30 de dezembro de 2009

A pena é um sentimento muito pesado. É preciso ter cuidado de pássaro. Eis o porquê dos homens não voarem.

22 de dezembro de 2009

segunda carta aberta do poeta trágico

amigo,

acordei hoje pela manhã,
e os móveis continuavam em seus devidos lugares
(eles devem isso à ordem, bem como eu devo a minha loucura à minha humanidade)

o olhar pela janela buscou a paisagem,
a transparência do vidro nada tem de bela
pássaros bem sabem disso
(o caixilho da janela é um oráculo sedento
que pede devoração todos os dias)

passo os dedos
pelos móveis rústicos
lambo a camada fina de poeira sobre eles

manhã fria e calma dentro desse cubo donde lhe escrevo
lá fora, uma neblina vaga, sem qualquer mistério ou ilusão,
fácil divisar todas as árvores e pedras
(uma poeira fina que cai de um céu antigo)

bobagem minha, escrever a ti
(és uma caverna funda, vazia, na qual entro para soltar um urro animal e sair fugido)
inútil contar-te o gosto da poeira que cobre a exata geometria entre meu corpo, minha mesa, a cama a e as venezianas

afinal
lambo essa poeira para sentir novamente
aquela sede que ninguém pode saciar

com meu apreço e desespero,
teu amigo

16 de dezembro de 2009

minha senhora

Assim que as portas do ônibus se abriram, a multidão agoniada debateu-se para entrar. Deslizando um no suor do outro, o povo transbordou-se no carro. Vários tipos, vários rostos. Pêsames e Pesares. Pesos e medidas. Mulheres curvilíneas. Garotos com cabelos asfaltados. Óculos tortos, semáforos fechados.
Na primeira parada, entra uma mulher com uma criança no colo. Avança pelo corredor inquieta, com certeza aguarda a ocasião em que alguém - mais jovem, mais forte, ou ainda, mais generoso - levante-se e ceda o lugar a ela. O carro segue sua rota. Nas pessoas, pequenos movimentos de marola. Nada de mais. Espirros e Risadas. Ideias e Ideais. Um olhar procura o relógio do outro. Segunda Parada.
A mulher, assim que entrou, apoiou-se numa das barras de ferro verticais com uma das mãos. Na outra, o peso do seu pequeno e pesado fardo. Cara triste e roupas fajutas. Meus pesares, minha senhora. A mulher tem o rosto fechado. os olhos dançam, correm, reviram-se em busca de alguém. Ninguém. A música está tão boa, o papo também, a bunda da loira também, o romance policial também, a divagação também, o olhar perdido também. Estão todos contentes. Alguém ouve o que os outros pensam? O rosto da mulher está fechado. Está irritada, sem dúvida. A criança tem a cara triste de um adulto.
Um filho é algo pesado, sem dúvida. Não é fácil criar um. Mas a mochila é algo pesado. O poema é muito pesado. O pacote de salgadinho também. O vazio da vida também. O dia de trabalho nas costas também. O fingir-que-não-estou-vendo também, tudo é muito pesado nessa vida. A mulher demonstra cansaço. Quer chamar atenção talvez. Ela bufa. A criança perdeu seu olhar em alguma curva que o motorista fez com desleixo. Fomes e tédios. Bonés e bolsas femininas.
Quarta parada e uma mulher, sentada à janela, tenciona chamar a mãe com o fardo. Ensaia, titubeia. Ao seu lado, um adolescente impassível como um morto. Então ela chama: "Será que ele fica quietinho no meu colo?", apontando o menino loiro sem olhar. A mulher se limita a sorrir, um sorriso furtado, mais para um alongamento da boca do que riso. Ventricular, ela nega. Não, ele não ficaria. O adolescente continuou impassível. Ignora os postes que se acendem e a mulher com seus braços de pedra.
Ônibus lotado, ninguém desce. Apenas sobem e sobem. Pontes e curvas. A mulher troca a criança de braço. Esta não manifesta qualquer reação. Ônibus lotado, pessoas limítrofes. "Qualquer erro topográfico será considerado assédio sexual", diz o regimento.
No fundo do ônibus, nas laterais: pessoas e pessoas a balançar na marola urbana. No centro, uma mulher se afoga, agarrada em seu fardo, sua bóia. Caos no trânsito das ideias.
Colado na parede do carro, próxima à primeira fila de bancos, um adesivo: "banco preferencial para idosos, gestantes e pessoas com crianças ao colo". Rabiscado na camisa do adolescente, "Marlboro" também. "Jesus te ama" também. Rasurado no banco último, "Puta velha" também. Há tanta leitura nessa vida. Chicletes e Bitucas. As pessoas continuam marolando. E a mulher continua com o rosto fechado.
O olhar agora é mais calmo, como se ela estivesse cansada de procurar um olhar-testemunha. Sim, ninguém vê. Mesmo lotado, as pessoas não estão aqui.
Nova curva mal-feita. "Filho da puta", grita o homem de uniforme azul ao motorista, acrescentando mais um risco ao ônibus rasurado. A mulher quase caiu, tonteou, mas segurou-se firme e manteve a criança no braço.
Sétimo, oitavo ponto. Ponto. Ponto. Um rosto fechado e longe de mulher estuprada. Um olharzinho triste de ausência. Bocas ridentes e bocejantes aguardam o ponto final da virgulosa viagem.
Alguém puxa o cordão de aviso. Um apito. A mulher e seu fardo vão descer no penúltimo ponto. Ninguém se moveu.
O ônibus para. Descem. O ônibus fica incrivelmente leve. Ninguém se moveu. Estátuas e
recepcionistas. Postes e domésticas. Crianças e desempregados. Poetas e pescadores.
Logo o carro chega ao terminal. Parada final. Aguardo todos descerem. Sozinho, contemplo-me. Recordo os rostos. Recordo-me. Levanto da minha poltrona, cuja posse consegui com um movimento rápido de peixe, assim que as portas do ônibus se abriram.
A criança era pesada, bem sei. A imagem panorâmica dela com seu fardo, ali diante dos meus olhos, também. Minha crônica também é, mulher.
Meus pesos e pesares, minha senhora

6 de dezembro de 2009

sem estrelas

à saída da boate
o carro, com imaginação automática
4 bocas, beleza hidráulica
e pernas turbinadas
arrancou,
ao som de gritos eletrônicos
e uivos techno,
deixando marcas
e estampas coloridas
sobre o asfalto

carta aberta do poeta trágico

você,

hoje abri dez vinte livros de poemas, de bons poetas
e escamote-ios
como se precisasse de paixões

e meu consolo é que
sob essas figuras baixas e pobres de linguagem
que tento reproduzir
dorme a língua
lépida e lírica
que transita entre teu sexo, as chagas, e os poemas dos outros

miserável

Eu

29 de novembro de 2009

os namorados

à Daia, meu poema preferido

ele sempre disse "és meu peixe predileto", "és o fruto mais alto que colhi na arvore da manhã", ou então, "és o meu pássaro". A tudo isso ela corava, maravilhada. Mas em seu coração, doía pensar que ela era um pássaro, um peixe, um fruto, algo tão submisso. Algo facilmente abatido. E devorado
quando ele falou pra ela "você é minha estrela, a estrela do meu céu" ela ficou feliz, achou bonito, mas no fundo achou pequeno ser tão-somente uma estrela, quando ele tinha todo o céu.
quando ele falou "és, o meu chão", ela sentiu orgulho de ser a sustentação dele. Mas, em seu coração, dormia uma tristeza. O chão é tão submisso. Pisado.
e ele foi falando, foi falando, ela foi corando e sorrindo e guardando.

um dia, um dia sem horas,
ele acordou pras palavras
acordou para ela,
e disse
sem ensaio, sem dicionário
disse porsissó, disse por dizer e amar

-- você é o meu poema preferido.

então, a menina
olhou firme, olhou mulher
lhe deu um beijo e o abraçou tentacularmente
pois ela sabia
que o poema se abraça ao poeta
e o faz afogar-se
em busca de um fim que nunca vem.





PS: esse texto é ficcional. nem tudo aqui tem realmente a ver comigo e com a daia. não confundam. Ouviram, senhores Robson e Ítalo? :D

17 de novembro de 2009

Enchente

os olhos das crianças
são baratinhas miúdas pelas paredes
eia, eia! corre-corre
(no quarto dos fundos a velha senhora sente a água subir pelas canelas)

eia, eia, chuvaréu
a corredeira calou a boca do lobo
uiva a mulher sem peito
e a criança sem leite
e a chuva vai, torta,
regendo a banda desafinada

eia, eia
passou a chuva
mas ainda se debatem, no céu, os últimos peixes
e as baratinhas miúdas recolheram-se
ao canto sujo
que é a memória infante

15 de novembro de 2009

Vandalismo

falam com as paredes
mas não são loucos
falam sobre as paredes
(dentro do muro ecoa um urro que estava preso sem abismo)

há nesses rabiscos em prédios públicos
uma concisão exemplar (como dizem!)
lapidar
aliás
aquelas cenas de sexo
aquele palavrão cheio de espinhos (fere alguém?)
aquele assinaturas, em letras gigantes e distorcidas
esses rabiscos todos,
não deixam de ser epitáfios

13 de novembro de 2009

Uma curva em Itapema

As ondas quebram sem perdas
(pedras encalhadas fazem viver o limo)
o céu é denso e nele me afogo
mas eu passo e passo e passo e passo...

Agora prédios e morros
(ai, eu morro eu morro)
Só restam as ondas do céu

Sabiamente, faz chover
pra gente lembrar que o mar sempre está

E esses prédios e prédios
de muitos andares
todos cabem com folga no poema, na palavra
não importa quanto cimento tenham
mas o mar..

o MAR
só não explode em 3 letras porque não tem limite,
abismo que é o coração de quem sente

Pela estrada o ônibus me leva
a rodovia tem curvas e curvas
só pra esconder a paisagem
e fazer gozar na curva seguinte
isso é bobagem
o carro me arrasta, não estou lá

escorrego pelas mãos
e meu visgo beija o limo das pedras
mar mar
ah, o MAR:
suícidio nas ondas do céu

8 de novembro de 2009

não era dança

à Daia

horizonte que eu trago nas braços,
fogo silencioso que colho na noite,
é você quem embala o menino irrequieto que sou
o mundo hoje tem o dobro de faces do que tinha ontem
antes eu tinha um relógio: agora desato nós de horas
minha memória, hoje, é feita de fotos de futuro:
a chuva que cai lá fora agora me encharca

tenho me descoberto.
novos espelhos. tudo mudou.
agora reexperimento as palavras
(às vezes, me assusto. Vai passar?)

tenho me inventado.
aprendi em teus gestos em falso
e sorrisos soltos
que meus olhos sempre se debateram
em guerra:
não era dança
hoje sou mais menino do que nunca

horizonte que trago nos braços,
fuga anunciada no meio da multidão

já nem sei onde estão meus olhos
procura-os em teu corpo
e acalanta-os

6 de novembro de 2009

as outras pessoas

desaprendendo-as me liberto

31 de outubro de 2009

poemas para ler escondido do seu chefe

I

DOS CARIMBOS

à brasa e tinta uma marca de posse
a marca corre pela metrópole-eternamente-burgo
e eis que vira uma marca de ausência
venda triste
troca falida
empréstimo roubado
alienação amigável
já não se sabe mais
os donos ficaram no caminho
(falência com memória, mas sem saudades)

mas se ausência não tem marca
o que é isso então, à brasa e tinta?

carimbos são cicatrizes sobre o papel

II
OSWALD & OSWALD Poesia Iltda.

Há poesia
na flor
na dor
no beija-flor (que beija-flor?)
no elevador

mas na sala do chefe não há poesia

III

TEMPO

Aqui o relógio é peça sexuada

IV

PRESSA PRESSA

Todas as horas acabaram enquanto eu abria os olhos

o tempo não dói, não, despertador

não há despertar para dor alguma:
pode tocar à vontade, que a gente já acorda morto

V

SETOR DE VENDAS

ventilador vendedor grampeador corredor elevador perfurador computador picotador
fazem o diabo à quatro com a dor por aqui
qualquer dia, alguém sente ela

VI


ASSINATURA

o bom poeta põe sua assinatura em cada verso
e é o leitor que autentica
que reconhece
que apaga
rasura
mistura
corrompe
promove
vende troca compra a poesia,
essa mercadoria

VII

MISSÃO

O chefe ordenou ao encarregado dos chamamentos para que ele orientasse o coordenador dos auxiliares para que esse, num grito de pressa e solidão, encontrasse alguém para servir um cafezinho aos convidados.

