15 de setembro de 2021

Construção para Darci de Matos

constroem prédios de infinitos andares
só não amam as matas ciliares.
constroem alianças, definem jantares
só não amam as matas ciliares.

circulam na Câmara, encontram-se em pares
só não amam as matas ciliares.
costuram acordos, praticam malabares
só não amam as matas ciliares.

celebram à mesa, garrafas, manjares
(à volta dos rios, secura, pesares)
concebem conflitos, açulam o cão de Ares
(à volta do fogo, jazigos, hectares)
fragilizam códigos, infectam azares

                               & as      águas      livres                                                     os    bichos


                                                                      os    ares

7 de setembro de 2021

"Coliseu Tropical" e os poemas de acordar




Em sua coluna poética para o Jornal do Brasil, Mário Faustino selecionou e observou diversas correntes da poesia brasileira e de outras nações. Ao comentar a poesia social, a partir do panorama norte-americano, falou sobre poetas competentes que "documentam e celebram uma época (...) poetas que 'promovem' a poesia, poetas cujos poemas podem ser lidos, declamados ou cantados". Um comentário tímido, quase a defender do esquecimento¹, no vasto mar das vanguardas, àqueles que se propõe a cantar os dilemas das cidades com viés participativo, buscando mobilizar o leitor-cidadão, sem perder de vista as graças do canto. O poeta social brasileiro remonta a antigas linhagens de nossa poesia, especialmente a satírica, de Gregório, Gonzaga, até os arroubos românticos contra a injustiça social, observada em Castro Alves e outros companheiros de sua geração. Tome-se, por exemplo, esse trecho extraído de Maria Firmina dos Reis, contemporânea de Alves, em poema condoreiro no qual o eu-lírico se dirige a um jovem poeta:

"(...)
Canta, poeta, a liberdade, ─ canta.
Que fora o mundo sem fanal tão grato…
Anjo baixado da celeste altura,
Que espanca as trevas deste mundo ingrato.
Oh! sim, poeta, liberdade, e glória
Toma por timbre, e viverás na história.
Eu não te ordeno, te peço,

Não é querer, é desejo;
São estes meus votos ─ sim.
Nem outra coisa eu almejo.
E que mais posso eu querer?
Ver-te Camões, Dante ou Milton,
Ver-te poeta ─ e morrer."

A defesa insistente pela liberdade dos poetas românticos deve ser lida à luz do contexto escravista, sustentado pelo liberalismo em voga; e aqui  Alfredo Bosi nos lembra que comércio livre, dentro da ideologia reinante no final do século XIX, não significava necessariamente trabalho livre.  Isso posto, a superação do falso paradoxo liberalismo-escravismo e o estudo da evolução dessas ideias até o presente são condições para se ler a poesia que hoje encara os mil faces neoliberais, todas elas nem um pouco encabuladas com a história de manutenção da exploração servil que se arrasta no Brasil, dada sob a forma, hoje ainda!, do trabalho escravo, das (cada vez mais) múltiplas formas de subemprego, da tentativa insistente de afastar mulheres do mercado, bem como perseguição violenta às populações negras e indígenas e o ataque aos movimentos sociais, todos atos que organicamente fazem parte desse mesmo sistema econômico a ser combatido. O poeta social do século XXI, então, está saturado de história, compondo canções de acordar, já que é impossível para este dormir, em um país cuja educação, precarizada e sabotada, faz questão de propagar narrativas colonialistas para manter as máquinas girando. Entre outros atordoantes poemas de "Coliseu Tropical", quinto livro de Viegas Fernandes da Costa, destaca-se este "A MÁQUINA", que sonoramente envolve o leitor em uma armadilha mecânica:

A máquina mói a gente
A gente cansa da máquina.
Mas a máquina, que não tem nervo nem músculo,
que põe a gente minúsculo,
esta não cansa da gente.
E seu ranger de cerrados dentes e azeitadas engrenagens,
e seu torcer persistente,
primeiro põe a gente doente,
depois desistente 
como um velho cuco sem vida.


