6 de junho de 2021

Os muitos mergulhos de "poço certo"

                                                             


    No texto 4# sobre obras da literatura catarinense publicadas nos últimos anos, um mergulho breve em "poço certo", primeiro livro de poemas do historiador e curador Fernando Boppré. Um bom livro começa por um bom título: ambíguo e sonoro, "poço certo" remete o leitor de imediato a uma série de referências e possibilidades interpretativas, desde aquelas ligadas ao senso comum e à cultura de massa, como a ideia de se estar no fundo do poço, que representa o estado degradante de tantas instituições brasileiras neste momento de nossa história, e que também se estende à percepção de muitas pessoas em face das doenças mentais, sobretudo nesses dois anos de pandemia da covid-19, até um diálogo possível com obras e conceitos da tradição filosófica e literária: Poe, Nietzsche, Irmãos Grimm, etc, por se tratar de uma metáfora ligada à profundidade e ao desconhecido e, no caso particular do título de Boppré, acrescida também de uma certa inevitabilidade também, o que acentua a ambiguidade: o destino a um tempo desconhecido e certo de quem nele se aventura. O poço, contudo, por mais fundo e certo, nem sempre é fatal, como se lê em Neruda

Si cada día cae
dentro de cada noche,
hay un pozo
donde la claridad está encerrada.


Hay que sentarse a la orilla
del pozo de la sombra
y pescar luz caída
con paciencia.  


(Pablo Neruda - Últimos Poemas)

    No lançamento da obra, realizado em 2020, promovido pela Caiaponte Edições, a partir de poemas escritos pelo autor anos antes, o autor destacou a história de composição dos poemas, atrelando às leituras possíveis a tematização da experiência com a depressão, e identificando a origem do título no nome de uma localidade situada nos limites de Alfredo Wagner, cidade no interior de SC. A explicação do título ready-made, tomado de empréstimo de uma gruta, naturalmente, não limita a potência desse nome, que aponta para alguns saltos e mergulhos dados no livro: quer seja para dentro de episódios históricos de Santa Catarina, ou para dentro de um quadro, ou para dentro de si mesmo, nos poemas em que o eu-lírico se revela explicitamente. Aliás, esse pode ser um dos percursos a se tomar na leitura desses textos: o confronto entre uma perspectiva íntima e particular da realidade e a análise meticulosa desta, às vezes mais sob uma ótica fisiológica do que racional, como se evidencia na primeira das 4 partes do livro, "Evidência e Extensão". Nesse primeiro quarto, prevalece a descrição e observação de elementos concretos, em diálogo direto com a poética cabralina, assinalado sobretudo no poema "Rock", no qual Homem (barro) e Rocha são confrontados por meio de sintaxe concisa e dura, forjada na escola das facas do poeta pernambucano. Em outros poemas desse segmento, cede o poeta às metáforas como no belo poema "Oceano":


A vasta e única extensão a que chamam
Mar não passa de Pasto afundado em
Sal e Água, corcunda que no Horizonte
se abaixa; desaparece e faz lembrar que
Lá longe se erguerá
E passará a se chamar
Continente

    Os recursos utilizados nessa primeira parte são bem variados, entre eles a composição de haikais com observações entomológicas no par "A infame cigarra"/"Achado", e também textos no qual se sobressai o olhar do historiador de Arte, novamente comprometido com o ready-made/colagem, ao apresentar, em "Pierre Prins', um fragmento em prosa com análise da técnica utilizada pelo pintor (parágrafo 1) e do entrelaçamento do conteúdo e forma, via técnica, e que surpreende o leitor em um novos mergulhos: dentro da luz do quadro/poço e do conceito de Representação. A presença do Eu se afirma explicitamente em outros poemas, como no par "Balneário I - só" e "Balneário II - grupo", às vezes de modo quase abrupto, como em "Gralha", que celebra as falastronas aves que compõem a geografia sulista, ameaçadas pelo desaparecimento das araucárias de nossa paisagem. "Crime  de desejo", "Cracas & Naves" e "Entrada" (em que a forma do poema sustenta, escora da linguagem melódica, o confronto entre as forças do peso e da gravidade) são alguns exemplos de como as mais elaboradas construções desse primeiro segmento (e do livro) afastam-se do discurso subjetivo, ainda que haja ali um olhar e, por vezes, uma fala, nos trechos em que, por meio do aforismo, o eu-lírico historiador/crítico/observador curioso da natureza insinua-se,  contribuindo para a leitura que, até então, então se fazia da realidade sob um ponto de vista objetivo/meramente óptico. Na segunda parte da obra, "Gente", o Eu tem espaço para se multiplicar em autorretratos e também em gestos de aproximação com pessoas próximas, como em "A partida"/"Arquivo", ou desconhecidas/afastadas em "Alto da costa", parceria com Giba Duarte, que impõe uma reflexão sobre algumas consequências desastrosas da modernidade - especificamente, nesse caso, da paisagem catarinense, o que enriquece a experiência de leitura desse livro em nosso estado. Aqui nesse segundo quarto está "Crime de desejo", uma bonita leitura/elogio à obra densa, poço profundo, composta pelo romancista Lúcio Cardoso, que nos remete à superioridade de algumas composições mais impessoais dentro do conjunto de poemas do livro. No caso desse poema, há novamente o exercício da colagem (mas sempre com materiais e estilos diversificados, o que engrandece o saldo final), ao justapor um comentário crítico sobre o autor a um trecho de sua obra. Não é o único poema que recorre com simplicidade e precisão à citação; podemos destacar aqui também a bela metáfora transcrita em "A história é o gesto com que passamos a manteiga no pão" - presente na terceira seção do livro "Vicissitudes"; poemas que remetem o estilo do autor a outro bardo-crítico conhecido pela versatilidade, Sebastião Uchoa Leite, que, entre outros procedimentos intertextuais, copiou e colou obras visuais em seus poemas. 

    No terceiro quarto do livro, repetem-se temas e recursos do anterior, e aqui novamente um Eu que ora se oculta em prol de perspectivas inesperadas, como a viagem por dentro de uma história da filofofia e das religiões em "Era Axial", ora se assume, muitas vezes pelo viés da autoironia, como no interessante texto que fecha o segmento, "A experiência de L-F. Céline", a partir de uma alusão ao gênio controverso. O tom confessional atinge aqui sua plenitude ao se conectar ao último quarto do livro, "Epílogo", que traz apenas uma página contendo dois fragmentos parafraseados da obra de Robert Walser e Walt Whitman, chaves que indicam o sofrimento que acompanhou o autor na construção da obra e da reflexão do artista, experimentada nos três primeiros quartos do livro, sobre a relação tensa entre Subjetividade, Captação/Apreensão da realidade e os caminhos da Representação na criação poética. Podemos ver isso em poemas distribuídos nas 3 partes primeiras em vários textos, como na bela construção visual de "Doze eixos", em novas críticas à realidade social e a um certo (certos?) conceito de História, e também neste a seguir (de "Vicissitudes), em que a narrativa breve humorística simula um salto rápido e profundo no poço certo da Criação, e que por isso bem poderia integrar-se à família dos textos galeanescos em "O Livro dos Abraços":

Carlos Ap

Alguns partes do pouco,

do quase nada.

Carlos Asp é um deles.

Artista, diz, inconformado, 

não ser preciso voltar

ao gênero da Paisagem

na pintura:

"Mas se eu já estou Nela?"

Em seus desenhos ele fala

Do céu, do azul, do mar verde,

Das pedras negras na areia grossa.

Tem vez lembra dos black holes,

Que conhece com a profundidade

De astrólogo, poeta e pecador.