VIII

CARTA COMERCIAL

A secretária vai bater os convites à máquina.
O chefe pediu: "Capriche nos pronomes"
Pobrezinha, é meio surda, ouviu "Capriche nos pormenores"

IX

CARO SENHOR DOUTOR ORLANDO BENEVALENTE

Convidamos a sua pessoa tão lustrosa e castiçalosa, para um jantar devorador beneficente organizado por nosso, digo, pelo escritório do sr. meu chefe.
Dia 20, às 8 horas em ponto ou quase isso, no salão oval, digo, esférico de nossas instalações. Tal jantar, digo, ceia tem por secundal intuito arrecador fundos (bem fundos mesmo) para a caridade caridosa do Dr. Bonança, sr. meu chefe. Sua esposa & amantes também estão convidadas, bem como seus filhos e outros penduricalhos. A comida estará gelidamente deliciosa e o champagne-champanha estará raivosamente espumante. A entrada custa o singelo-belo valor de 100 reais por cabeça, digo, pessoa, digo, diploma.
o Dr. Bonança - sr. meu chefe - quer imensamente vê-lo de corpo presente nessa festa-festa da solidariedade-solidão. Para tanto, solicitamos a gentileza óbvia de confirmar sua presença e de seus convidados-agregados. Para isso, o Senhor Doutor pode utilizar diversos meios como telefone carta e-mail ou fofoca entre telefonistas e secretárias.

Atenciosamente distraídos,
Bonança Negócios Ditos Financeiros Ltda.

X

ENCOMENDA

Que esse poema chegue
o mais poeticamente possível
nas mãos do Sr. Diretor!

XI

TRAJETO

Desbravando poltronas, canetas, câmeras e portas fechadas,
o auxiliar chegou à porta do Sr. Diretor.
Bateu na porta como se doesse nele.
Entregou o poema para a preciosa apreciação do Sr. Diretor

A porta bateu na sua cara
duas vezes batida.

XII
SR. DIRETOR


Homem gordo de muitos sorti-privelégios, sabe tudo das leis do comércio.
É o rei, diz o capacho da porta do banheiro que sonha com a promoção
Tem faro para os negócios, dizem os amigos que o rodeiam (enlaçam-no?).

Bem, rugir ele sabe.

XIII

A MODERADA APRECIAÇÃO

pegou com delicadeza o poema
(não quis passar os dedos pelas arestas)
letra por letra
(não quis pular linhas)
conferiu.
pegou a calculadora. depois a régua. depois o dicionário.
jogou contra à luz e achou-o suspeito
(seria falsificado?)
chamou o auxiliar

XIV

CONSELHO VINDO DO CHÃO

-- Doutor, talvez o senhor devesse lê-lo.
(doutor bonança se irrita e levanta-se com fúria)
-- Nada devo! Sou um homem de palavra e negócios certos.
Não devo a ninguém! Pago meus débitos!

XV

PAUSA ETERNA PARA UM CAFÉ

-- está despedido! Para o olho da rua!

XVI

NO OLHO DA RUA

e o auxiliar não mais auxiliar
foi caminhando,
invisível e cambaleante
como se fosse um cisco

16 de outubro de 2009

a perdição dos amantes

-- comigo
-- qualquer coisa, pode ser qualquer coisa desde que seja doce, cristal ou febre
-- para uma vala funda
-- solta-me numa baforada longa

me traia
me traga
me trague
me traz
e ele me pergunta
me traga
ele me traga
me traga
e ele me pergunta "o quê? O quê?"

é nesse momento que meu corpo é arrastado e eu sublimo

11 de outubro de 2009

Aniversário

alguém jogou um bolo de anos nas minhas costas
e disse que foi eu que o fiz
arre, eu lá sou escultor!

eu sou de rasuras,
me amassando todo dia
sou de garranchos
escrevo torto por linhas ainda mais tortas
para desembocar em mais um dia

eu não faço anos
calendário é coisa muito antipática:
nada como o céu
que é arbitrário em sua noite-dia
mas sabe chover de repente

vida também é engraçada
contamos tudo
dedo por dedo
letra por letra
para morremos de repente

eu não faço anos
calendário é coisa demais organizada para eu seguir
tempo, sim
gasto e regasto
mato e beijo

feliz tempo para mim e para todos nós

3 de outubro de 2009

Omnibus

Se ele andasse com elas abertas, talvez tivesse algo de pássaro.
Lotado. Como meu próprio cheiro e sinto repulsa. As mãos vão ao bolso em busca de minhas moedas. Alguém me chama. Não, não, é outro. É outro, o chamado. Eu sou quem chama. Chama, chama. Quente, quente: carro repleto de chamas e chamamentos.
A mão volta trazendo um batom. Um canivete. Uma camisinha. Um pedaço de pão velho. As moedas não são minhas. O homem ao lado fede como uma quarta-feira.
De repente, um aquário. Não mais ônibus. Sim, um aquário: cardume de rêmoras com as têmporas coladas nas janelas. Visgo. Falta água, ar: borbulhar, borbulhar. Falta coral, direção. Nadar é tudo o que temos.
Não. De repente uma boîte. No teto do carro, uma placa com os dizeres: "proibido o pole dancing. Use as barras apenas para equilibrar-se". Postes e placas: jogos de luz e concreto.
Leio um capítulo por dia do Livro da Juventude. É o que lê a senhora-gorda-de-uniforme-rosa-fraco (enfermeira?). Às vezes jornais e revistas de outros. Às vezes as curvas que fazem as bundas jovens das mulheres. Às vezes um homem bonito. Às vezes uma criança bonita. Quente, quente, quem me chama? E quem é chama?
Se o carro andasse com elas abertas, talvez me sentisse mais distante e menos só.
O carro é público. Público e indiscreto como uma vida. De repente, uma vida: uma teia repleta de nós. Nós.
O adolescente pulou a catraca e caiu no meu colo. Levei as mãos ao bolso e eram seios bem jovens. Cheiro de balas. Suor. Visgo. Sede. A mulher fechou o livro e foi como se desse um tapa. Leio jornal e estampas de camisa.
Aquela placa, aquele aviso. É uma piada. Uma provocação aos que tem desejos suicidas. Quem fez está rindo de mim.
Há uma mulher. Ela quer adivinhar meu rosto. Alguém desceu. Dois homens embarcaram. Há algo de gangorra aqui, mas não sei explicar muito bem. Vem uma música lá de fora. Há música aqui dentro. Celular. Um bêbado canta e ele nina os demais. As mãos estão dadas. Tenho sete faces, pois sete lados. Não respiro: como cheiros. Lotado.
Lotado. Apertado Apertado. Cocei meu nariz e eu já sou outra pessoa. Meu nariz é adunco e tenho 67 anos. Não, eu tenho 3 anos. Alguém me prensa. Tem uma barra, acho que é um pau, que insiste em prensar-se contra minha bunda. Uma criança, ela quer me adivinhar. Alguém coçou meu olho. Queria fechar os olhos e cantar baixinho, mas é proibido conversar com o motorista.
Tire esse pinto daqui. Quero chegar logo. Lotado, lotado. Não é para todos esse carro. Abro um livro de poemas e me sinto nu. Um bandido. Que sede. Descem mais pessoas. Subiram outras. Subiram as mesmas. Chama chama, quente quente. Lá fora, eu vejo um bando de cães passeando.
"Para sua segurança este veículo apenas se movimenta com as portas fechadas". Ai Jesus, nunca entendi essa frase.

É uma piada, né?

30 de setembro de 2009

os poemas de antes

Gostei dessa história de postar poemas antiguinhos. Ótima tática para situações como a que eu me encontro: cheio de coisas a fazer e pouco tempo.
Enfim, aí vai mais um. O anterior era uma brincadeira com o A. de Azevedo e esse faz referência a um poema do Manu Bandeira, "o poema retirado de uma notícia de jornal".

POEMA RETIRADO DA SEÇÃO DE OBITUÁRIO

Joinville, 1º de Janeiro de 2008

Ontem, no horário de sempre (à meia-noite)
faleceu josé. Morreu na casa de sempre
vítima de causas habituais
O falecido será reenterrado, hoje,
no cemitério do bom ano
O morto deixa, dessa vez, cinco filhos e a esposa.
De sempre.

Vida eterna para josé.

27 de setembro de 2009

O novo mal do século

olá pessoas. Em tempos de pouca criação, ando desenterrando uns poemas velhos, do ano passado e do retrasado. Muitos carregam grandes defeitos ou escorregam em clichês. Ainda estou cheio desses defeitos, mas pouco a pouco, tenho me desfeito. Mas de alguns eu gosto, e por isso postarei.

Abaixo, um deles. Uma brincadeira com o nosso amigo Álvares de Azevedo.
Abraço.


O NOVO MAL DO SÉCULO

-- Vês, querida, minha febre lenta...
minha fronte lívida,
o suor gelado de meu corpo,
minha agonia doentia,
meu respirar titubeante..
só tu! só tu podes curar o meu sofrer!
-- O que queres, meu poeta? Um beijo quente?
Um afago róseo?
-- Depois, agora quero que me traga um antitérmico, um xarope, um antibiótico e outros comprimidos coloridos...

24 de setembro de 2009

Pressa Pressa

Pressa Pressa, vamos nessa. Depressa depressa, não me estressa. Vai, vai. Café com pão café com pão. Eu preciso ser rápido. É meia-noite. Já estou dentro da segunda-feira. Ó, meu Deus, como o tempo passa. Preciso ser rápido; acabar esse texto. Preciso dormir. Antes, preciso escovar os dentes. Tomar banho. Preciso amar. Mas calma. Vou devagar. Devagar como um louco. Sereno como um assassino puro.

Vida. O que temos feito dela. O que temos feito com ela. O mundo tem girado cada vez mais rápido. Time is money. Hurry is money. Nunca o tempo foi tão contado. E nunca foi tão perdido. Vive-se o amanhã, o dia depois de amanhã. O mês que vem. Financiei minha vida em suaves prestações. Juro? É especial: um pouco de morte vai se somando.
Foi-se a espera. Foi-se a paciência. Jantamos o porvir todas as noites. Jogamos fora todo o nosso hoje. O passado é sempre museu.

A poesia resiste. O erotismo cedeu. Pornografia é o negócio. Mais rápido, depressa, sem enrolação. Time is money. Sex is money. Pra que tirar? já venha sem! Pra que pensar: aja, faça. A noite resiste, O dia insiste. Troca-troca. O dia resiste, a noite insiste. Insônia insônia: dia e noite se comendo.

Insônia, cada vez mais funda. Acorde, levante. Pense. Não pense. O que você deixará para seus netos? Você deixará netos? Você se deixará?. Previdência. Ciência: tudo novo de novo. Pense, repense. Aja, reaja. Corra corra. Morra morra. Tempo, tempo, mas que porra.

Calendário. Despertador. Hora do remédio. Da novela. De lavar a louça. Ano que vem, vou comprar um carro. Vou ter um filho. Hora para escrever. Hora para estudar. Acorde-me às sete. Não se atrase. Em ponto. Daqui a dois anos, serei famoso. Vou ter um carro. Comprar um filho.

Crônometro. Tabelinha. Ampulheta. Sol. Vamos nessa, entre no ritmo. Cada vez mais rápido. Mais rápido. Dane-se a calma, meu chefe é exigente. Esquecer a calma do louco. Abandonar a serenidade: mato e pronto. Rápido, barulhento. Ser normal é correr, ter pressa. Somos felizes. Sim, somos. Formigas loucas, baratas tontas. Vamos vivendo, levando, correndo.

A vida é o passar do tempo: passatempo. A vida no fio. Na fila. Vamos, palavras, vamos que tenho pressa. Quero o amanhã, queremos o depois de amanhã. Infinito mais um. A morte é o brinde. Não tenho tempo. Corte linhas desse texto. Acelere mais fundo. Vai vai, time is time. Amanhã amanhecerei. Mais rápido. Fast-food. Fale mais rápido. Case mais rápido. Cadê meu café? Amanhã faço bodas de prata. Sim, eu serei famoso. Depressa, depressa. Três minutos de acréscimo. Últimos lances. O banco fecha, sempre, às quatro. De quatro. Tire logo essa saia. Follow me. Follow me on twitter. De novo. Mais rápido. Rapidshare. Rapidinha. Vamos, mulher. Seja breve, tenho pressa. Precoce. Ela já tem quinze anos. Estamos em 1999. Cinco, quatro três... três, sim, eu disse três. Três pães, menina! Ande logo! Tenho pressa, meu chefe é exigente. Vamos lá mundo, em sequencia, perfilados, café com pão café com pão. Pressa pressa, vamos nessa.