O ano é 2021 e ainda, outra vez mais, cabe-se fazer uma poesia do prosaico e circunstancial; a despeito de leituras que contestam a possibilidade de se atrelar o discurso poético a qualquer territorialização, impõe-se ao poeta a necessidade de construção de um contradiscurso ao feixe discursivo, via publicidade, artes espetaculares, telejornais, redes sociais, escolas, etc, que moldam as massas ao gosto fascista no Brasil dos anos Bolsonaro (2018-2022?). Para resistir, a memória histórica e a individual convergem nesse livro, frequentemente pelo recurso da crônica e da narrativa, dado o objetivo do autor de relembrar a quem o lê acerca de outras formas de vida e relação com Gaia. Aliás, a palavra "terra" (terra como pertencimento, terra a ser ambientalmente protegida, como territórios imaginários da infância, como objeto da luta de classes, terra como solo) tem seus sentidos vários amplificados nessa obra, não só porque "o campo é nosso coliseu tropical", como o autor comprova a partir de diferentes olhares - sempre meticulosos, ancorado na leitura e anotação - para a história de SC (O nome Desterro aqui ganha força ao invés de Florianópolis) e do BR, mas também pela consciência de que, a despeito da incessante evolução tecnológica, cuja estetização e espetacularização são tão caras ao Estado necropolítico², nunca deixamos de ser barro, em contínuas trocas com a natureza:

VII MIGRAÇÃO

hoje sonhei contigo
estávamos sentados sobre as dunas
pescando o mar
duas baleias descansavam serenas
com seus filhotes
e a brisa nos devolvia os corpos
(...)

Logo, ao invés de celulares, o livro de Viegas contrapõe experiências lúdicas/corporais ("Eu que chutei latas de azeite na rua"[...]): são muitos os caminhadas/encontros (como as visitas do Ornitorrinco) nas imagens desse livro,  assim como as referências à transmissão oral de saberes, ou ainda os bilhetes como pontes de contato, como ocorre em "BILHETES QUE ERNESTO ENVIOU PELOS CORREIOS EM ENVELOPES COM ENDEREÇO DO REMETENTE DESCONHECIDO; os poemas-personagens, aliás, cumprem um papel importante em um livro que frequentemente se mostra referencial/denotativo, desaliviando o efeito cumulativo por meio do aforismo, do humor e da fábula.  Essa intenção circunstancial, transparecida  nas contínuas alusões nos poemas, e guiada por meio das "Explicações desnecessárias", ao final do livro, onde se referenciam alguns pontos de partida, parte deles extraídos do noticiário nacional, mas também outras da observação da natureza, bem como estudo da história e literatura de Santa Catarina, ou ainda extratos da memória, uma das forças motoras desse livro - essa intenção é o contraponto natural ao desejo de fazer da poesia um instrumento de intervenção no real. Esse processo pode ser percebido em diferentes momentos da poesia catarinense, mesmo antes da década de 60, quando o termo poesia social passa a concorrer (por mais discutível que o seja) com outros movimentos poéticos localizados naquele momento, ainda que não tenha contornos precisos quanto à forma. Afinal, não se trata de aderir a alguma moda, mas alçar a palavra à condição de discurso/debate, entendido como ação, algo percebido em parte da poesia significativa do simbolista Cruz e Sousa ou nas poéticas de Trajano Miranda e Ildefonso Juvenal no começo do século XX. A partir dos anos 60, as referências dessa poesia multiplicam-se³ pelo estado, inclusive na Blumenau, cidade natal de Viegas, com a poesia atuante de Lindolf Bell (poeta maior, Bell é uma referência declarada pelo autor de "Coliseu Tropical"), não apenas pelo conteúdo/forma dos textos mas também pelas iniciativas, junto com Alcides Buss, de divulgação da palavra poética - ação, enfim. Dessa forma, um sentimento de urgência/obrigação leva, por vezes, o poeta a abrir mão de outras poéticas, desinteressadas na missão de intervir diretamente no real por meio do registro crítico do que se passa em determinados datas/locais, para tentar acertar/acordar os habitantes desse aqui-e-agora:

"Tem este lugar onde o dia nasce poesia e clichê. Onde o dia nasce promessa. Onde o dia veste um pote de margarina. O diabo é que sempre há, na padaria da esquina em que tomo meu café, um televisor ligado no telejornal."

