avenida dos passos

entro na chuva e me perco

nas curvas da estrada do salto

sabia que me perdia

pois a voz do rádio

aos poucos sumia

que há por aí, em tuas antenas?

o chiado do rádio 

o chilreio dos pássaros

o peito lleno de penas

um cheiro do passado

em retrogosto renovado 

com os pés molhados

retiro sapatos que não

consigo mais vestir

e ainda me deixam bonito

no espelho encaro 

essa nova versão

de mim sem paixão

e por respeito estendo

a mão para minha imagem dissonante

e é então que

errante por horas de folha e breu

uma árvore caída me diz:

é preciso voltar

se estirar na grama a pensar

que bicho me mordeu

que bicho sou eu

que há por aqui, em minhas antenas?

o chiado distante aos poucos

se torna uma estranha cantiga

que há muito não ouvia:

familiar e fugidia

me atira em outro dia

e aos poucos me guia 

pra fora da chuva.

4 de março de 2023

Demi III

A Cris é gay

Como Safo

que trago no

braço traçada.

A Cris é

fisioterapeuta

& artista

e traça a vida 

na manha

com suas gatas

suas pesquisas

e sua amada

pelo menos é assim hoje

por que a gente muda,

não muda? 

todo dia

nos sonhos 

uma nova versão

de nós é forjada 

vocês mesmo, 

dando uma olhada,

me parecem 

estranhíssimos

nessa noite estrelada: 

Tem mudança nessa mirada

e a pele de vcs

por algum motivo

ainda treme.

Eu, Edu,

sou Demi

como...

como...

como...

não conheço nenhum

poeta demi pra citar

mas elus existem

assexuais existem

demis existem

outras formas existem para 

além dessas

além do guarda-chuva

cinza em que nos abrigamos

ser amplo também

cada pessoa tem as suas

particularidades, meu bem

se vc conhece 

alguém assexual

você conhece 

aquela pessoa

e ela não vai

nunca representar

todas as formas 

de viver ou não viver

a sexualidade

ou

a assexualidade

Por isso a empatia

Por isso a escuta

atenta de cada um,

nossa responsabilidade.


É preciso falar

pôr o coração na mão

e abri-lo: 

em metades, se vc for romântico,

em pedacinhos, se vc for poliamoroso,

ofertá-lo assim mesmo, aberto, como um solo,

se for assexual arromântico,

para que se cultive ali o que te alimenta.

Eu tô dizendo tudo isso nessa levada

porque

não raro

das redes sociais

saio toda machucada

os termos que uma pessoa

usa para se definir e fortalecer

viram piada

"ah, mais uma caixinha"

minha sexualidade não é

uma caixinha, camarada

se eu quiser fazer dela uma caixa

que eu faça, uma aberta, bem enfeitada

mas é eu que devo a criar

como cabe a mim ouvir 

e respeitar 

os dones das outras caixas

ser quem se é não é caixinha

aliás, para uns é caixão,

não pode nos faltar essa noção

do que nos aproxima e nos difere;

as lutas que se travam em comum

e as lutas singulares de cada um;

discurso fere

palavras matam

não à toa

o Brasil

é o país que MAIS nos mata!

Para minha amiga Cris

eu conto meus sonhos, minhas dores,

quem eu sou de verdade

de como queria ser Safa

como Safo

meu sonho de ser 

uma grande vagabunda, 

transando safofo

um malandro romântico

safado só no off

para quem sabe assim

esquecer quem ainda amo

e que não está mais aqui no meu mundo

pessoas que não entendem por que

ainda penso nelas

se a fila do amor e do sexo anda e  o mundo taí 

cheio de corações por detrás das telas.


O que a gente é e sente

é coisa nossa e que cabe

compartilhar;

isso se gente QUISER pôr nossa novela no ar;

para fazer minha vida melhor,

eu decidi abrir meu coração e falar.

a boca fala do que o coração está cheio.

e o meu está cheio de amor e safadeza e

também de duas certezas:


1) Amar com liberdade

é amar até mais tarde.