Pressa pressa eu tenho pressa




OBS: esse texto foi postado, tempos atrás, no blog Academia de Escritores. Mas como esse é o meu blog de textos literários, estou passando ele para cá.

22 de setembro de 2009

a blues poem

eu queria fazer a blues poem
azulzim azulzim
daqueles que, enquanto se lê,
vai-se batendo o pezinho...

dois poemas concorrendo na cabeça
e ela se reparte
e vira duas,
duas cabeças
uma para cada pé
e todo poema é blues
e vice-versa
e o poema blues é nonsense
pois não tem nem pé nem cabeça
Nem precisa.

Sabe do que falo, né?
do blues poem
aquele que provoca riso involuntário
que provoca o morde-língua
(o bater de palmas na sala repleta de silêncios)

do que você ri mesmo?
Pare com isso! Olha o vexame!

gentes, blues poem
isso é poesia
e a chuva de olhos assustados dos outros
é música também

dancemos

19 de setembro de 2009

nada sei dos algures

nada sei dos algures
não quebrei copo algum, não recolherei os cacos

sei do que sinto
e sei que é pouco

tarde da noite ela quer contar estrelas
pensar no sabor que tem o jantar dos vizinhos
no jogo de luzes e membros das discotecas
pensar e refazer o tontear dos boêmios

Não dá.
Mal sei o que trago no bolso.

Semáforo milhão
(o verde amarela que avermelha que nunca deixou de ser verde)
e teto poça poltrona caneta música

Milhão milhão, prismas ou espelhos descontrolados
poste algures
pernas milhão

que sei de tudo isso?
não sinto. é o que ela diz.

Conspiraçao ilusão
nessa hora, choram comem gozam riem dormem acordam escrevem
milhões de algures
(o copo fica tinindo na cabeça)

Reservei todos os momentos quando abri os olhos, hoje de manhã
que sei eu das esquinas?
e triângulos?

se eu parar para pensar nisso
já serão outros algures
outros rostos
outros desesperos e pensares

milhão milhão
todos os momentos existem
toda hipótese
todo mito
religião e sonho:
vale-tudo em campo aberto

Mãos no bolso como quem abre uma porta
(de repente, uma vontade de ter sede)

que sei eu das coisas?

E o que trago à tona já é outra casa

16 de setembro de 2009

Posfácio

Revirei todo o livro:
só fiz mais e mais bagunça

Ficou uma palavra solta:
romântica e pornográfica
como um seio abandonado fora da blusa

Ficou uma frase sem sentido:
meti-a na capa e fiz uma pintura

Não há ecos
Se um livro não diz agora
não mais dirá

Mas esse livro disse
é pedra

O livro falou e deixou buracos:
enchi-os de invisibilidade e silêncio

As palavras se comungam:
uma cumpre a falta da outra
e assim, se faz uma teia

revirado, o livro. Intacto, passou.

Ficou a guerra

Ficou o leitor
sobre a pedra,
a pensar.

13 de setembro de 2009

São Paulo

I

DO CÉU

No céu cinzento de São Paulo
as estrelas são regidas pelos dedos das crianças

No teto caiado de São Paulo
as estrelas se chocam
se fundem
queimam e são trocadas pela companhia

Novas estrelas a piscar:
é a cidade, em eterna vigília,
velando seu próprio sono
sob e sobre o céu cinzento.

II


AVENIDA BANDEIRA

Em São Paulo o tempo tem tudo
(é uma outra civilização)
Eis um processo certeiro
de evitar a reflexão

III

PRAÇA PRESSA

Aqui uma bandeira fina
plantada na lua
Acolá um bandeirante
que - dizem -
um dia cortou caminho pela lua

IV

BAR JIM MORRISON

Em São Paulo
as músicas não acabam:
sempre haverá uma luz acesa

(Na janela, uma menina solitária aguarda o silêncio)

V

AVENIDA PAULISTA

o ponto final?
ocê pega ali o horizonte
passa ele
vira a direita nos dois semáforo
aí vai, infinito a dentro,
paralelo ao arco-íris
e pega a marginal

Depois?
Depois pare e peça pra outro
que eu só sei até lá

VI

VIAS E DUTOS

Menino Brasil ganhou um presente todo embrulhado

VII

BOATE OSWALD'S

noite vagalumeia
um pouco grito um pouco mordaça
chuva e garoa
o mar lançou os pescadores para as calçadas e marquises

o som do carro vira a esquina
e bate na fome do menina

uma guitarra toca na cabeça do poeta
e sirene
e chuva e garoa

chuva-garoa
yeahyeah
chuva-garoa

ciganos e cigarros
mapas e dedos
e o jogo das lâmpadas

chuva-garoa
oh-oh
chuvoa chuvoa

rebola
evola
o poeta se esconde da poesia que o persegue
chove chuva choverando

e o poeta quer dormir nas marquises

esquinas cheias
ambulâncias cheias
bares cheios

o poeta sabe que se fechar os olhos
continuará em São Paulo

chove chuva
chuva-garoa

e a noite está apenas choverando

VIII

ROTINA

Ele acordou sem calças
sobre um telhado que não era o seu

IX

JORNAIS E BILHETES SOBRE A MESA

A bolsa caiu
ajunte-a
Mataram mais 2
quero que limpe isso antes de eu chegar!
*lembrar de aumentar os impostos e limpar o teto
O papel higiênico acabou, revela pesquisa do instituto
Vai chover. recolha a roupa.
Choverá.
As novas tendências!
As novas pendências...
Vai chovê. Recolha-se.
Choverá. Tampe as goteiras.
Comércio quente: hora de bater pernas por aí.
O ano de 2010 promete grandes mudanças.
Vc só promete. Só quer saber de abrir as pernas por aqui.

E as mudanças?

Ass. X

X

PIQUE-ESCONDE

Ninguém sabe o que procura, mas todos se acham
Ibirapuera? Esconderijo óbvio do pique-esconde paulista
Santos? Armário lotado de crianças
No escuro? Achei!

XI

DOS VALORES

Em São Paulo,
a criança o pão a bala a bala-bala o esquema a esquina a buceta a carne a vaga o aluguel o jogo a partida a revista
É tudo vendido
tudo caro

Em cada esquina tem um, dois (mil) poemas gratuitos

mas ninguém olha
todos querem um pedaço
um naco, que seja

da criança do pão da bala da bala-bala do esquema da esquina da buceta da carne da vaga do aluguel do jogo da partida da revista
pois aqui tudo é vendido
tudo é caro

e o querer é lei.

XII

EPÍSTOLA-BILHETE-EMAIL-PIXAÇÃO-POEMA para São Paulo

trago de ti fotografias escritas
e poemas desenhados
que telegrafei em cada um dos teus cantos sujos

Eu sou poeta
EU CANTO POR QUE O CANTO EXISTE!

sou poeta
E tudo isso que se foda
ninguém quer meus desenhos artesanais a vinte reais

Deixo em ti, São Paulo,
tantas outras fotografias anônimas:
películas alternativas
das pessoas-cinemas

Deixo também uma olhacópia do meu rosto pálido
a ser colado no muro maior
de tua babel de faces

São Paulo,
tantas vezes outra
São Paulo,
sempre a mesma outra

Coração da terra sem coração
Acendi mais uma estrela em teu céu

É noite.

(A sirene passou correndo e entrou dentro da boca do menino)

Eu fico aqui Paulo
Continue indo, vc.

Deixei uma estrela acesa
Deixai, deixai
é capaz de a companhia esquecê-la ligada
Deixei uma vela acesa
Deixai, deixai
mais uma para a romaria:
milhões de círios a correr no metrô

É noite,
Chove.
E não há nada de novo em teu subsolo.

Sei muito bem que os muros são pixados
por que tu não tens tempo para ler epístolas

Não peço resposta
Volto para o céu cinzazul de Joiville
te virei de cabeça pra baixo
Verso e Reverso e Inverso e Versos
E continuastes a ser sempre São Paulo

São Paulo, terra de outros,
saio de ti sendo outro
mais um entre teus milhões de outros
Não amas ninguém pois não reconhece ninguém
Sabe de teus braços. Mas não os domina.
São Paulo, já outra terra
São Paulo sirene
guitarra
bueiro
São Paulo papel de bala e mendigo no chão

É noite
Estou com sono
e ainda tonteio
sou medíocre,
esperei o sinal abrir
procurei um sorriso
paguei tudo o que devia

mas
não achei muros, São Paulo
e esse poema é só uma tentativa inútil

Atenciosamente,
Eu
12-09-09, São Paulo, dentro do ônibus.

11 de setembro de 2009

Encontro

tu que te julgas egocêntrico
compareça à tua própria margem - no último ponto em que os pés tocam

apareças na última hora
último momento
trajando tua última veste
lágrima
carta
chuva

na boca do ultimato,
traga às costas teu único e último peso
sonho
sede
estória

tu que te encenas tão urgente
surja no útimo verso
na última das esquinas
na ponta da linha que sustenta dois corpos

tu,
o centro de tudo
senhor do agora-e-sempre-amén
embarque no último trem,
sente ao lado da última moça
feche sem receio tem último adeus do olhar e
saboreie teu primeiro encontro íntimo

10 de setembro de 2009

Quando as músicas acabarem

estrada amanhecida
se abrindo como sorriso largo de criança
nuvens e pedras
socos e chuvas:
notas que se sucedem mecanicamente

estrada amanhecida:
tentativa última de minha triste língua

estrada amanhecida,
balões precipitados no ar - se perdem nos socos da chuva

Eis o ritmo:
pedaços recortes signos de tantos tempos
em louca vontade de inflar o silêncio

Torta e louca
(petições ao escuro que se sucedem)
segue a estrada - amanhecida

Eis o ritmo
Eis a estrada

Sê dançarino:
busque a lâmina.

6 de setembro de 2009

(E) História (s) da (s) Pátria (s)

notas de rodapé para um livro grosso e amarelo, repleto de desenhos e traças.

1 É tal a pobreza da contemporaneidade, que já fazemos paródias de paródias. Já nos faltam originais para gozar.

2 Para entendermos melhor o pensamento demoderno do brasileiro, é válido consultar uma obra rara que serviu de base para a formação - ideológica, moralógica, sexualógica e ilógica - do país. Chama-se Bíblia(data, editora e autores desconhecidos). Livro raro (há variações), pode ser encontrado em alguns museus móveis e arquivos históricos (alguns recentemente construídos).

3 À guisa de prefácio: esse livro que tens em mãos, não-leitor, é útil (modéstia à parte) por ser um compêndio sem qualquer palavra. Um livro cheio de desenhos e traças. Em resumo: um livro bem-traçado.

4 O continente americano é dividido em três regiões: a televisiva, a cartográfica e a porsisó. Regiões repletas de subsubsubdivisões, exceto a última. América Porsisó: pedregulho cheio de rachaduras a rolar pelo planeta.

5 Quando tomou essa decisão máxima, consumia-o uma forte apreensão. E ele - o líder-mor - sempre sóbrio em sua ociosidade, tomou sua decisão. Dose única. Mas embriagadora.

6 O lema de D. Manuel era 500 anos em 5.

7 A ditadura refletiu a fragmentação das classe sociais do país.
A ditadura (dura para uns)
A ditadura (dita dura somente, para outros)
foi um período de redeocompressão. Nesse sentido, é interessante obervar o caráter prefixal da memória do povo brasileiro, que às vezes parece esquecer o radical dessa palavra dita tão dura.

8 Há outra variação (mais brasileira) para essa frase: futebolis et televicenses (sem panis)

9 Ibidem. Idem. demo. Nota Benne. Abissus Abissum invocat.

10 História ou Estória do Brasil?

11 Talvez quem trilhe o melhor caminho para chegar às raízes da violência que acomete o ser humano seja o romanciólogo Nelson Rodrigues.

12 Menino Brasil jogou punhados de sal sobre a lesma Paraguai e ficou se rindo.

13 Se Malthus tivesse conhecido o Brasil, revisaria (ou queimaria) seus escritos.

14 farda fardo
fado fado
estou farto, eles estão fartos

Se o povo brasileiro soubesse o mínimo de gramática, a história seria outra.

