28 de abril de 2020

Sonhário

cada de um nós aqui
sabe mais do teu rosto
do que você mesmo
mas não se preocupe
com saberes alheios
ocupado que está em
saber um pouco mais
do rosto de cada um 
de nós por sua vez
/////////////////////////////o trabalho dos sonhos se cumpre por toda parte, uma legião de continuistas, camareiras office boys passadores de pano advogados de porta de cadeia editores de vídeo corretores de texto coloristas gandulas e ex amores se reveza assim que se corta a última luz: tarde da noite, passada já a hora do descanso recomendada ao trabalhador assalariado, nabucodonosor liga para daniel: mas não há como contar o sonho, nabu está bloqueado, a central de telemágoas está lotada e não quem nos desvende os símbolos - que fiz eu para daniel? questiona-se nabu, posto que o magoante também se magoa.
/////////////////////////////
amar, sonhar, isso são
coisas para rainhas e zangões
operárias, jovens ou velhas, trabalham;
fora da colônia, (e somente fora dela, conforme resolução ISO 4545)
as rainhas usam um perfume extraído dos sonhos como atração olfativa 
à qual os zangões, por mais maduros e (d)escolados que sejam, não resistem ////// é a ansiedade um sonho sem símbolos - duro e repetido trabalho que não rende qualquer mel - não há qualquer terra prometida que renda leite e mel sem trabalho duro de cativos - não entre os homens ao menos
///// há, porém, um planeta não tão distante de onde criaturas nos observam - reverencia-se o abelhocentrismo e toda espécie pacífica de superorganismo - a humanidade é estudada como praga abelhuda. 

a matemática das abelhas, a engenharia das abelhas, a linguagens sensorial das abelhas.
sylvia plath tinha uma caixa de abelhas no lugar do coração,
pesada demais para se carregar (seu pai a colocou lá um dia e depois sumiu)
o poema o sonho e a memória se amigam na confusão - de minha parte sonho em escrever muitos livros para dispersar xingamentos contra Ted Hughes e todos os homens horríveis mas com um lado delicado que conheço.


20 de abril de 2020

Soneto Desmatado

o fim das árvores é o fim das abelhas:
o homem que corria por trás dos arbustos
nos sonhos agora em nós se espelha
e por isso XXmos cinzas, sem sustos

o fim das abelhas é o fim das árvores
X  ritmo  X   X   X   X   X   do  própolis
mas nem tudo se perderá com os hectares:
insetos virtuais zunirão nas metrópoles;

haverá ainda bancos e herbicidas
mil &uma vilezas empresariais
não mais fé, pinhões, discos de Emicida

haverá ainda X redes sociais
resistirá no pós-pólen alguma vida
meu corpo sob o teu, contudo, nunca X


19 de abril de 2020

Soneto Terrasamba

Tem coisa que não se nega a ninguém:
mão, sorriso e um real para o pagode
é bom saber dizer não, veja bem
mas negar um realzim não se pode

Passam-se anos e planos do Mercado
Passa-se a vida toda na manteiga
Só não passa a vontade de um trocado:
dançá alienado até dizer chega

Veja bem, mano, me dá um real
esqueça a inflação por um minuto
esqueça o grave quadro social

esse axé tem um pedido amoral:
para ser feliz só te peço um puto,
um real pro pagode, aí, namoral







Retrato de Maria E. Ibarrola / Ekphrasis¹


Tinha as mãos atravessadas por cruzes
e jogava o jogo possível² para sua época:
à mão já tão ferida por facas e pedras
quis acrescentar os calos de pintora
Olhos escuros e fundos, a parecer desanimados
era importante manter o lume por dentro
havendo tantos exemplos de mulheres apagadas
por quererem olhar, pintar, trabalhar, estudar, partir sem rumo
Não se sabe se era rica ou pobre, se aprendeu a desenhar sozinha
ou recebia classes, sendo então abastada, ou se aprendeu a desenhar
no convento desenhado em seu único quadro disponível
O que se sabe é que não pintou muito, sua pobreza,
e que gostava de olhar as coisas, daí os olhos bonitos, sua riqueza, e o cabelo
sempre bem amarrado ou o mais curto possível
Não, certamente ela não fez seus estudos nesse convento, embora transpareça
imensa simpatia pelo que pinta: seu interior, cujo pátio está ocupado por outras
três pessoas: um religioso, com um balde no braço e as mãos em posição de semeadura, como quem cuida das plantas e diz: esse convento, de algum modo, ainda vive, apesar de ocupado pelo mato - inclusive heras que descem pelas janelas, abrindo possibilidade de que o convento esteja em um momento de abandono e decadência
mas não desuso: esse padre que semeia anuncia à outra pessoa adulta na tela - uma mulher jovem, sentada na beira da fonte e próxima ao padre, com a cabeça coberta pelas vestes, uma espécie de xale entre cinza e azul modestos - que a vida resiste, desafiadora, como a obra e o olhar de Ibarrola, mesmo feita de tinta invisível - o apagado ainda existe
Há também uma criança, que brinca despreocupadamente na fonte (mais sinais de abandono, quiçá extinção do convento, desafiando a semeadura do velho padre): pode ser filho ou irmão da jovem, embora esta esteja tranquilamente de costas para as traquinagens. pode ser uma criança da vizinha como qualquer outra que gosta, como pintores, de se infiltrar em espaços há tempo desabitados para encher-lhes de vida. O menino colocou o chapéu na beira da fonte e, na ponta dos pés, tenta tocar a água da fonte, que, contrária à estrutura depredada do prédio, parece em pleno funcionamento a julgar pelo jato alegremente para cima: o menino e a fonte, o velho padre e a hera. e há a jovem de rosto encolhido a observar parte da cena, como a jovem Ibarrola encolhida na própria existência de mulher, de mulher artista de cor: mulher, negra, indígena, pobre ou rica, de qualquer forma vivendo a danação na Cidade do México do século XIX. Maria tinha olhos bonitos que mesmo apagados ainda resistem e mãos machucadas atravessadas por cruzes.