Chama a atenção o papel central que as leituras da história exercem no livro de Viegas. São frequentes na obra, por exemplo, as alusões a Canudos e Contestado, episódios em geral mal compreendidos pela população brasileira, cuja instrução formal, controlada pelo Estado-algoz, esforçou-se por ocultar ou adulterar a compreensão de duas das maiores tragédias do país. Para Rosa e Trevisan⁴, "discutir a Guerra do Contestado enquanto biopolítica é uma tarefa desafiante, já que não houve uma valorização consequente do acontecimento, porque o sofrimento e as barbáries não foram suficientemente elaborados e transformados em um valor cultural.". É, então, num campo marcado pela alienação histórica, circunscrito em um estado construído sobre violências recobertas por narrativas fantasiosas colonialistas, que Viegas - professor e historiador- joga, sempre buscando mostrar ao leitor quão integrados estão (não se tratam, como pode parecer, de "pontas") fatos históricos de um certo passado e um certo presente, que não pode ser lido de forma anacrônica - a criança morta à praia, como peixe, não está distante, sob uma arbitrária construção histórica, dos homens e mulheres mortos no Congo em nome da expansão colonial, posto que o mesmo sistema econômico as produziu, este mesmo que segue aí lançando celulares cada vez mais leves e mais funcionais:

"Presidente que manda atirar em cidadãos brasileiros é coronel", está escrito na ficção de Donaldo Schüler. O império caboclo de João e Zé Maria, Teodora e Maria Rosa, de Adeotado o flagelo de Deus. Dez mil mortos nas contas dos generais brasileiros que - e pandemia do século vinte nos mostrou - não sabem contar. Dez mil mortos apagados da biografia do Brasil escrita pelas historiadoras Lilia Schwarz e Heloisa Starling. Era o ano de mil novecentos e doze nas terras do Contestado. O dragão de ferro arrebentando a mata e ferindo a terra, o gafanhoto de aço semeando a morte. Pela primeira vez na história botaram gafanhotos de aço para semear a morte no céu. Na conta dos olhos que viram a terra calcinada, nove mil foram as casas queimadas, vinte mil as vidas humanas destruídas pelo Estado nacional.  

E assim, pensando o agora a partir do olhar para o passado, Viegas Fernandes da Costa "prevê" o futuro também, afinal é sabido, por quem ainda guarda algum senso, o esgotamento de recursos que fatalmente marca a continuidade da expansão da doutrina neoliberal pelo país. Esse poema, por exemplo, foi publicado antes do início do alargamento da faixa litoral de Balneário Camboriú e, mesmo não retratando diretamente esse fato, bem que o poderia ser. "Coliseu Tropical" é, pois, um retrato em movimento de um país, com seus estados e cidades tropicais, e um convite ao acordar para a tarefa de se repensar seu destino, partícipes que somos dessa história:

Tudo deságua nesse mar
o sol, os barcos, a lama
Também nossa infâmia
é alimento dos teus peixes
Nossa tristeza diluída nos rios
capilares de tua existência
Nossa insônia, gula, falta 
esparramada em tuas praias
no profundo dos teus abismos
onde brilham coloridas
assustadas aberrações.


¹ Não faltam exemplos de olhares preconceituosos da crítica literária a textos com viés participativo/social; vide, por exemplo, o modo como Antonio Hohlfeldt analisa as obras de Alcides Buss e Carlos Damião em "A literatura catarinense em busca de identidade", associando "madureza" de estilo ao desenvolvimento de outros temas que não o social.

² Para usar termo extraído dos versos do autor, cujos poemas estão repletos de referências da Literatura, História, Filosofia, etc.

³ Muitos nomes devem ser lembrados por algum estudo amplo que mapeie essas poéticas. Alguns ainda pouco lidos e pouco estudados como, por exemplo, Maura Senna Pereira e Ildefonso Juvenal.

 ⁴ROSA, Geraldo Antonio da Rosa; TREVISAN, Amarildo Luiz. BIOPOLÍTICA NA CATÁSTROFE DO CONTESTADO: CONTRIBUIÇÕES PARA REPENSAR A FORMAÇÃO DE PROFESSORES. Disponível em: http://www.anpedsul2016.ufpr.br/portal/wp-content/uploads/2015/11/eixo12_GERALDO-ANTONIO-DA-ROSA-AMARILDO-LUIZ-TREVISAN.pdf