15 Um paradoxo brasileiro está na pergunta-chave:
Se há tanta violência gratuita
por que, então, há tanta pobreza?

Leben Leben

A palhaçada durou dois dias, e olhe lá

Vou postar de novo.

:P

4 de setembro de 2009

Aviso de corte

A companhia de poesia Eduardo S/A avisa que, durante o espaço de alguns dias, não haverá atualizações frequentes nesse blog. Talvez uma aqui, outra ali.
Motivo: falta de pagamento.
Tenho muitas coisas a fazer nos próximos dias, e por isso terei que deixar de pagar alguma conta por um certo tempo. Escolhi deixar de pagar a conta do Sujeito Oculto.

Se você entrou nesse blog por engano
solicitamos que esse aviso seja terminantemente ignorado.

Esperamos voltar a postar aqui o mais breve possível.
(Amanhã ou mês que vem. Não é possível estabelecer)

A companhia de poesia Eduardo S/A agradece a sua ausência e se despede reafirmando o compromisso de não ter compromisso com ninguém.

Dúvidas sugestões e reclamações: www.aspalavrasmortas.blogspot.com

28 de agosto de 2009

Ready-made

I



Traiz de lá:

arroz
feijão
pexe, se dé
farinha
carne
dois1saco de leite

e tu tamben

Dora


II

CUIDADO, CERCA ELÉTRICA

o pequeno só sabia ler arame farpado


III

NOIVOS

-- Tonha, se eu te pedir em casamento, ocê aceita?
-- Ara, prá saber isso você tem que pedir!
-- Tá. Mas se eu pedir ocê diz que sim? Diz?


IV

DECLARAÇÃO

Declaro para os devidos e honrosos fins, que em breve darei a eles o que é de direito.
Solicito, por fim, um pouco mais de paciência aos devidos e honrosos fins.

Atenciosamente,
Eu

V

MUNDORANDO

O último a sair
que apague o sol


VI

DICTATA

Aluno: Eu

1- PoESia
2- poi e ésis
3- poezia
4- Poe e cia
5- pohesia

VII
CASTIGO

poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia

poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia

poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia

poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia

poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia

poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia

poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia

poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesXXXXXXXX

poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia poesia


VIII

REGRAS PARA OS SÓCIOS

é terminantemente proibido entrar nas piscinas trajando smoking, écharpes, vestidos transparentes, bem como sapatos mocassim, sob pena de multa.


IX

Enc: E-MAIL

O senhor é meu pastor. Nada me faltará.

Envie essa mensagem para mais 99 pessoas, pois assim você sempre estará totalmente coberto pela lã dura e quente do Senhor.

Amén.


X


AS MISSIONÁRIAS DO SANTO JESUS CRISTO

desde às 6 da manhã, com os folhetos da missão.
venha para nossa igreja
desde o café ralo até o meio-dia.
A mão de Deus quer puxá-lo dessa vida sofrida
O chão: uma caricatura suja e acadêmica do céu.
Isaías 3:4-12
folhetos para todo o lado
O céu está azul hoje, né?
Igreja do Nosso Senhor
Não quero, obrigado
Ruas compridas
Ai, tô cansada.
Que Deus lhe guarde
É meio-dia
chão de santos
céu de chuva
Contamos com sua presença

Insegurança

sempre que escuta um barulho, de madrugada
carrega a arma e o sobrolho
e entra em casa para averiguar

25 de agosto de 2009

Teu drama

Em teu olhar,
um éter barato
esgares toscos: muito reais.

belo retrato que tu pintas:
triste língua sem rumo
os olhos, vermelhos
(esse éter falso te vicia)
bailam bailam
em teu carnaval quase-íntimo

Carnaval
Carnaval
Carnaval
isso é a soma sem fim
a receita esquecida
de muitos gestos e muitas palavras

como um tapa de mão aberta
te apresento a outros carnavais
o meu
o do vendedor de sorvetes
o do vizinho cego
da criança enlaçada pra presente

Carnaval, Carnaval, Carnaval
sentes o gosto desse tempo?

A vida é uma festa, estrela:
milhões de carnavais a despontar
uns sobre os outros
em medonha algazarra

Junte-se a nós, estrela.

24 de agosto de 2009

Ser guiado

A partida: os olhos rendidos,
olhos caídos.

os olhos vendados
chão e teto vedados
- as paredes-
a balançar como redes

A viagem:
olhos distraídos

De repente desfecho
clarão de gênesis

o mesmo mundo,
de paredes fixas - horizonte
o mesmo mundo
mas os olhos estão fora:
desajeixados

A chegada (re) partida:
olhos traídos

21 de agosto de 2009

O último passeio de um tuberculoso, pela cidade, de bonde.

dos salões abertos saem pianos enxotados
a abanar suas caudas
há luzes que brilham do farol lugar-nenhum
há crianças e há babys
há mademoiselles
há mulheres
e há marias-de-papel

das janelas fechadas
dos sorrisos abertos
dos salões
dos comércios

vêm choros, chorinhos
vêm gritos
sussuros
ulular de crianças

há pretos
há brancos
há homens de cara amarela
e mulheres de pele azul

nas ruas
nos tetos
há quem flane
no fora
no dentro
há quem inflame

fogo
chuva
vento e riso
dos palhaços circenses vendedores de jornal
(Extra! Extra! Jesus nasceu! Ide fazer os versos de circunstância!)

dança e coro
oração
modinha
coração bate
no fox-trotar dos cavalões

e
gaita
e chuva
e miado e ganido e gargalhada a balançar:
sacolejo sacolejo

dos anti-aquários salões
vem o refrão do amanhecimento
entoado no sorriso
de alguém ébrio que nada bebeu do licor da vida
e se atirou




* Título do primeiro poema em versos livres de Oswald de Andrade, em 1912. O autor o escreveu e o rasgou. O poema cometido acima, é, pois, uma humilde homenagem.

16 de agosto de 2009

Striptease

de repente me cubro.
caos:
sufocáustíco

de repente forno
calor do texto
me envolvo
mais palavras mais palavras:
tentáculos decepados
boca em fisgadas
me cubro

pouco a pouco
cada vez mais nu

14 de agosto de 2009

do trânsito

os relógios biológicos
passam depressa
tic tac tic tac
tic tac tic tac

ctacittciatcctiacitctaticatcittct
citcacttacictcaictctiatcaitcataictaiatcictitactaictiactiatcitacitacitaictiatcitaciactctaciaiitcacatcitacitacictiatcacittiaci
iatcitacctaitc
atciatciatctcicitatctacictaitc
iatcitactiactic

os relógios batem
batem depressa
com força
estrondo

batem com suspense

tic tac
tic tac
tic tac
tic tac
tic tac
tic tac
ah, meu Deus
tic tac
tic tac
tic tac
tic tac

Nas esquinas,
alguns explodem

12 de agosto de 2009

da economia vocabular

quebrar o silêncio da sala de jantar
com boca louca:
prata cheio de palavras
palavras palavras palavras
nhac-nhac palavras palavras
(com a boca aberta, bem alto)


ou


simplesmente gritar:
Porra!
simplesmente bater na mesa
Gemer.
Limpar discretamente a garganta
arrotar.


ou ainda (nota máxima, gozo dez)


fechar os olhos
e, no escuro, se entregar aos sons
sons que estão em todos os cantos
frestas
esfíncteres
tampas
e bocas:

os sons que se escondem na fria sala de jantar

Breve resumo das idas e vindas brasileiras

Eu me vou por esse mundo

Mas não permita Deus que eu morra
sem que eu volte para lá.

9 de agosto de 2009

Musa

corpo de palavras:
o gesso nunca falou tanto

A cama desfeita, teu corpo assim tombado
sinuoso:
palavras estranhas

costas geladas, boca seca
o que, então, me atrai?

agora vejo que te falta um seio,
falta-te o seio esquerdo
teu pulso é lascado:
palavras exigem reticências

lambo
recito
olho
me faço teu pedestal
por que sei e não sei o que me atrai

esse teu seio esquerdo
cada vez mais presente
cada vez mais perto
e ele me vem na boca
e ele me vem na boca

vem, reticências, vem

e ele me vem, mas volta
e volta, revolta

esse teu seio
cada vez mais esquerdo
cada vez mais palavra
que palavra?
que palavra?

Sob Juízo

Prometo falar a verdade -
a mentira: folêgo da criação-
nada mais que a verdade

30 de julho de 2009

Leia-me

se requereres um xingamento, eu direi com voz tranquila:
Puta
Se ordenares uma lição do mundo, uma receita mágica, um verso que já nasça canônico:
Darei o verso, a receita e a lição
e tudo será palavras sobre
palavras
e tudo será um castelo de palavras
facilmente destrutível pelo vento
que toma posse do silêncio

Agora,
se me pedires com a tua outra voz
voz embargada, que sobe num tremor pela garganta
e se me perguntares com teus outros olhos

o meu nome (tenho fome!)
que horas são - (por que se fazem?)
ou se chove - (o que cabe nela?)
ou a razão das palavras terem verso e reverso
avesso e casca - (ilusão de tua boca?)

Se me pedires assim,
não importa o que eu diga
que disparate, que bobagem

a palavra que sair,
Inflamará
pois tu estarás me ofecendo
um gole denso de poesia

E se eu ousar, e se eu recusar
e se eu me calar (e - saiba - vou me calar, se vieres a até mim)

Então, será breve fagulha
Corpo-fogo
será
o meu morrer de poesia

sob os teu olhos

29 de julho de 2009

Pequena crônica romântica

pinta, costura, repara
nosso amor de fotografia

jardim dominical
na manhã de glicerina

prende, solta, prende, solta
repara seu cabelo:
a rua nos estuda

Escolhe escolhe
define seu melhor perfil
enquanto desenho os últimos fantasmas para essa noite

Eclipse no céu
vizinhas à janela
jantar na mesa
visitas na sala de partir:

(serras - luzes - burburinho - formigas - uniforme da cozinheira)

Temperatura ambiente
Teu corpo a combinar
com as cortinas vinda da lua

Deslize, desfile, se apresse
São dez horas
hora de tomar o seu corpo
sempre bem morno e com dois torrões de açúcar.

25 de julho de 2009

Não há nada a dizer

"Prazer de amor não dura mais que o instante
Mal de amor dura até o fim dos dias.”
Jean-Pierre Claris de Florian

