15 de fevereiro de 2009

O palhaço triste

Meio-dia. Os carros correm no asfalto em brasa. O sinal fecha. Alguns ignoram a luz vermelha, mas a maioria diminui a velocidade até parar. Os pedestres atravessam indiferentes. Os motoristas aguardam indiferentes. Da calçada eu sorrio para uma mulher muito atraente do outro lado da rua. Ela vira o rosto, indiferente. Todos parecem tão centrados em si, indiferentes, que eu me sinto um idiota pensando nos outros. Serei diferente? Não, não sou. Meu rosto é comum, meus pensamentos são comuns, meu trabalho é comum. Diferente, mesmo, é a vida desse palhaço à minha frente. Assim que os carros param, ele entra em ação: com o rosto maquiado, a roupa toda branca e preta, ele brinca com malabares. As peças descrevem no ar algumas piruetas, mas sempre no mesmo ciclo, o que faz os outros pensaram, erradamente, que aquilo não é nada demais. A simplicidade do ciclo faz as pessoas pensarem: "Com prática eu também faço isso". Mas eu garanto: eu não faço, e muitas das pessoas que supõe essa facilidade também não fariam o que ele faz. Sabe por quê? Retornemos ao início desse texto: é meio-dia. Um sol intenso nos obriga a andar cabisbaixos. Os pedestres estão com pressa. Os motoristas também estão com pressa. E o palhaço só tem alguns segundos para conquistar pessoas nitidamente indiferentes, e convencê-las da qualidade de seu trabalho. Não basta prática para ser um palhaço malabarista. É preciso muito mais. A começar por um coração forte, afinal, é difícil sorrir para pessoas que estão loucas para soltar em você todas as amarguras alimentadas até ali. Dar sorrisos por obrigação, coisa muito difícil. Mas esse palhaço que está diante de mim é muito bom. Parece feliz, acredita sinceramente que está feliz. No tempo certo, cronometrado pela mente, ele encerra a pequena apresentação e vai até o respeitável e indiferente público. Os carros mudam a cada apresentação, mais seus sentidos captam sempre as mesmas coisas: Vidros fechados, fumaças de escape, o som de moedinhas insignificantes caindo em sua mão, uma gota de suor descendo pelas suas costas, um “muito obrigado, senhor”, e como resposta, uma arrancada de pneus. Ninguém ri; ninguém aplaude; ninguém fala nada: ou dá uns trocados, ou pede desculpas, ou nem isso, simplesmente ignora completamente esse palhaço preto e branco.
Os carros passam, os pedestres passam. O sinal abre e fecha a toda hora. Novos carros, novas pessoas: no fundo, são sempre as mesmas. E assim como os malabares descrevem sempre o mesmo ciclo, o malabarista também representa sempre a mesma cena, participa do mesmo ciclo. Por mais alegre que seja, o palhaço não consegue esconder a tristeza de sua função. Sorrir, sorrir. Sorrir para olhos indiferentes.
Já é uma hora da tarde. Depois de muitas apresentações, o palhaço triste acumula certa quantia, que não consigo contabilizar daqui, mas sei que não é muito. Ele pára pra descansar na calçada oposta a onde eu me encontro. Está bem suado, mas a maquiagem é bem pesada e resiste. Por um momento, ele volve os olhos para o outro lado da rua e encontra os meus. Ou o palhaço tem os olhos tristes, ou então reflete em seus olhos a tristeza que esse cronista carrega nos seus. Talvez sejamos dois olhares tristes. Talvez. Reparo que ele se encontra no mesmo lugar que aquela bela mulher estava. Ela me ignorou com indiferença. Enquanto nossos olhos se refletem, eu arrisco um sorriso para o palhaço, como fiz para aquela mulher.
Aguardo. Agora ele não está trabalhando, então verei se seu riso é, naturalmente, triste ou alegre.
Vejo que seu rosto se contrai. Ele irá sorrir. Enfim, a revelação. O sinal, até então fechado, abre. Carros altos impedem que eu veja sua resposta. Ônibus e caminhões, carros em alta velocidade. Não diviso o jovem palhaço. O sinal fica amarelo. Os carros se acalmam. E os motoristas, estacam com suas indiferenças amarelas. O palhaço já saiu da calçada. Ágil, já está sobre a faixa de pedestres, brincando com seus malabares. Espero, como uma criança que vai ao circo pela primeira vez, o olhar do palhaço. Nada. Segue em sua loucura, na sua alegria demasiado racional para ser sincera. Palhaço triste e mentiroso. Criança que sou, saio desapontado. Vou caminhado pelas calçadas, com o sol ainda quente sob minha cabeça. Sem olhar pra trás, vou pensando no que teria acontecido durante aquele espaço de tempo. Aquela lacuna entre poucos segundos. O que haveria entre o meu sorriso e o esverdear do semáforo?
Tristeza ou alegria? Minha intuição apontava a tristeza. Mas eu não a vi. Não podia afirmar.
Continuava caminhando, e aos poucos de curiosa criança passei para o adulto desencantado que sou.
--- Não, vou afirmar. Era de felicidade. Tem que ser felicidade, não pode haver palhaço triste.
Dito isso para mim mesmo, parei. Estava diante de outro semáforo. A luz estava vermelha. Atravessei a rua com outros pedestres.
Decidi esquecer o palhaço e juntei-me à massa dos indiferentes.

