29 de junho de 2010

pássaro de pedra

oh, por favor, não me pert'urbe:

não me venha falar de taxas e leis
e prédios, tédios, remédios
ou sobre o futuro da cidade

O futuro, meu caro, está fora do muro
que nada tem que ver com
obras trepadeiras
amarrando a cidade
pru'ma criança ligar os pontos no mapa escolar

oh, por favor, não me venha trazer in-cômodos:
deles já estou repleto.
salas, ginásios, boates, cafeterias:
salas de morrer e esperar, de dançar e ler

Oh, não me venha
Oi, não me venda
Ay, minha senha

Sem essa de apresentar projetos ordinários
como se você não tivesse aprendido
isso tudo na escola do barro:
lesmas formigas e vespas

Ih, o papo é cimento?
Ah, o debate é sobre a cidade?
Hum, é seminário, é editorial?
Oh, não, por favor não me chame

já dobrei tantas esquinas
que fiz da cidade um
origami

27 de junho de 2010

O cavalinho azul

a partir de uma peça de Maria Clara Machado

o menino desenhou na janela de papel
um
céu,
embriagado de anil
que
choveu choveu choveu

tempo,
seco por sonhos
pisado
pelo trote das pessoas
que correm correm correm
nas sete raias
da semana

correm da chuva que escorre
do céu salivando na boca do sonho

do tempo que morre
das coisas que não quebram:
tranças carne lágrimas

e o menino?
onde entra nisso tudo?

O menino está fora do tudo
foi viver a janela
e beber azul
nas asas do cavalo

26 de junho de 2010

Suicídio

O escritor estava com o conto na cabeça há duas semanas.
Frio e sucinto como uma barra de ferro, o conto deslizava na cabeça do escritor.
Passou dias trancado em seu quarto. ele e o conto.
O conto precisava sair, era sua vida!
E nesse misto de trabalho e angústia, madrugadas e cafés consumiam-se.
E o conto se alterando, a mão tremendo, a obra-prima, o sonho primeiro e último.
E o conto sempre apontado, quase saindo, na cabeça.
Um dia, não aguentou mais aquele conto apontado pra cabeça. Atirou-o rapido e livramente no jornal.
Tinha apenas 24 anos, o escritor:
Mil reticências para o pobre!

20 de junho de 2010

no dia em que a cidade acordou atrasada
levantou-se num sobre-assalto, reclamou do tempo lá fora
guinchou pro relógio
buzinou pro vizinho
aos tropeços, calçou-se com botas de cimento
e vestiu um trajeto qualquer,
o primeiro trapo que encontrou a caminho do rio
onde mijou
sem lavar as mãos
enquanto pensava
que desculpa daria a seu terrível prefeito

13 de junho de 2010

você vem ladrilhando as mãos como se fosse uma gata a arranhar as paredes da cozinha que construímos com falsos esforços e muitos reais para que tivéssemos uma casa aconchegante em que os seus pais os vizinhos os filhos da puta dos meus irmãos enfim em que todos esses forasteiros pudessem elogiar a brancura e candura da decoração e toda a verdura das frutas plásticas sobre a mesa em que um dia ou melhor naquele dia nupcial nós trepamos como macacos porque é o que somos desde muito tempo desde os anos pré-históricos em que eu te olhava de esguelha no curso de catequese e tuas pernas eram brancas e gordas e quando penso naquele tempo me sinto pedófilo porque sinto desejo pela criança que você foi segurando o terço todo sábado pela manhã pois à tarde tinha cinema e até hoje sonho com aquele assassino do filme a cortar a cabeça em vários pedaços mas tudo muito bem feito pois o projeto é do arquiteto amigo meu que não é seu pois você sempre disse que ele é um safado e deve ser pois gosto dele tanto quanto chocolate branco como o céu de nossa adolescência na qual bebíamos poesia debaixo da janela em quem agora estou fingindo que olho pra alguem que passa nessa merda de rua colonial em que construímos pois no fundo sei que você vem como uma louca me explicar com galhos braços num florescer premeditadíssimo pois se não somos um casal burguês nem servil o que somos nesses tempos medievais e cibernéticos me diga nesses arranhões de unhas de giz me diga quem somos talvez o clero como nossos pais como meu pai que morreu de arteriosclerose ou você que sempre achei esclerosada por isso me casei com você e por isso construí essa casinha no interior com permissão do grande rei seu pai naquele dia quente dos meus vinte anos e duas mãos suadas a apertar a mão única do seu pai coitado perdeu de diabetes e alguém entrou na contramão na mão inglesa da tua mãe com cara de faxineira indiana nada ver com a caçadora diana que você parece nessas noites mosquiteiras e toscas de diamantina em que fixo os olhos na janela como se pensasse na vida que não é pensável nem táctil como teu coração de pedra que tempera o caldo delicioso que você fez um dia e nunca mais lembrou de pagar a conta da luz pois agora moramos sozinhos como duas crianças que tem uma casa inteira pra fazer arte puxar o gato pelo rabo e que belo rabo tem a vizinha pena que a cara é feia e ela é rezadeira talvez passe como passou com você que antes fazia catequese e sabia de cor e cheiro todas as tabuadas e rezas e capitais dos países do mundo que agora se resume à essa casa apagada no meio de minas e não há uma luz acesa pois esqueci de pagar a conta e o isqueiro está lá no mal criado do seu irmão mudo e deixa lá porque nem vela temos e eu olho pra janela e há tantos mosquitos e não posso me mover pois preciso fingir que nada espero dessa noite em que você vem ladrilhando