Ainda hoje encontro com ela na rua. Esforço-me para fingir não vê-la. Nessas ocasiões, uma sensação estranha faz tremer todo o meu corpo, da cabeça aos pés. Meus seios se enrijecem, denunciando meus sentimentos. Essa sensação de medo somado à susto me perturba durante alguns minutos, mas seu ápice dura pouco: assim que passo por ela, o coração volta a bater tranquilo. Sem medo, sem susto. Tais situações são como transar com alguém que a gente não ama. Depois do ápice vem um abatimento, uma tristeza sem explicação. Mas como eu já disse, dura poucos segundos, logo viro uma esquina e ela já se encontra bem longe. Fico pensando se ela me viu e também me evitou, ou se é realmente distraída como parece.
Dizem que todas as pessoas são diferentes, mas nunca dei crédito a essa frase que parece ter sido extraída de um livro de auto-ajuda. Todavia passei a acreditar nessa máxima quando a conheci. Até então, as pessoas à minha volta eram todas iguais: riam e choravam pelos mesmos motivos. Mas ela era diferente. Não tinha medos e era sincera ao extremo. Ela era sensível, e ao mesmo tempo, uma pessoa polêmica que pouco se preocupava com os problemas da humanidade ou questões existencialistas. Às vezes escrevo no passado, como se ela estivesse morta. Mas ela está viva, aliás, numa hora dessas (é meia-noite) deve estar se entregando ao seu marido. Ela sempre me contou, em detalhes, sua relação com o marido, e confesso, sempre tive muita inveja daquela relação tão íntima.
Meu marido se chama Arnaldo. Transamos todas as quintas e sábados. Memorizei isso por que coincide com os dias das minhas aulas de canto. Também ocorre de transarmos nas quartas, mas isso depende de que jogo está sendo transmitido na televisão. Arnaldo é metódico e gosta de simplicidade. Acho que é uma boa forma de dizer que não fazemos nada de excepcional na cama. Sou casada há seis anos e tenho dois filhos. Ela não tem filhos: é estéril. Um dia perguntei a ela se ela desejava adotar uma criança.
── Não vou fazer isso. Não quero que ele seja filho de uma vagabunda qualquer.
Não, ela não é uma prostituta. Ela é bibliotecária. Possuía essa mania de agredir a si mesma. Tinha um gênio muito forte, era astuta e às vezes falava coisas impensáveis para mim:
── Dane-se a reputação! Reputação sempre foi uma puta entre um prefixo e um sufixo, numa suruba patrocinada pela falsidade!
Ou então ela dizia frases soturnas, com um olhar deprimente, e de repente, começava a gargalhar. E por isso eu acho ela tão diferente.
Conheci ela na biblioteca pública onde trabalha. Tudo começou com um comentário sobre um romance qualquer. Levamos a discussão para um café ali perto, e assim iniciamos nossa amizade.
Logo ela era minha melhor amiga. Frequentava minha casa todo final de semana. Eu raramente ia até a sua casa. Acho que ela nunca me motivava a ir até lá, e sempre que eu ia, e via ela e o marido juntos, sentia-me um incômodo para aquela felicidade tão explícita. Mas quando era ela quem vinha visitar-me era diferente. Enquanto Arnaldo ressonava ou assistia televisão, nós duas conversávamos animadoramente sobre diversos assuntos: família, futuro, literatura, brigas com nossos maridos, sexo, moda...etc.
Nossos corpos tinham feitio semelhante, por isso vivíamos trocando vestidos. Um dia ela me disse:
── Nossos corpos se encaixam.
Nesse dia estávamos no banheiro de minha casa, de frente para um grande espelho. Estávamos provando as roupas uma da outra. Como Arnaldo praticamente vivia trancado em nosso quarto, o grande banheiro era ideal para discutirmos relações conjugais, enquanto provávamos roupas. Ela gostava de contar o que o marido fizera nela, na última noite. E não só dizia, como queria mostrar.
── Ele agarrou-me por trás e pegou nos meus seios com extrema delicadeza, coisa que nenhum outro homem sabe fazer - Ela falava pegando nos meus seios cobertos pelos sutiã, tentando reproduzir em mim, as peripécias do marido.
Nunca percebi nenhuma intenção devassa naquilo, tampouco senti qualquer incômodo. O clima era amistoso, éramos simplesmente, duas amigas falando de sexo. Tocar meus seios e nádegas foi o mais longe que essas conversas práticas tomaram. Faziam bem a mim. Ríamos muito durante essas conversas.
Foi na cozinha que tudo aconteceu. Foi ali que minha vida começaria a ficar de pernas para o ar.
Era Domingo de Páscoa. Reunimo-nos nós quatro: ela, eu e os nossos maridos, em minha casa. Meus dois filhos brincavam em algum quarto. Eu cortava cebolas ou tomates, não lembro bem. Arnaldo e Sérgio (o marido dela) conversavam na garagem -parte isolada da casa- onde o churrasco era preparado.
Na cozinha, eu e ela conversávamos sobre as nossas felicidades. Ela dizia estar bem e perguntou como eu me sentia. Respondi com um sorriso incerto:
── Extremamente feliz.
Acho que ela notou que eu mentia. Não sei muito bem. Só sei que ela largou o copo em que tomava vinho e se posicionou atrás de mim. Eu falava da alegria que sentia por estarmos ali reunidos, quando senti o seu hálito quente queimar minha nuca. Estaquei e mal notei o corte que fiz na mão por conta da faca que feriu meu dedo indicador. Não disse nada. Não queria pensar em nada. Apenas estaquei. Suas mãos apoiaram-se em minha cintura e senti que sua mão direita começou a escorregar pelo meu corpo. Abriu o botão dos meus shorts jeans branco e desceu o zíper. Eu agora tremia. Aquilo era loucura, a qualquer momento Sérgio, Arnaldo ou as crianças poderiam surgir por uma das duas entradas da cozinha e nos ver naquela situação. Eu tremi de medo e de susto. Medo e susto. Achei que os bicos dos meus seios iriam perfurar minha blusa. Rangi os dentes e fechei as mãos. Não queria pensar em nada. E ela, austera, fixa em seu objetivo. Então eu saí daquela posição e disse de forma seca:
── Meu dedo está sangrando, com licença.
Fui às pressas para o banheiro. Encostei a porta sem trancar. Não tardou que ela entrasse. Abriu e bateu a porta com força. Não havia aberto a torneira. O dedo ainda sangrava.
Impulsiva, ela não hesitou em agarrar meus pulsos, levar meu dedo ferido à boca e chupar. Logo passou a beijar minha boca de um jeito muito suave, que só uma mulher consegue dar em outra. Nesse momento eu já me encontrava sem meus shorts. Ela era mais forte do que eu. De repente, passaram de suaves à brutais seus carinhos. Pegou-me pelos cabelos e forçou meu rosto contra os ladrilhos da parede. Rasgou minha blusa que era nova, e arrebentou meu sutiã, com um ímpeto brutal que eu julgava ser exclusivo dos homens. Eu arfava e parecia não entender o que acontecia. A verdade é que eu não queria pensar em nada. No fundo, eu queria aquilo. Acho que ela se aproveitou de tudo contei para ela: a monotonia de Arnaldo, o tédio sem-fim que era minha vida. Tirou minha calcinha, sentiu por alguns instantes a maciez de minhas coxas e ordenou que eu me sentasse na privada. Obedeci como uma criança perdida. Sentei-me. Ela, ajoelhada, abriu minhas pernas com força e vasculhou cada canto do meu sexo. Ela, totalmente vestida, não deixou que eu manisfetasse repúdio ou prazer e me recriminou, com mordidas, todas as vezes em que abri minha boca. Rangendo os dentes e mordendo meus próprios lábios, gozei. Medo, susto, prazer, medo, susto: nada, nada. O que era aquele nada que eu sentia? Era bom ou ruim sentí-lo? Não sabia. Não queria pensar em nada. Ela levantou-se sem dizer nada, e saiu do banheiro. Eu fiquei ali muda, vazia. Após alguns minutos meu filho de três anos entrou no banheiro. Só então percebi que a porta permanecera aberta durante todo o tempo. Ele ficou parado. Olhando para sua imprudente mãe nua, descabelada, arfante, suada, sentada na privada. Ele, pobrezinho, não disse nada. Eu também não disse nada. Não havia nada a dizer. Para quebrar o gelo, urinei.
Vinte minutos depois eu saía do banheiro. Corpo lavado na pia, cabelo arrumado. Vestia uma blusa e um shorts que estavam no cesto de roupas sujas.
Na cozinha, encontrei Arnaldo, com a mesma cara de sempre:
── Eles foram embora. A Capitu estava indisposta. O Sérgio pediu desculpas. Sabe o que eu acho? Eu acho que ela está grávida...
Arnaldo idiota. Nem Sérgio o aguentava. Capitu era estéril. Os dois só vinham aqui em casa por causa da amizade entre mim e ela.
Ainda muda, tive a impressão de que nunca mais a veria. A verdade é que ainda hoje encontro com ela na rua, mas desvio o olhar. É estranho como tudo terminou do nada. Às vezes penso que não terminou. Às vezes penso que é como se estivéssemos imersos naquele vazio existencial, que toma posse dos corpos daqueles que amam mas não sabem o porquê. Preciso de um porquê. Um motivo. Uma razão. Algo que preencha o mar de nada que tenho diante dos meus olhos.
Talvez um dia voltemos a conversar. Um dia, talvez. Por enquanto, não há nada a dizer.

24 de julho de 2009

Conheces muito bem, bailarina

Conheces muito bem, bailarina
a tua estrutura.
Teu corpo é carne mole
forma de criança

Não é mulher, não é máquina
não é o que se mostra

és a dor,
a arritmia muscular
a eterna repetição

Ouves muito bem, menina
tuas pernas a chorar e chorar
Ninguém existe quando te movimentas
teu corpo é o mundo
teu corpo é a tração do mundo
é atração do mundo

Desejas muito bem, pequenina
o aplauso indiscreto,
pois nele goza tudo aquilo que acumula na dor.

Dança, menina, dança
Goza, menina, goza

teus passos egoístas são louváveis
tua mentira é deliciosa
bailarina
goze, menina
que eu me contento em olhar

19 de julho de 2009

O navio passou

Passou bem antes da mente delinear o horizonte, o mar
e o restante da paisagem
passou nos ombros das horas
cortando a névoa fria

lâmina quente dançou em minha pele
senti que adormecia
O navio passou
bem antes do apagar do sonho
do aparar das geometrias

Tudo incompleto
Ficaram os restos:
Um gesto abafado
um rosto borrado
um tiro a esmo

O navio passou
Indo e voltando

Passou rápido:
segundos
Passou rápido:
ficou o
estranhamento


Mudo e eterno

A telha ou um homem que acreditava ser livre

Ele fazia o que dava na telha
fazia gata no cio a cantar
fazia mantas de musgo
fazia poça d'água suja
e sujeira seca

Fazia o que dava na telha
Sempre à espera.

Gostava muito
era do orvalho fino
que misturava tudo em sua telha
que sujava seu telhado
o e escorregadio ele deixava

Em sua insônia cantavam as gatas
o sol derramava-se sobre seu medo:
sujeira seca encasacava seu amor
E o orvalho umedecia a tudo isso...

Um dia escorregou na espera
Caiu da telha
Acordou

14 de julho de 2009

Divã

O doutor, cerimoniosamente, indicou o assento para o homem
-- Eu sinto muito
-- Muito? O que você sente em excesso?
Olhou firme para os olhos murchos do doutor. Repetiu.
-- Eu sinto muito
O velho doutor suspirou. Olhou pro teto. Começou a chorar.
O outro abraçou o velho. Parecia uma criança, o velho.
Juntos sentiram.
E muito.

13 de julho de 2009

Fome

falta de abrigo
falta de chuva
falta de assunto

falta de ombro
falta de membro
falta de luz

falta daquilo
(e daquilo também)
falta de tudo

falta de atenção
falta de jeito
falta de comida

falta de nada
falta de sobra
falta de opção

falta de atitude
falta de ar
falta de criatividade

falta daquilo
e disso também
falta de nome

falta de memória
falta de história
falta de falta mesmo

Uma enorme falta do que faltar
Uma falta daquela falta funda, esquecida
que eu tinha quando criança e perdi

Um buraco que abri
Um verso que iniciei:

Uma falta larga, que agora faz eco
Uma falta que agora faz falta

Eu faço a minha própria falta.

12 de julho de 2009

Campanha da palavra (Texto em construção)

os estrangeiros forasteiros gringos gostaram muito da campanha. Pensam em levar para seus países. Aliás, corre o boato fofoca papo de que o Brasil ganhará um prêmio por tal iniciativa. O problema é que não se sabe quem propôs a campanha. O que se sabe é que o povo brasileiro, que na sua maioria é solidário, abraçou a iniciativa. "Doe uma palavra que você não usa para alguém que precisa dela". O Slogan é repetido continuamente nas emissoras de rádio e televisão. Está também em sites blogs orkut fóruns. E não se fala em outra coisa: depois de política, futebol e religião; agora a Campanha da palavra é também tema de acaloradas discussões barzísticas, ou botequistas, ou bodegais...ou seja lá qual for a palavra que faz referência aos bares.
e - como já se esperava - as polêmicas escândalos maracutaias não demoraram a aparecer. Nos programas de fofocas não se fala em outra coisa: Marília de Bragança, conhecida socialyte paulistana, fez a doação de todas as palavras que conhecia para os mais necessitados. Em nota, sua assessoria afirmou que Marília ficou somente com seu sobrenome, Bragança, pois era só do que ela precisava para "marcar sua personalidade". Desde o momento que fez a doação, Marília está sem palavras: não fala nem escreve. Somente gesticula com suas empregadas que agora - dizem - estão felizes da vida. Outro boato que corre voa caminha é de que Marília está desesperadamente arrependida e que em breve viajará para Nova Iorque para consultar-se com os mais afamados doutores. Quando tal boato foi divulgado pela primeira vez, eu estava num bar. Na mesa ao lado, uma velhinha desdentada, que tomava cerveja, levantou-se e gritou para o televisor:

-- Dá um livro pra ela, porra!

Não faltaram aplausos abraços tapinhas nas costas da velha. Porém entretanto todavia, o que a velha não sabia naquele momento era que as palavras doadas não poderiam mais ser reavidas tão facilmente. Não poderiam ser mais utilizadas. Doou, perdeu. Elas poderiam ser devolvidas, mas isso ocorreria por vontade da pessoa que recebeu o donativo esmola presente. E aí que se iniciam os novos escandâ-los...

