31 de março de 2012

peixaria

existem cerca de setenta e sete maneiras de ser apanhada, amor,
e todas elas consistem em abrir a boca

o peixe que comprastes tem olhos vermelhos como um coelho
mas cheira bem
vc não sabe meu bem vc não sabe?
teus olhos naquele álbum
rio de janeiro
vermelhos como coelhos
naquele álbum cheiramos bem

nadam os peixes em cubos de gelo
e nos olham e nos olham e nos apertam
se frescos estamos
não é droga
repare nas escamas, esse é fresco
parece que ainda o vejo no mar
a gente na praia

é um tempo que não volta, se arrasta,
embrulhada em jornal levamos nossa história pra casa

23 de março de 2012

tuas cartas. esses anos tudo. joguei pra cima. fiz sorteio.

11 de março de 2012

e ainda me lembro do dia em que inauguraram o mundo, era sábado e sentados na calçada apontávamos para os cachorros com formas engraçadas, como se nuvens à espera de um nome. carros eram monstros coloridos que nos ignoravam, e naquela noite a lâmpada que acendeu-se no quarto te meteu medo e por muito tempo admiramos aquele relâmpago que nunca se apagava, e tudo era novo, os grilos a primeira e mais importante música

Celacanto, peixe jovem


Celacanto, animal emblemático de nome melodioso. Explica Vânia de Campos no texto de apresentação que celacanto seria um peixe que viveu há 200 milhões de anos, com ossos e um peso semelhante a de um homem adulto. “No início deste século, na década de 20, foram encontrados alguns exemplares vivos deste peixe nas profundezas de algum mar do planeta. Estranho – ele não evoluiu. Apresentava as mesmas características que estão impressas nas enciclopédias”.
Resultado da parceria de Antônio Carlos Floriano e Bento Nascimento, ambos de Itajaí (a história desse livro pode ser conhecida aqui), Celacanto é livro de dois poetas jovens, livro de quem dá um passo a mais e atira ao mundo o que sente. Por mais ousados sejam os versos, aqui e ali despontam a insegurança e o anseio de quem vaga à procura de um lugar no mundo. Diz Floriano:

“(...)
Mesmo que saibamos
inventar palavras,
histórias trágicas
mágica paixão.
Temos o medo que não se acaba.
Somos meninos na escuridão.”

A procura é dupla: enquanto busca seu lugar no mundo, também busca um modo de cantar sua odisséia particular. Assim, bons poemas de Floriano (geralmente os curtos) convivem lado a lado com versos  dispensáveis (Não se chora por pouco/Não se pensa em brigar/Quem tanto lutou pela vida/Outra vida melhor vai achar). Falemos dos bons, dos poemas-pistas que carregam dentro de si o poeta que hoje Antonio Carlos Floriano é. 

“Não procure um sentido completo
uma verdade que exprima
a essência da vida
Você com seu jeito de colar cartazes
Nas paredes desta nossa convivência
na certa está contribuindo
para o complemento da história"

Aqui, a insegurança dá lugar a uma voz experimentada, que se dirige a um interlocutor preocupado com a essência da vida. O poema reflete uma inquietude tipicamente jovem: ser e estar no mundo é participar da História, uma inquietação ainda maior para estes cuja adolescência aconteceu na turbulenta década de 70. Mas não há guerras nem revoluções para tantos rebeldes (e isso leva, às vezes, a jovens que inventam revoluções desesperadas para ter ao que responder). Nem todos entram para a história dos grandes feitos. Cabe então, aos que ficam, manter vivo esse jeito de colar cartazes no cotidiano, nas paredes da nossa convivência.

*****

A outra metade desse peixe, Bento, também compartilha com Floriano certas angústias inerentes à juventude. Mas é menos ideológico e menos melancólico do que o parceiro. Com mais humor e sarcasmo. Pouco apegado à ideia de História, Bento versa sobre dois temas principais: as relações amorosas e a solidão. A solidão de Bento é a solidão natural, inerente, animalesca, de quem não consegue dialogar com as pessoas vazias que o cercam.

"eu sempre fui só
mesmo quando a sala estava cheia
e existiam mais verdades
na fumaça de tantos cigarros
que naquilo que então ouvia"

E mesmo quando canta o amor e a busca amorosa, Bento não deixa de emanar solidão. O amor que não deu certo, o amor que ainda não veio, o amor que ele busca, o amor que ameça se perder: o amor em Bento está sempre em outro lugar.

"Preciso de sua companhia
e às vezes passo a mão no pêlo
de um gato
como se aliviasse essa dor"

//

"Apesar de entender aquele
olhar de soslaio
não me atrevi
e mofei
com a pomba no balaio"

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Bento é todo passional. É difícil falar tanto de amor sem escorregar em versos vazios e essa tarefa se torna quase impossível se o poeta é jovem. Mas um ou outro deslize é compensado por versos fortes e inusitados, que inauguram um jeito de ver a já tão cantada busca amorosa.

"Quando caio dentro de mim
e me ligo que só saí do porto
na sua procura
isso me dói.
Me dói tanto a imaginação adoece
e choro e meu choro acorda os últimos celacantos.
E dentro de minha lágrima marinha
na derradeira
que sinto algo de continuar."

*****

Celacanto é livro de começos, de ensaio. Celacanto, bicho estranho, primitivo, que contraria o esperado e absurda a natureza. Celacanto, bicho sem-lugar, perdido no fundo de algum mar, como estes dois, Bento e Floriano, jovens peixes nas profundezas de Itajaí.

"Quem me dera
prender a tarde pelas asas
e conservá-la
profundamente em éter
ou n'álcool
dentro de um copo.

Guardá-la sempre
e proteger o azul, fundo das antenas cristalizadas.

Olhas de repente
e lá na estante
uma tarde inteira
guardada"

10 de março de 2012

vamos suspeitar desse vaso,
- este que há tempos está sobre a mesa - e crer que ali é o esconderijo das chaves de uma outra casa,
e no meio do sonho vem ele, o que sussurra, ou ela, a dos chinelos ásperos, e sorrateiros colhem a chave para abrir uma terceira noite, longe desta que é tão intacta, cada coisa em seu lugar, o meu braço, a cama, o copo d'água e mesmo o teu cabelo bagunçado parece que sempre esteve à espera desse fio de vento que te derruba para fora da cama.
vamos suspeitar desse vaso,
presente de sua mãe, e entender por que diabos o escolheram para ali guardar a chave. não seria ali entre pétalas e vidro o lugar mais seguro do mundo?  Uma colmeia, um açougue, a letra K da enciclopédia.
talvez a pergunta seja: podemos culpá-los por todos os barulhos pequenos da noite? Tua apneia assustada é o velho e a velha arrastando os chinelos - arriscaria - para dentro de nosso quarto. se coragem eu tivesse de abrir os olhos quando sinto a noite mudar de lado, talvez os visse, e parece que os ouço, casal de gnomos, um velho uma velha, e sinto como ele sussurra, respirando como um cavalo, mas sei que, abertos os olhos, eles não mais estarão, é uma noite que não nos pertence.
e pela manhã trocaremos olhares entre as xícaras, o vaso em estado de espera, as flores a brincar com os pés na água, porque assim elas vivem, uma vida de três ou quatro dias distraídos, sem revolta por não haver onde. e procuraremos rastros inúteis pela casa e combinaremos vigílias que nunca serão feitas, e lado a lado na cama, mais uma vez, já lhe passou pela cabeça o que se esconde dentro desses travesseiros?