2) 

Seja o que for

para vc amor, 

é preciso dizer

É preciso falar

É preciso pôr

o coração na mão

e abri-lo.

26 de fevereiro de 2023

Bruno e Dom

Bruno e Dom
têm nomes e dons
rostos, vozes, histórias
e o peso do nosso luto, se somado,
não dá uma grama do peso que há
no peito da família que os ama
não vence o frio que deixaram
sobre as camas (sem chama)


É sempre assim:
a comoção nos toma e nos inflama
mas a internet é um solo que não pega fogo
(sem chama).

Cuidar dos vivos
é saudar os mortos
cuidar dos mortos
é fazer justiça
e para fazer justiça
é preciso manter vivos
os vivos.

Bruno e Dom
Brunas e Donas
Bruno e Dom estão em Palhoça agora
e precisam de nossa ajuda
Bruno e Dom estão ali na beira da BR101
nas comunidades e aquilombamentos
e por vezes vêm para o centro das cidades
pedir o fim do marco temporal, da violência, da fome
e precisamos ajudá-los.

Bruno e Dom tem fome
mas sua cidade não tem restaurante popular
se chamam Chico Mendes, Dorothy Stang, Berta Cáceres,
Vitor Guarani Kaiowa,
precisamos descobrir-lhes seus novos nomes e novas formas
(a luta é a mesma, desde há muito);
Bruno e Dom também se chamam
Bruna Andrade e Isabella Colst
mulheres trans assassinadas nos Ingleses
em outro crime sem solução.
É sempre assim:
a comoção nos toma e nos inflama
mas a internet é um solo que não pega fogo
(sem chama)

Cuidar dos vivos
é saudar os mortos
cuidar dos mortos
é fazer justiça
e para fazer justiça
é preciso manter vivos
os vivos

Uma poética TDAH II

enquanto cruzamos o Túnel Antonieta de Barros

ouço conselhos de Marco

você precisa se organizar

falo isso porque te amo e te quero bem

e sei que o mundo devora quem dá bobeira

é noite e eu fico calado pensando 

procurando uma forma de explicar

a ele que há 31 anos eu sei isso

e me esforço para não ser devorado

para eu mesmo não me devorar

depois já é a rua Hercílio Luz

e em outro cruzamento

um grupo de homens cishet

passa pelo slam a

debochar do varal de 

poesias amorosas

o medo que senti

relatei a WD

para quem a poesia é 

também - pressenti

a penúltima chance de 

se entender 

como faço para minha 

mensagem calar fundo

lá onde a dor ainda 

não tem nome e forma?

respiro fundo

e na dúvida entro

em outro túnel

21 de fevereiro de 2023

Demi II


Mexa comigo porque ando só.
Em amores perros me consumi
e renasci das cinzas desse pó
da zona cinza em que o amor
demi nasce e não se encerra
renasci mais forte, mais seguro,
mais gostoso, melhó...

Mexa comigo porque ando só
forjado em rebeldia e fogo no rabo
me faço demiurgo
e pela noite te procuro
de bar em bar,
de ave em ave,
nos motéis em São José
nas piscinas naturais da Lagoa
onde sinto medo e já não dou mais pé
ali também, pessoa, te procuro
meu corpo arde sobre camas estranhas
os sentidos do amor eu apuro
adivinho de sonhos e de sanhas
desejo extraído de entranhas
me abro em relações sem senhas
a ali me aventuro (e ali te procuro)

contrasenso amar um único fruto
que uma, hora, como tudo!
se corrói, por sua natureza,
muito antes amar a madureza
os frutos e seu processo
nosso amor em contínua negação
da ideia de progresso
sem medo de dizer
RETROCESSO!,
volto, me expurgo,
saio sozinho pela noite
mergulho no escuro
de encontro ao passado
eu e você lado a lado
de olho no futuro que não
cessa de nos acontecer