11 de julho de 2009

Bilhete do poeta

Quero tua presença amanhã
Quero tua presença
Quero teu amanhã
Te quero
Quero
quero-quero
quero-quero

pousarei amanhã;
seja meu chão

8 de julho de 2009

Cavalos amarrados

Nos meus sonhos, Senhora,
surgem cavalos fugindo, amarrados por suas crinas.
Debatem-se,
correm juntos,
correm para lados opostos,
e quase sempre, morrem fatigados.

Nesses dias, acordo e sento-me na cama.
Na rua, o som de passos macios e carinhos felinos.
No silêncio do meu quarto,
uma ânsia no corpo
de dizer-te algo,
de fazer-te algo,
me enerva.
Uma vontade de explicar o que é essa ardência
que me consome quando sonho.
Uma vontade que não tem nome. Ignoro-o.
Por isso, quando você me pede algo romântico, eu sou econômico: "Eu te amo"
E quando me pergunta se sonhei com você, eu sou falso: "Sonhei. Havia uma parque. Fazia sol. Dançáva-mos num campo aberto."

Mentira. Ardente mentira
Na verdade estamos sempre presos, debatendo-se.
Irritados, suados: cavalos amarrados.

5 de julho de 2009

Pedro

Com a marreta o derrubou.
Horas de muro, agora em restos.
São minutos, Pedro?

Sentado numa pedra, a marreta jogada.
O rosto cansado, a garrafa aberta

O suor
corrente
A água
ardente

Tudo misturado num gole eterno de 2 segundos.

O menino e o universo

Toda noite
ela o chama
para a o eclipse das luas
escondidas em seu tempestuoso planeta

Resumo de tudo

Dia e noite se comendo.

Hino

Benvisto seja meu país,
nessa hora calma e gelada,
honremos a tradição
suemos o manto sagrado

(REFRÃO)
meu time amado
entre outros eus
és tu, meu Deus
o meu designado.

Elevemos nossos pés ao alto,
nessa hora agitada e quente
abracemo-nos, irmãos, uns aos outros
somos campeães,

meu time amado
entre outros eus
és tu, meu Deus
o meu decorado.

Olhe pra tabela,
veja quem está lá no topo!
--na cruz!
--no mastro!
todos ali
--na luz!
--no claustro!

meu time amado
entre outros eus
és tu, meu Deus
o meu namorado

Um só homem correu
por nós
um time todo morreu
por nós
centenas de desbravadores lutaram
por nós
então, nessa hora ensaiada
nessa hora de ficção e verdade
de sussurro e best-seller,

desatemos,
desatemos os nós.

28 de junho de 2009

Trecho XXXVII (De um livro inexistente)

A noite morre
Vadia.
A noite morre
Vazia
A noite morre
Aos pés do dia.

21 de junho de 2009

Trecho XXXVI (De um livro inexistente)

Entra pela minha janela uma fotografia:
Uma mãe trazendo o filho pela mão. Ela o leva para casa.
A boa mãe fala das responsabilidades.
E o menino - tão menino - está longe.
Pensa: por que precisamos voltar sempre para o mesmo lugar?

Minha janela começa a se fechar;
o sopro do coração ameaça escurecer meu quarto.
Ainda escuto uma limalha:
-- Mãe, por que vivemos?
-- Porque sempre, meu filho, porque sempre.

O sopro aumenta,
um rodamoinho devasta meu coração
A janela se fecha e a noite morre
Cardíaca

20 de junho de 2009

Souvenier

Se eu fosse outrem
eu pegava um trem

E se eu fosse outro
um perdido qualquer que não soubesse que rumo tomar
que meio usar
ah, eu me agarrava em qualquer coisa,
eu tomava um cavalo
uma cachoeira
um rastro de cobra
um pé-de-vento
um pé-de-música
um pé-de-criança
Ah, se eu fosse outro...
Eu tomava o primeiro bonde matinal

e outro e outro e outro
até ficar ébrio de tanta ausência

Mas eu sou isso.
A pontual chegada
A chegada sem mala, saudade ou história.

Mas se eu fosse o próximo,
aquele que não tem nome
aquele que não chama
aquele que é surdo
(aquele que está porvir)
Se eu fosse esse outro
eu pegava um trem

E outro e outro e outro

13 de junho de 2009

Guerra Fria

Amo o que te falta,
esse pão que você não vê,
o choro contido,
a palavra esquecida.

Porque a vida sempre foi uma guerra fria
eu e eu mesmo
eu e eu sempre
a alimentar doentes e feridos.

Amo tua roupa rasgada
(que rasguei - culpei o cio)
Amo teu rosto sujo
(em que cuspi - inventei nojos)
Amo teu amor doentio
(pois construí sua loucura)
Amo teu rosto
(pois é uma cópia barata do meu)

Porque esse jardim que você vê
é um campo.
Um campo de flores de vento em que te concentrei
Um campo no centro da minha guerra
Minha guerra fria
Eu e eu mesmo.
Sou a esquerda e a direita.

O que você vê é virtual.
Um espelho de gelo.
Está frio. Tem fome. As feridas se abrem em mil caminhos profundos.
Fundos e frios.
Ouça a trombeta a ressoar; é o aviso-ninar para os sobreviventes.
É a minha chegada em carro aberto.

Paça-me um beijo, peça-me lã, sopa,
peça-me o amanhã.
A guerra acabou. Jantei com amor e com o tédio.

Aproxime-se,
Eu sou o alimentador de animais.
Sem receio, fite-me.
Eu sou o pai.

7 de junho de 2009

Tonto, tanto

Onde você estava quando o Espaço ficou tonto?
tonto de tanto movimento
tonto de tanta inércia
tanto tanto
tonto tonto
Tonto, tanto.

Mas venha aqui
(aproxime-se!)
O que você fazia quando o Tempo, angustiado, perdeu a memória?
Esqueceu quem era, o que fazia e por que fazia.
Só sabia que precisava correr.
E correu.
Tanto tanto.
Tonto tonto.
Há tanta coisa tonta nesse mundo.

Você não viu! Não, você não viu!
Não viu o Destino, desesperado, pedir mais tempo para pensar.
Oh Deus! Onde você estava?
Eu te procurei durante todo o amanhã.
E corri e galopei e telefonei e uivei
Mas parei. Desisti.
Tonto, tanto.

E eu pedi e gritei e implorei
Onde você estava?
Onde você estava quando a luz foi desfeita?

Deixou-me aqui sozinho.
Tonto, tanto.

As respostas não interessam mais.
Só saiba que eu te procurei durante todo o amanhã.

21 de maio de 2009

Há dois tipos de bons poetas:
os que nos comovem
e os que nos fazem rir

Comoção engraçada,
compaixão de mãe.

Riso triste, vago, melancólico.

17 de maio de 2009

Um trem

Um trem é uma imagem solitária.


vento

deserto



tão perto...


tão longe...

Cortando a cidade,
a noite,
a tela do cinema,

sobre os telhados, os trilhos, os sonhos sem cura
ele passa.
E a paisagem assiste.

Ou é a paisagem dos meus olhos que roda roda roda, enquanto o trem do sonho repousa?

Um trem é uma pergunta.
Sem resposta.

10 de maio de 2009

Alcool

Há uma mesa.
Sobre a mesa, há um copo que transborda borda borda borda.
Tento agarrar-me a uma das bordas.
E a mesa transborda.
O quarto transborda borda borda borda.
E transbordando, me agarro em algo, em qualquer borda.
Mas sinto que me afogo e morro.

morro morro volto volto: afogo afogo.

E quero uma palavra seca.
Borda borda,
a fala transborda
e falo falo
falo falo

e surge no quarto um buraco,
abre-se um ralo,
entram mulheres e homens
e entram luzes e cores e sons

mas o que eu preciso é sede, e nada mais.

Há uma mesa dentro de mim
E uma garrafa. E duas mãos. E uma folha de papel.
E um copo
Que transborda
borda borda borda

Amar

para Daiane

amar é não saber dizer o que é amar.
Pois amar é bem querer,
e amar é fogo que arde sem se ver
mas amar também é guerra
é treva fria
criança correndo
caroço de fruta

amar é sujeito.
amar é também objeto.
amar é direto: certeiro.
E indireto: invisível.
amar é verbo sem trânsito, verbo que para o trânsito.
Amar é verbo que devora todos os nomes, todas as frases.

amar é o mar.
amar é armar-se, amarrar-se, amassar-se.
Amar é amar.

amar é palavra perdida, que não se reconhece:
mil vezes dita,
mil vezes mudada,
mil vezes esquecida.

amar é repetir-se, chegar, fluir, roubar, cantar, nevar, trabalhar, investigar.
E amar é amar.
E amar pode ser amar.
E amar deveria ser amar.
Ai! Se amar fosse, pura e simplesmente, amar!
E um dia, num dia sem horas, num dia sem espaço,
amar será amar.

amar é dizer amar.
amar é dizer cinco vezes amar amar amar amar amar.
amar é não dizer nada, e ainda assim amar.

Amar é falar de amor e ser ridículo.
Pois, amar é não saber o que é amar.

2 de maio de 2009

Romance das pernas

I

Às vezes, à janela de um edifício qualquer
deparo-me com uma situação qualquer:
a de se matar.
Janelas abertas são convites
à reflexões impulsivas
filosofias irracionais
e tantos outros oxímoros.

Defenestrar-se ou não. Eis a questão.
Seria engraçado, se não fosse tão comum.

II

Elas tremem.
Não por medo,
nem dor
(cansaço parece, mas não é)
e também não é um ataque de riso.
Elas vibram.
Não é gozo, nem soluço, nem choro, nem febre.
O que é então que se manifesta nelas?
Todo o mundo lá embaixo...
E eu não pulo! E eu não pulo!
Sinto tudo o que poderia ser sentido nelas.
-- Nelas quem? São as idéias?
Não, meu querido, romance errado...

Elas... elas são as pernas.


(Início de 2008)

20 de abril de 2009

O rio insone

Anoitece
O rio, cravado na paisagem
está imóvel como se dormisse.
E quem passa por ele diz que dorme.

Amanhece.
E lá está o rio cravado na paisagem como um cacto.
E por ser dia
quente
úmido
(vivo!)
dizem que o rio está morto.

Mas ele está vivo. Vivíssimo.
tão vivo quanto a luz do dia.
tão cravado na paisagem como a luz do sol.

O rio insone não dormiu.
Não tem dormido.
Não dorme.
Passa noites em claro; inerte.
Velando
a urbe ciliar
a urbe maxilar
ocular
tentacular
ocular dorsal glútea
sanguínea
sexual
urbe mental.

Urbe,
criança grande e doente:
difícil crer que ela é a filha; a filha que apodrece no leito,
aos cuidados do rio insone, que a vela.

Sim, é a urbe,
a filha-frágil
a sofrer no leito
no leito morto e vivo
do rio insone.

19 de abril de 2009

Eu ontem jantei com o amor e com o tédio

I

MANÁ

Comunhão dos pecados cometidos na sacristia,
o jantar foi servido à hora consagrada.
Havia pão
vinho
frutas
sol
trigo
areia
Havia muito e a mesa estava muito alinhada
Mas nos olhos revoltosos dos convivas
estribilhava o desejo pela chegada do sentido


II

DECORAÇÃO

Sentaram-se muito cerimoniosos
Fitaram-se; emaranharam-se
Ninguém corou. A mesa continuou tateando às cegas.

Anjos e cruzes
quadros de Lorca
e poemas de Picasso


III

ELE

-- Seu nome é Tédio? Não seria Ódio?
-- Isso de ódio é coisa de poeta autor de operetas e folhetins.
-- Então, seu nome é Tédio...
-- Não.
-- ?
-- Hoje é Tédio. Amanhã Ódio. E depois Cansaço. E depois Amor-demais. E Chuva-de-verão. E Missa. E Andorinha. E Estopim.
-- ???
-- Não sou mistério. Pelo contrário: nu. Seu michê à vossa mercê. Sou todos os nomes.
(Ela pensa em soltar um oh! de surpresa, e iniciar uma defesa cristã pela coroa exclusivamente divina.)

Ao invés disso, um oh! de prazer.

Uma sineta vinda de não-sei-pra-quê toca.

Gargalhadas de tenores estilhaçam os quadros da Via Crúcis.


IV

ELA

Ele (sarcástico):
-- Você vem sempre aqui?
Ela (esforçando-se para manter o ar angelical, apesar da saia curtíssima e das coxas intimadoras):
-- Sim. Daqui não saio. O resto é passatempo. Ilusão.