O arquivo

Diante das mãos eu tenho
(num arquivo de religião, ciência e ferro)
Fotos, documentos, relatórios, amostras.
Que crimes cometeram; que produtos compraram; que doenças adquiriram essas pessoas
para estarem trancadas nessas caixas?
Diante das mãos eu tenho
filas e filas de histórias; de vidas; de desconhecidos,
mas o que eu queria mesmo
eram os motivos , eu queria os atos palpáveis:
as doenças, os crimes,
os flagrantes, os produtos da venda;
os motivos.
Pois o que hoje tenho diante de minhas mãos
é somente a parte descritível, oca e impalpável da humanidade.

9 de fevereiro de 2009

Ausência e presença.

Qual o valor da presença? E o da ausência?
Explico.
Segunda-feira. Na rua temos o familiar barulho produzido por um carro-criança-apito-sirene-grito-espirro-relincho. Eu estou num prédio. Edifício. Centro Comercial. Que seja. O que importa é que estou num elevador de um prédio. Subindo ou descendo? Sei lá! Repito: o que importa é que estou fechado num elevador, protegido da adorável confusão do mundo. Mas não estou sozinho: ao meu lado há uma senhorinha. O elevador às vezes me incomoda. Ele é como a rua, lá fora: pessoas e pessoas que você não conhece, com quem não fala. Mas no elevador a convivência é forçada, por poucos segundos, mas é forçada. Viagens de elevador são rápidas, impossível descobrir alguma característica psicológica da pessoa que está ao seu lado, durante o percurso. O que podemos ver é se a moça é gostosa, ou se o senhor se veste mal, ou se a criança tem o nariz escorrendo. Mas e essa senhora ao meu lado? Como saber quem ela é realmente? Talvez essa curiosidade pareça estranha, eu mesmo não a possuía até aquele dia. Eu aperto o botão de um certo andar. A senhorinha outro. O elevador se movimenta, mas o silêncio que nos envolve parecia estar inerte: não há um único som. Nessa angústia silenciosa, sinto falta dos velhos clichês de elevador:

1- Poderia ter uma mulher super-atraente aqui.
2- O elevador poderia estar lotado, com o povo se apertando.
3- Poderia estar tocando aquelas musiquinhas de elevador (muito tranquilas, e talvez por isso, muito irritantes).
4- Poderíamos trocar comentários metereológicos ("está calor, não? Acho que vai chover...")
5- Alguém poderia soltar um peido. (credo! isso não!)

Não há clichês. O que há é uma senhorinha muito austera, silenciosa, com uma bolsa colorida no ombro esquerdo. O elevador para: um alívio sem razão cai sobre mim. A velhinha vai saindo do elevador, mas antes da porta fechar, me diz:

---Tchau.

E vai. A porta se fecha e eu sigo em minha viagem.
Eu sei o que você está pensando: e daí que uma velha te deu um tchauzinho? Bem, eu fiquei pensando... quando você se despede de alguém, está automaticamente reconhecendo a presença da mesma. E o que é uma presença? Um corpo ao seu lado é sempre uma presença? Talvez, para a velhinha, sim. Ou há algumas características que fazem com que você note a pessoa desconhecida ao seu lado? Penso que quando você se despede de alguém, está fazendo ela existir pra você, mesmo que seja um desconhecido. Onde eu quero chegar? Sei lá, só sei que há tantas e tantas pessoas que cruzam por mim nos elevadores da vida, e que não falam nada. É como se eu não estivesse ali. Não acho que isso é falta de educação. É hábito. Eu mesmo não me despedia das pessoas, até aquele dia em que viajei com a senhorinha da bolsa colorida. Até aquele dia em que eu parei pra pensar no quanto somos distantes e próximos ao mesmo tempo. Problemas, histórias tristes, causos engraçados: Histórias que se encontram a toda hora, que se cruzam, mas que ninguém vê, por que somos silenciosos, temos pressa e a vida é muito curta para engatilhar conversas com desconhecidos.

--- Tchau pra você também.