Mexa comigo por ando só
a cachorrada poliamorosa
não dispensa um xodó
o que se leva dessa vida
é o que se come o que se bebe
o que se fuma e o que se goza
o que se, namora, enfim, e só!
Por isso venha sem dó
com vinho e com massagem
para lamber os cantinhos do corpo
e não deixar crescer ali o pó
para envolver tuas coxas
às minhas axilas e inventar
marinheiros que somos 
um novo tipo de nó 
Mexa comigo, que eu deixo,
consentimento e com sentimento,
que é como se viramos
no vale demissexual
venha que ainda é carnaval
e é um desperdício eu e vc 
nesse samba de uma nota só
mexa comigo, que eu deixo,
mexa comigo porque ando só.

Felice

Quero sempre sonhar com você
Porque de você gosto demais
Quero sempre sonhar com você
Porque olhar já não posso mais
Sonhar é ver dormindo e deitado
Entre os bichos e a relva
sentir medo à posição ereta
de ser flagrado em sua 
própria casa.

À custa me levantam
o despertador
inimigo número um 
da onirografia
institui a quarta feira 
de cismas e a imagem
velha que vc faz de mim alija.

Aí morro, em eternidades falecidas,
bem longe dos teus cabelos
e mergulho na luz 
embotada do real
já há muito despida
de sensualidade.

2 de fevereiro de 2023

Cachorrada II

em "Betsy", de rubem fonseca,

a voz narrativa oculta o binário

homem-animal em prol de um bios

comum: acordo e me refestelo

(preguiçosamente!) na cama

com medo das feridas que há

para se lamber ao longo do dia.


em "Clau", de liniker,

o jogo é breve - por um instante

todes comemos escondidos

alguma coisa de nossas mães;

passado o pito, volta o cão 

na palavra 'você'; só não voltam

pra perto você, Betsy e outras nuvens

choradas nas caixas de luto e afeto.


que cruzamentos haveria

entre o queer e o animal?

se pergunta gabriel giorgi

parece que em mim também

se apetecem travessias singulares

em tardes de praia limiares

uns olhos que eram negros

um, dois, téo:

agora são mais castanhos

o pelo que era negro e escorrido 

o meu cheiro preferido

um, dois, téo:

aqui se crispa entre as mãos

a palavra você, entãose afasta

guapeca, guaipeva,

sem rastro, sem choro,

sem olhar para trás.

Cachorrada I


em Copacabana Mon Amour (1970), de Rogério Sganzerla, no minuto 01:09:22, o trabalhador, após matar o patrão, desfila pelo morro, enquanto dois cachorros de última hora tomam isso por um convite à farra geral na América.

em Linha de montagem (1983), de Renato Tapajós, no minuto XX:XX, enquanto um grupo de mulheres confraternizam-se à saída da fábrica, um catioro de rua de pelo preto passa por trás do proletariado e acessa a fábrica para implodi-la.

em Nitrato (1974), de Alain Fresnot, por alguns segundos, em meio ao inventário do abandono, surge, na tela, paulo emílio salles gomes, gato ao colo, a falar sobre bichanos e por isso o cinema não acaba a despeito de tantos atentados dos nossos caudilhos.

Na abertura de La teta asustada (2009), de Claudia Llosa, os perritos observam as tradições peruanas dispostas à mesa e torcem para que o Capital lhes deixem alguns nacos.

em Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (2018), de Renée Nader Messora e João Salaviza, os cães do povo Krahô, que nunca viraram latas na vida, celebram, entre os vivos, os mortos, cientes de que são parte igual da natureza - a serem chorados e amados também, por que não?

em A carrocinha (1955), de Agostinho Martins Pereira, Mazaroppi vive a fábula reencenada em cada esquina brasileira: o Novo Poder tem uma idade, uma cor e um gênero e odeia perritos de rua tanto quanto odeia pobres. Os próprios cachorros oferecem ao povo a saída (feminina) para nossos problemas américos: a tomada das ruas (femininas), donos que somos de nossas guias (explosões).