¹Para conhecer a tela "Interior de convento na Cidade do México" (1896), único trabalho conhecido de Ibarrola, ver texto de Luana Fontes disponível em: https://www.select.art.br/ainda-e-sempre-contra-a-invisibilidade/ Acesso em 15/04/2020
² "É muito difícil para qualquer um de nós não jogar esse jogo, até porque ele muitas vezes parece ser o único jogo possível. Mas, de fato, isso não é verdade." - PIPER, Adrien. A Tríplice Negação de Artistas Mulheres de Cor. Zazie edições, 2020. Tradução de Larissa Lery. Disponível gratuitamente em: http://www.zazie.com.br/pequena-biblioteca-de-ensaios

12 de abril de 2020

5 limeriques moralistas

Havia uma estranha prostituta em Vacaria
Que nenhum cliente na esquina conseguia
Perguntavam: Cê faz programa?
“Não! Só boto o cliente na cama”
Aquela maternal prostituta de Vacaria

*

Havia um crítico de cozinha em Viçosa
que anunciou de forma escandalosa:
Chega de analisar chucrute,
Gosto não se discute!
E nunca mais resenhou nos jornais de Viçosa

*

Certa vez um jovem chamado Diego
Participou de uma sessão do Descarrego
Lá fez um amigo perneta
Que se disse filho do capeta
O que muito impressionou o jovem Diego

*

Havia uma idosa peculiar em Santa Maria
que repudiava a prática da monogamia
quando via um jovem casal
corria a repudiar o tal:
não fuder geral é uma porcaria!

*
Havia um grupo de jovens tuiteiros em Pelotas
que problematiza cada ação alheia à sua volta
quando um deles morreu sem aviso
puxaram logo uma tag de improviso:
#nãosejarude, avise antes de bater as botas!




11 de abril de 2020

Era no tempo dos animais:
eu me jogava de prédios
para poder elogiar-lhes a forma
naquele tempo ainda podíamos
ir à praia com nossas bicicletas
imaginárias e sonhar que o Capital não existia
não havia oriente ou ocidente
só um sol violento
que nascia e se punha
cada dia em diferentes olhos
agora está tarde ainda que dia
ainda que ardam lá fora os entregadores e motoristas
está tarde, entendamos de uma vez

Alguém, sei lá quem, não te ama
foda-se! que importa isso 
num mundo destruído?

continua necessário fundar
novas formas de fazer a linguagem
o amor o trabalho a revolta
nada de fato mudou - se prefere pensar assim
só baratas e banqueiros brasileiros sairão felizes desse século
e já não temos mais a lanterna de Millôr Fernandes 
de resto, ficará tudo bem.

Era no tempo dos animais:
as lesmolisas touvas roldavam e reviam nos gramilvos



1 de abril de 2020

Diário da Quarentena

Gostamos de contos de fada porque neles os personagens estão todos integralmente ligados por afeto, as pessoas estão próximas, os vendedores de determinado produto não costumam ter concorrentes e se existem, são amigos e poucos
as vilas habitam a terra que sequer sonha que exista um dia algo chamado cidade
quiçá sua explosão muitos e muitos anos depois

Um conto de fadas (qual?) vai entrecruzar a história de Mariana e Antonieta. Acho até que, Antonieta, usando uma terceira pessoa, pode ser a narradora da história, deixando marcas disso nos capítulos em que é personagem narradora da história principal do livro.

Ideia para um personagem I
Sinceramente acho que deverias ler o Auto de Fé de Canetti e todos os outros livros que dele tu tens. Principalmente aquele sobre composição de personagens.

Ideia para um personagem fabular II: um jovem nobre do vilarejo. Seu nome é Anastasia Homero de Bolinhos. No dia em que chegou à vila, escapou de falar a todas as pessoas, inclusive a dona do pensionato que o abrigou; por meio de sinais e acrobacias com os olhos, combinou pagamento e o período de estadia. Não deixou que perguntasse seu nome; interrompia sintaticamente antes que elas pessoas chegassem ao ponto em que revelavam não saber o seu nome. Isso era um completo absurdo para ele, como alguém poderia não saber quem era ele, como alguém poderia desconhecer seu nome completo e, conhecenxobseu nome completo, não o chamasse pelo seu nome todo belo pleno todo? Ai, era muita agonia. [CONTINUAR A HISTORIA ATE QUE SE CHEGA A OUTRO PERIODO DE TEMPO, ALGUMAS DECADAS A FRENTE. AGORA ELE JA INTEGRA A NOBREZA DO VILAREJO NOME VAGO INVENTE UM, E POR ISSO todos hoje o reverenciam, cumprimentando-o respeitosamente, incluindo sempre a menção a seu nome:
-- Boa tarde, senhor Anastasia Homero se Bolinhos
-- Bom dia, nobre Anastasia Homero de Bolinhos!
-- Bons dias, camarada Anastasia Homero de Bolinhos!