26 de maio de 2023

Na prateleira...

na prateleira, nos poemas que um dia escrevi,
ali não, nos livros, fechados ou abertos, não estou.
ali, na prateleira da cozinha,
aquela mais embaixo,
entre temperos quase vencidos e ingredientes
só usados de vez quando, quando lhe apetece um bolo,
ali, numa sacola plástica dobrada, estou todo dia.
nas mensagens que mandei essa manhã,
nos áudios que mandei essa tarde,
ali não estou.
ali, entrando e saindo de portas,
entre crianças, a desenhar o verbo to be, 
estou - até o sinal.
quando na festa me vê,
mas não me ouve,
nessa festa não estou.
agora que não estou mais, 
quando alguém, goste ou não, 
vocaliza uma linha do meu poema, 
ali, feito voz, volto a estar.
quando alguém lança um bola ao ar, de plástico, couro, borracha,
leve ou pesada, pequena ou grande, e corre atrás dessa bola e a lança outra vez ao ar
e outra e outra, ali estou sempre 
e meus sapatos, não.
porque não estou, não se pintam as pedras.
quando alguém voltar a pintá-las, estaremos.
de surpresa ligo para mim mesmo:
estou e não me respondo, 
me escondo e durmo até tarde. 
se te apareço no sonho, 
saiba, estou com saudade.
quando, depois, bem depois, 
um jovem vai atrás dos antigos, a saber 
quem era aquele tio, aquela mãe, aquela vó, 
daquele rosto e daquele corpo e daquela voz
e recompõe ao mundo uma memória fugaz que não serve pra nada,
ali, na imagem inédita do passado, eu faço morada.


13 de maio de 2023

eros cura a depressão?

as várias mensagens por

responder e as fotos

por curtir dizem: não


hoje não, Hades,

voltes mais tarde

que não saio de casa:

a pia está cheia,

o drive está cheio,

pendurado no varal

meu par de asas.


eros cura a depressão?

o trabalho que dá abrir-se

em poemas, sessões de terapia,

conversas, esquemas, receituários,

o afeto sempre a mordiscar

o esmilinguido salário,

o leitor sempre com

um conselho ligeiro à mão,

não não não não!

tem horas que eros 

é um baita cuzão

e o depressivo faz

o papel de otário.


por que se demora na tristeza,

ele não vai trocar o disco?

por que ignora a face psicossocial

de sua enfermidade

para enfim curá-la,

ela não tem essa vontade?

por que insistem em ladainhas

pirão ralo d'água 

solidão e farinha,

por que não vivem

o agora, o hoje, 

por que não dizem: 

não choro, não saboto,   

não reclamo, nem de mim nem de você,

pernas para que te quero, Eros!

hoje só quero meu gato ao meu lado

quem te viu, quem te vê, Psiquê!

online hoje apenas para

skincare e autocuidado,

hein, hein? por quê?


eros cura a depressão?

sim! e não.

quando se encontram na rua

de madrugada 

voam garrafas

e comprimidos

e saem os dois na mão.


no outro dia, de ressaca,

um se levanta atrasado e vai trabalhar,

e outro confere discretamente

o celular, deixa um ou dois likes,

e depois mete o pé.