(Ela executa piruetas, esgares e ensaia posições de Vatsyayana.)

Ele aplaude.
Os dois riem. E choram.
Compartilham o pão do ridículo.


V

O PRINCÍPIO

Ela pensa em ouvir algo.
Ele pensa em pensar.
-- O que você disse? Eu achei lindo!
-- Não, nada. Nonada. Foi só o garçom se atrapalhando com a prataria.


VI

O EFEITO DO VINHO

Ela pensa em ouvir algo.
Então fala para ouvir depois.
Ele pensa em pensar.
Pensa em ouvir.
Pensa em falar.
Pensa pensa, e repensante a noite corre.


VII

O MEIO

(Continuo a servir o vinho)

-- Riso choro e grito parecem a mesma coisa?
-- Você esqueceu do gozo.
-- Ah, é vero.
(Ele coloca mais um naco de Aparência em sua boca)


VIII


AS PERNAS ABERTAS (ou A REVELAÇÃO DO INCESTO)

-- Um beijo?
-- Melhor não. Esperemos o garçom se afastar.
Precisamos manter o segredo. E a audiência.
Céus, a audiência!
Ah, se soubessem! O que fariam! O que fariam!
Ah, se soubessem!

(Por trás da porta, ouço barulho de tiro e de queda)


IX


O COCHICHAR POSSESSO (ou O COCHICHAR POSSEXO)

-- Ai, mas se soubessem...
-- Não haveria mais missa.
-- Nem televisão.
-- Nem literatura.
-- Nem A divina comédia.
-- Oh! Mas um motivo para o silêncio!

(o garçom entra sorrateiramente)


X

O QUASE-FIM

(O garçom ao entrar, depara-se com o casal unido, deitados sobre a mesa, inconscientes)

Copos e imaginações quebradas.
Cheiros de vela e família.
Bafos de vinho e serenata.
Restos de carne e poema.
Manchas de utopia e molho.


XI

O FIM ORIGINAL (ou o GARÇOM CANIBAL)

Eu, garçom
Acendi a vela
e com fúria,
comi com a febre de um ignorante, o que havia do amor e do tédio.
Subalterno com coroa de rei,
saciei-me.
Mas nada. Um grande nada.
Olho em volta: leio.
Nada. Só um dicionário embaralhado
e a mesa revirada.
Trabalho para mais trabalho.
Zero.
O gosto é bom, não nego.
Mas sabê-lo dói.

Dói.
Demais.

(As cortinas se fecham. A platéia que ainda resistia, revolta-se insandecida contra tudo)

Tudo!
Todos!
Nada!

(Mais vaias. Bananas. Danem-se. Acabou-se.)


XII

O FINAL ALTERNATIVO (Proposta Alencariana. Escolhida pelo voto popular)


Ele (amoroso):
-- Oh, eu não sou o Tédio. Sou eu! o Ted! Eu: seu complemento!
-- Oh, eu sabia. Eu sabia. As convenções... não é... mentiras necessárias, justas. Trabalhamos pra isso. Justo.

(o garçom figurante mudo-cego-surdo-tuberculoso-analfabeto recolhe a mesa e sai sorrindo de forma cortês)

As cortinas cerraram-se, e as auras da noite, acariciando o riso das flores, cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal.

(Aplausos insandencidos. Entram os vendedores de guloseimas.)

Reticências e Reticências e Reticências



19.04.2009

18 de abril de 2009

Namoro

Ela olhou pra mim.
e seu sorriso veio como uma carta.

Penúltimo poema sobre a morte

A vida é, desde seu início,
Ultimato.
Assim, a morte, grande pedaço da vida, não deveria surpreender.

E a vida é também, desde o início,
Estopim.

Mas a morte,
mesmo na corda bamba,
entre vivas e tiros,
vem sempre,
calma e risonha.

E assim, nos surpreende, a morte.

11 de abril de 2009

Meu retrato na parede

Linda criança, rosto de anjo!
Como eu queria ser você novamente...
Doçura me falta, rudeza eu esbanjo
Enquanto você ri, chora, não mente.

Talvez eu ainda seja você, meu arcanjo
Talvez você não tenha sumido, somente
Saiu para colher flores para o arranjo
Que daremos à nossa mãe, docemente...

Somos o mesmo ser, mas somos irmãos
Peço que retorne; brinquemos juntos!
Desça dessa parede; dá-me tuas mãos!

Peteca, bola, pipa, carrinho-de-mão
Há tantas brincadeiras, tantos assuntos
Que esqueci! Relembre-me! Dá-me tuas mãos!


(Início de 2008)

Velhas novas

Acordou, como sempre fazia, às oito horas da manhã. Calçou os chinelos, lavou o rosto na pia, foi à porta principal buscar o jornal. Na capa do jornal, viu uma foto que lhe remeteu a algum lugar que já estivera. Pensava nisso quando o telefone tocou. Era um colega de trabalho. Hora extra hoje? Não, tudo bem. Contem comigo. Foi à cozinha, preparou um café. Sentou-se. Em que pensava mesmo? Não lembrou. Foi folheando as páginas do jornal, sem se deter em nenhum texto ou imagem. Chegou ao fim dos cadernos, sem ter achado nada de útil. Esportes, cultura, política, economia: nada lhe despertara o interesse, por que nada daquilo era novo. Mataram uma mulher com um furadeira. O papa pediu paz. O povo pediu justiça. Dois homens encapuzados entraram na loja, anunciaram o assalto e pediram que toda a paz e justiça fossem postas em sacolas. O dólar recuou muito nessa última semana, ao contrário da equipe do Flamengo, que desde que o técnico Zezinho assumiu, tem avançado muito na tabela do campeonato. No capítulo da novela de hoje, Irã dará um beijo e fará as pazes com os EUA. Chuva e vento assinaram um cessar-fogo, e darão uma trégua nesse fim-de-semana. O papa pediu trégua. Aconteceu na noite de Domingo: o namorado pediu trégua à namorada, e ante a recusa dela, o jovem matou-a com uma furadeira. O técnico Zezinho disse que isso acontece. Vitórias vêm e vão. Como vento, como a chuva. Como a paz, a justiça ou uma furadeira penetrando a parede. Não perca a folhetim, hoje, às nove horas, logo após a emocionante partida entre Dow Jones e Nasdaq.
De fato, nada de novo no país do carnaval.

9 de abril de 2009

Corações-de-leite

Nosso amor é instantâneo
Ao primeiro despejo de água fervente
Cozinha-se me três minutos e alimenta
uma corja de inamantes

Nosso amor é comida de microondas
Nosso amor é natureba
Não engorda e não faz crescer
Nosso amor é comida congelada

Nosso amor não é integral, não é francês, nem caseiro:
Nosso amor é dormido

Nosso amor não dá água na boca; dá no corpo inteiro.
Nossso amor é desnatado, desidratado, perecível
Nosso amor é assim, como uma guloseima:
Não sabemos do que é feito e sabemos que nos faz mal
Mas não ligamos, somos crianças:
Temos corações-de-leite.


(2007)

O fim de um sonho

Rimas tolas, poesia explicada, poesia domingo-de-missa.
O lirismo que julgava ter, que nem havia nascido.
O médico:
-- Tente fazer um soneto.
-- Tome. Eis o soneto.
-- Argh! Agora...uns versos simples, sem rimas.
-- Tome.
-- Credo! Que é isso? Complete pra mim: batatinha quando nasce...
-- Esparrama pelo chão!

O médico joga longe o estetoscópio e limpa a garganta.
-- E então, doutor?
-- Zero.
-- Não é possível tentar uma paródia bandeiriana?
-- Não. A única coisa a fazer é assistir televisão.


(2007)

Circunlóquios

Todo poema já é ao primeiro verso
um rodeio, um amontoado de adornos
para se expôr uma verdade límpida e vesga
por isso o silêncio é tão respeitado:
na lata
na cara
na faca
no peito



(final de 2007)

28 de março de 2009

O dadaísta

Batom nas paredes
Vasos chineses viram arte cubista
Cortinas de renda, arte abstrata
Na cozinha, uma curiosa instalação:
pegadas de lama no piso branco.

O artista se decompôs em arte nonsense
para expressar sua agonia.
Um grito como o de Münch, silencioso:
um grito que pede atenção.


(Dezembro de 2007)

21 de março de 2009

Encontro ao acaso

Encontro ao acaso
Aos pés do ocaso
Ele declama Cacaso
Ela faz pouco caso
Mesmo assim, ata-se o caso
Após um tempo sofrendo com o descaso
O coração dele pergunta ao vaso:
“Querida planta, será que ela se casa?”
“Eu caso”, dizem ambos ao padre Cássio.

A lua-de-mel para inaugurar a nova casa
É noite tórrida que tudo arrasa
(corpos entrelaçados em tela cubista de Picasso)
Ela diz, “meu corpo é tua casa”
Ele responde com um beijo, um forte amasso
E com uma declaração gostosa, porém casta
E esse baile de amor dura anos ao som de uma canção devassa
Enquanto isso, o acaso, que tudo assiste, se afasta
Vai contar as novidades para o ocaso
Contará que o amor tudo transpassa
Para poder tranquilamente afogar-se num oceano raso.

(2007)

14 de março de 2009

Eterno torpor

---Hã?

Estava deitado. Minha mente, agindo como um velho computador, revelava os detalhes do ambiente aos poucos, sistematicamente. Vi um guarda-roupa à esquerda da cama. Acima de meu corpo, giros e giros silenciosos de um ventilador. Surgiu uma cadeira. Surgiu uma mulher sobre ela. Surgiu um par de olhos fixos em mim, me interrogando com virulência. Eu não distinguia qualquer som: somente rugas dançando, e uma boca em movimentos nervosos de afogado. Essa mulher parecia ser minha esposa.

---Hã? (só conseguia dizer isso.)

Estava confuso. Nada fazia sentido. Mais alguém entrou no meu quarto. Parecia minha filha. Distingui os primeiros sons: dinheiro-fora-água. Quem disse aquelas palavras? Não sabia. Invadiu o ambiente, uma canção de rock. E a mulher ali, contorcendo sua boca, a me fitar. O que queria?

---Hã?
---Você tá bêbado? Drogado? Levante-se!

A confusão aumentava. Ergui meu corpo, e enconstei-me na cabeceira da cama. Acabara de acordar, com certeza. Entretanto, sentia uma sensação de entorpecimento no corpo muito incomum. Como se eu ainda dormisse, mesmo estando acordado. Como se eu ainda estivesse acordando. Lentamente, eu acordava de um grande sono. A canção de rock continuava. A mulher, agora, já estava de pé, movimentando-se de forma preocupada. Olhava pra mim, olhava pra menina, que é lógico, era minha filha. Sim, era ela.
Um cheiro de carne assada se misturou com o som do rock. A mulher, ou melhor, a minha mulher falava muito, mas eu só assimilava algumas palavras. Palavras com um cheiro ruim: hospital-droga-noite-falar-ouvindo, ouvindo, ouvindo...

--- Sim, eu estou te ouvindo - falei.
--- Então me diga: o que eu disse?
--- Hã?

Com rapidez, a mulher se aproximou de mim, e sentou na borda da cama. Senti que ela queria me acariciar ou me bater: um dos dois. Nada fez, e eu fiquei com a dúvida até novas sensações me distraírem. Durante alguns minutos (quantos?) várias imagens, aromas e sons dançaram sobre a minha cabeça. Com as duas (Marina, minha mulher e Duda, minha filha) ao redor da cama, adormeci.

--- Vum-Vum-Vum.

Sou péssimo com onomatopéias. Mas foi isso que ouvi logo que reabri meus olhos. As pás do ventilador giravam, giravam e giravam... e aquele som me pareceu extremamente familiar. E calmo. E tedioso. E eterno.
Não sei quando tempo fiquei ali deitado, até Marina entrar no nosso quarto. Deitou-se a meu lado. Tinha o rosto calmo. Aconchegou-se a mim, sem dizer qualquer palavra. No ambiente, nenhum sinal daquelas estranhas sensações. Sua fala era pausada e compreensível. Suas palavras soavam comuns: não tinham cheiro nem sabor. Palavras, apenas. Minha filha também entrou. Pediu dinheiro. Iria sair.

--- Onde vais? -Perguntei. Fiz isso com uma fala que soou mecânica, como soam as falas dos atores medíocres.
--- Sair. Cair fora. Mas não se preocupe. Só vou tomar água.

