A: ontem não sonhei com você
sonhei foi com Canajurê
com praias compostas por outras praias
feito sonhos feitos de outros sonhos mais antigos
no sonho um pescador dizia: essa é a praia do pampo, amigo
Canajurê é outra, logo ali mais um tanto
confundindo a geografia das minhas memórias
já não sei, já não sei bem onde vivemos as histórias
eu e você somos praias distantes,
com suas marés em distintas trajetórias.
eu tentei, eu bem que tentei
e explicar aos outros não sei
por que nosso encontro
acabou em tempestade
o que eu queria e já tantas vezes
te disse era te amar até mais tarde...
por que, por que não conseguimos
semear a liberdade?
B: Você começa a falar e a angústia me invade
o amor que era pra ser leve,
leve feito floco de neve
no fim foi todo lava
que ferve, emerge,
lindo de se ver ao longe
mas que dói, na pele,
de quem se nele se atreve a mergulhar
e me deixa assim,
caminhante sozinho
nas areias de uma praia perdida
a liberdade não foi semeada
porque semear e amar são trabalhos
e o trabalho pra ser livre
não pode beber em certas águas
não pode ser refém da cobrança, do excesso e da mágoa
para o trabalho ser livre ele precisa querer
antes de lucrar, alimentar
antes de render, prover.
A: mas eu alimentei!!! só os deuses sabem
sabe quanta energia eu pus nessa tarefa
nessas 12, 30, 200 tarefas de amar
e eu posso provar, olha aqui,
olha aqui, e olha mais aqui!!
B: eu vi, eu vi, eu bem que te vi
eu te amo, mas não é sobre isso. é sobre não se
render a uma lógica que nos ensinaram
desde sempre: a de querer por cada gesto,
um outro gesto, como se o afeto tivesse roteiro.
roteiro de amar é não saber.
o amor não pode seguir a lógica do dinheiro
o amor não pode ser esse bem durável
de que a gente tem para sempre a posse
o amor não é um pedaço de terra cercado
o amor é toda a terra
ou seu nome é Gaia ou não é amor.
amor... Plantei flor e brotou... a vida está na água, rapaz.
A: Eu juro que entendo,
meu amor por ti é tão grande
que vou aprendendo pelo caminho
enquanto faço as trilhas da sua praia
mas pra mim é tudo muito difícil
esse amor é tão livre às vezes...
sem posse, sem garantia... que parece não ser nada!
B: é que não somos terra para ser posse,
mas posso ser abrigo, posso ser morada.
se a gente cuida, a gente faz uma longa longa longa caminhada
com gosto de pra sempre. o que não podemos é assinar um contrato.
novas regras da física. a contagem do espaço e do tempo precisa ser diferente.
aquele amor que a gente tinha era vidro e se quebrou.
quem sabe um dia ele se recicla
como as ondas reciclam outras ondas
como os sonhos reciclam outros sonhos.
eu amo você, adeus.