Marina sorriu. Duda sorriu e partiu. Eu não fiz nada. Como sempre, não fiz nada.
Marina fixou aqueles seus olhos pequenos em mim e sorriu. Falou em sairmos. Falou em ficarmos. Minha mente, velho computador, não reconhecia aquelas palavras. Eram perfeitas, fáceis de serem assimiladas. O sorriso de Marina era bonito. A música que vinha da sala era boa, agradável. Mas minha mente estranhava. Como se aquela sensação estranha, que me havia atingido há pouco, houvesse retornado. Uma sensação de estranhamento, de recusa ao ambiente que me rodeava. Agora eu entendia perfeitamente tudo o que estava à minha volta. Mas ainda me sentia estranho. Uma estranheza calma, tediosa. Eterna.
Marina ainda sorria, fitando-me. Disse que eu estava distraído, com o pensamento em outro lugar. Quis dizer que estava totalmente em outro lugar. Eu era outro lugar. Como sempre, não disse nada.
Ela, um pouco receosa, talvez me estranhando, enlaçou meu corpo como se eu estivesse querendo fugir. Mas eu estava calmo: Lucidez; Eterno; torpor: Entorpecimento.
Como sempre, não pretendia fugir.
Ainda desconfiada, perguntou-me se eu ainda a amava.
Minha mente, velho computador, pensou e pensou e pensou. O ventilador girava, girava e girava...
Ante o meu silêncio, ela insistiu. E então, amava ou não amava?

--- Hã?

Isso saiu calma e naturalmente. Não havia mais nada a dizer. Comecei, então, a perceber que todo aquele ambiente me gritava algo. A cadeira, a respiração calma de Marina, o barulho do ventilador: tudo me dizia que eu precisava, urgentemente, fugir daquele lugar.

9 de março de 2009

A santa graça de um domingo

Em meio à mansidão pastoril,
um bebê chora, uma senhora chora,
e o mundo parece ter parado.
---Orai!Orai!O salvador logo virá!
E todos dormem na santa paz da missa.
Mas, eis que surge
correndo pelo corredor principal,
uma mulher gritando.
Ensanguentada, roupa rasgada,
os seios à mostra e o corpo em carne viva.
---Onde está Deus? Digam-me!
Então o bebê calou-se,
A senhora sorriu,
começou a chover,
o padre disse rapidamente:
---Ide em paz e que Deus vos acompanhe!
---Graças a Deus, respondeu-se em balidos.
E logo a segunda-feira se fez.

Agora, carros e sapatos tamborilam sobre o ceú negro da cidade.
Enquanto a mulher, aquela mulher invisível,
continua aos pés de Cristo,
no altar,
agora vazio.

7 de março de 2009

Advertência

Aviso a todos os que leem essas palavras,
que não há nada de empolgante aqui.
O que havia de belo você, leitor, não viu:
as aventuras, meus desejos,
meus erros e medos agora são pre-história
pré-poema
pré-parto
pré-fico
pré-estado.
o que disse e o que senti,
tudo isso jaz, a partir de agora,
em cavernas:
meus beijos, meus olhares, meus gritos:
todo o meu passado em pictografia;
rabiscos oníricos de criança.

Leia meu livro. Seja ator, e finja que me conhece ao ler as palavras que desenho,
mas saiba que este aqui não sou eu.
Você, leitor,
é um desconhecido com quem eu, eu-mesmo, esbarrei,
há um segundo atrás,
antes de pegar uma pedra lascada e escrever esse poema.

15 de fevereiro de 2009

O palhaço triste

Meio-dia. Os carros correm no asfalto em brasa. O sinal fecha. Alguns ignoram a luz vermelha, mas a maioria diminui a velocidade até parar. Os pedestres atravessam indiferentes. Os motoristas aguardam indiferentes. Da calçada eu sorrio para uma mulher muito atraente do outro lado da rua. Ela vira o rosto, indiferente. Todos parecem tão centrados em si, indiferentes, que eu me sinto um idiota pensando nos outros. Serei diferente? Não, não sou. Meu rosto é comum, meus pensamentos são comuns, meu trabalho é comum. Diferente, mesmo, é a vida desse palhaço à minha frente. Assim que os carros param, ele entra em ação: com o rosto maquiado, a roupa toda branca e preta, ele brinca com malabares. As peças descrevem no ar algumas piruetas, mas sempre no mesmo ciclo, o que faz os outros pensaram, erradamente, que aquilo não é nada demais. A simplicidade do ciclo faz as pessoas pensarem: "Com prática eu também faço isso". Mas eu garanto: eu não faço, e muitas das pessoas que supõe essa facilidade também não fariam o que ele faz. Sabe por quê? Retornemos ao início desse texto: é meio-dia. Um sol intenso nos obriga a andar cabisbaixos. Os pedestres estão com pressa. Os motoristas também estão com pressa. E o palhaço só tem alguns segundos para conquistar pessoas nitidamente indiferentes, e convencê-las da qualidade de seu trabalho. Não basta prática para ser um palhaço malabarista. É preciso muito mais. A começar por um coração forte, afinal, é difícil sorrir para pessoas que estão loucas para soltar em você todas as amarguras alimentadas até ali. Dar sorrisos por obrigação, coisa muito difícil. Mas esse palhaço que está diante de mim é muito bom. Parece feliz, acredita sinceramente que está feliz. No tempo certo, cronometrado pela mente, ele encerra a pequena apresentação e vai até o respeitável e indiferente público. Os carros mudam a cada apresentação, mais seus sentidos captam sempre as mesmas coisas: Vidros fechados, fumaças de escape, o som de moedinhas insignificantes caindo em sua mão, uma gota de suor descendo pelas suas costas, um “muito obrigado, senhor”, e como resposta, uma arrancada de pneus. Ninguém ri; ninguém aplaude; ninguém fala nada: ou dá uns trocados, ou pede desculpas, ou nem isso, simplesmente ignora completamente esse palhaço preto e branco.
Os carros passam, os pedestres passam. O sinal abre e fecha a toda hora. Novos carros, novas pessoas: no fundo, são sempre as mesmas. E assim como os malabares descrevem sempre o mesmo ciclo, o malabarista também representa sempre a mesma cena, participa do mesmo ciclo. Por mais alegre que seja, o palhaço não consegue esconder a tristeza de sua função. Sorrir, sorrir. Sorrir para olhos indiferentes.
Já é uma hora da tarde. Depois de muitas apresentações, o palhaço triste acumula certa quantia, que não consigo contabilizar daqui, mas sei que não é muito. Ele pára pra descansar na calçada oposta a onde eu me encontro. Está bem suado, mas a maquiagem é bem pesada e resiste. Por um momento, ele volve os olhos para o outro lado da rua e encontra os meus. Ou o palhaço tem os olhos tristes, ou então reflete em seus olhos a tristeza que esse cronista carrega nos seus. Talvez sejamos dois olhares tristes. Talvez. Reparo que ele se encontra no mesmo lugar que aquela bela mulher estava. Ela me ignorou com indiferença. Enquanto nossos olhos se refletem, eu arrisco um sorriso para o palhaço, como fiz para aquela mulher.
Aguardo. Agora ele não está trabalhando, então verei se seu riso é, naturalmente, triste ou alegre.
Vejo que seu rosto se contrai. Ele irá sorrir. Enfim, a revelação. O sinal, até então fechado, abre. Carros altos impedem que eu veja sua resposta. Ônibus e caminhões, carros em alta velocidade. Não diviso o jovem palhaço. O sinal fica amarelo. Os carros se acalmam. E os motoristas, estacam com suas indiferenças amarelas. O palhaço já saiu da calçada. Ágil, já está sobre a faixa de pedestres, brincando com seus malabares. Espero, como uma criança que vai ao circo pela primeira vez, o olhar do palhaço. Nada. Segue em sua loucura, na sua alegria demasiado racional para ser sincera. Palhaço triste e mentiroso. Criança que sou, saio desapontado. Vou caminhado pelas calçadas, com o sol ainda quente sob minha cabeça. Sem olhar pra trás, vou pensando no que teria acontecido durante aquele espaço de tempo. Aquela lacuna entre poucos segundos. O que haveria entre o meu sorriso e o esverdear do semáforo?
Tristeza ou alegria? Minha intuição apontava a tristeza. Mas eu não a vi. Não podia afirmar.
Continuava caminhando, e aos poucos de curiosa criança passei para o adulto desencantado que sou.
--- Não, vou afirmar. Era de felicidade. Tem que ser felicidade, não pode haver palhaço triste.
Dito isso para mim mesmo, parei. Estava diante de outro semáforo. A luz estava vermelha. Atravessei a rua com outros pedestres.
Decidi esquecer o palhaço e juntei-me à massa dos indiferentes.

O arquivo

Diante das mãos eu tenho
(num arquivo de religião, ciência e ferro)
Fotos, documentos, relatórios, amostras.
Que crimes cometeram; que produtos compraram; que doenças adquiriram essas pessoas
para estarem trancadas nessas caixas?
Diante das mãos eu tenho
filas e filas de histórias; de vidas; de desconhecidos,
mas o que eu queria mesmo
eram os motivos , eu queria os atos palpáveis:
as doenças, os crimes,
os flagrantes, os produtos da venda;
os motivos.
Pois o que hoje tenho diante de minhas mãos
é somente a parte descritível, oca e impalpável da humanidade.

9 de fevereiro de 2009

Ausência e presença.

Qual o valor da presença? E o da ausência?
Explico.
Segunda-feira. Na rua temos o familiar barulho produzido por um carro-criança-apito-sirene-grito-espirro-relincho. Eu estou num prédio. Edifício. Centro Comercial. Que seja. O que importa é que estou num elevador de um prédio. Subindo ou descendo? Sei lá! Repito: o que importa é que estou fechado num elevador, protegido da adorável confusão do mundo. Mas não estou sozinho: ao meu lado há uma senhorinha. O elevador às vezes me incomoda. Ele é como a rua, lá fora: pessoas e pessoas que você não conhece, com quem não fala. Mas no elevador a convivência é forçada, por poucos segundos, mas é forçada. Viagens de elevador são rápidas, impossível descobrir alguma característica psicológica da pessoa que está ao seu lado, durante o percurso. O que podemos ver é se a moça é gostosa, ou se o senhor se veste mal, ou se a criança tem o nariz escorrendo. Mas e essa senhora ao meu lado? Como saber quem ela é realmente? Talvez essa curiosidade pareça estranha, eu mesmo não a possuía até aquele dia. Eu aperto o botão de um certo andar. A senhorinha outro. O elevador se movimenta, mas o silêncio que nos envolve parecia estar inerte: não há um único som. Nessa angústia silenciosa, sinto falta dos velhos clichês de elevador:

1- Poderia ter uma mulher super-atraente aqui.
2- O elevador poderia estar lotado, com o povo se apertando.
3- Poderia estar tocando aquelas musiquinhas de elevador (muito tranquilas, e talvez por isso, muito irritantes).
4- Poderíamos trocar comentários metereológicos ("está calor, não? Acho que vai chover...")
5- Alguém poderia soltar um peido. (credo! isso não!)

Não há clichês. O que há é uma senhorinha muito austera, silenciosa, com uma bolsa colorida no ombro esquerdo. O elevador para: um alívio sem razão cai sobre mim. A velhinha vai saindo do elevador, mas antes da porta fechar, me diz:

---Tchau.

E vai. A porta se fecha e eu sigo em minha viagem.
Eu sei o que você está pensando: e daí que uma velha te deu um tchauzinho? Bem, eu fiquei pensando... quando você se despede de alguém, está automaticamente reconhecendo a presença da mesma. E o que é uma presença? Um corpo ao seu lado é sempre uma presença? Talvez, para a velhinha, sim. Ou há algumas características que fazem com que você note a pessoa desconhecida ao seu lado? Penso que quando você se despede de alguém, está fazendo ela existir pra você, mesmo que seja um desconhecido. Onde eu quero chegar? Sei lá, só sei que há tantas e tantas pessoas que cruzam por mim nos elevadores da vida, e que não falam nada. É como se eu não estivesse ali. Não acho que isso é falta de educação. É hábito. Eu mesmo não me despedia das pessoas, até aquele dia em que viajei com a senhorinha da bolsa colorida. Até aquele dia em que eu parei pra pensar no quanto somos distantes e próximos ao mesmo tempo. Problemas, histórias tristes, causos engraçados: Histórias que se encontram a toda hora, que se cruzam, mas que ninguém vê, por que somos silenciosos, temos pressa e a vida é muito curta para engatilhar conversas com desconhecidos.

--- Tchau pra você também.