21 de janeiro de 2012

Flaubert, Bierce e Oswald de Andrade: dicionários de ideias e gentes



Em muitas de suas cartas a amigos e a L. Colet, seu principal affair, o francês Gustave Flaubert menciona a ideia de criar um Dicionário de Ideias Feitas, uma enciclopédia que reunisse uma série de clichês apregoados em massa pela sociedade de seu tempo. O Dicionário foi publicado pela primeira vez em 1911, muitos anos após a morte do autor, em 1880. Foi um dos últimos trabalhos a serem concluídos por Flaubert, no entanto sua concepção é anterior a muitas de suas outras obras. A ideia de um dicionário com essa forma é mencionada pela primeira vez na Correspondência* do autor em 1850 (nessa época, por exemplo, a senhorita Bovary ainda não existia).
Em Carta de 17 de Dezembro de 1952, Flaubert apresenta alguns verbetes do futuro dicionário para Louise Colet:

"ARTISTAS: são todos desinteressados.
GALINHA: fêmea do galo
FRANÇA: precisa de mão de ferro para ser governada
(...)
NEGRAS: são mais quentes que as brancas"

Na edição que saiu em Portugal, tem-se esse divertido dístico:

MORENAS: são mais quentes que as loiras (ver loiras)
LOIRAS: são mais quentes que as morenas (ver morenas)
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Aparentemente, Flaubert limita-se a reproduzir chavões recorrentes nas conversas em sociedade. A intenção do dicionário era fazer com que as pessoas se dessem conta do vazio que tais expressões criam ao serem ditas. "Seria preciso que, no livro todo, não houvesse uma palavra de minha autoria, e que uma vez  lido ninguém mais ousasse falar, de medo de dizer naturalmente umas das frases lá encontradas." Mas Flaubert foi além dessa catalogação fria (frieza que é demonstração de grande sarcasmo, obviamente), ampliando alguns verbetes, a ponto de transformá-los em conceitos, incluindo às vezes uma certa opinião (o que contraria a ideia inicial de não incluir nenhuma palavra de autoria sua).
Por exemplo, no verbete ALGODÃO, tem-se: "é sobretudo útil para os ouvidos"

Dessa forma, podemos associar tal obra com outro famoso dicionário, o de Ambrose Bierce que, veja só, também foi publicado (em livro) em 1911, embora a ideia também tenha nascido vários anos antes, com o aparecimento de alguns verbetes em colunas para as quais Bierce escrevia. "O dicionário do diabo" (em inglês saiu como The Cynic's Word Book") é um livro totalmente satírico, com uma proposta diferente do livro de Flaubert. Nesse caso, a intenção única é fazer chacota de costumes, tipos de pessoas, empregos, qualquer coisa. 


Uns exemplos:


ALONE: In bad company
BRUTE: See HUSBAND
HISTORY: An account mostly false, of events mostly unimportant, whice are bought about by rules mostly knaves, and soldiers mostly fools.


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A literatura brasileira também tem o seu dicionário satírico, que é fruto de um dos mais polêmicos autores: Oswald de Andrade. "Dicionário de Bolso", obra do espólio, foi composto provavelmente na década de 30, mas apenas saiu em 1990, com a reedição das obras completas do autor. Nele, toda a mordacidade de Oswald está concentrada em pequenos verbetes nos quais apresenta descrições/definições de inúmeras personagens históricas/ficcionais. Como era de se esperar, sobram trocadilhos e piadas de humor negro.


ADÃO: Primeiro marido de Eva
JOB: Judeu sem dinheiro.
LUTERO: Papão dos papas.
EINSTEN: passa-tempo perdido no espaço-tempo
MARX: Esquina da História


É um dicionário original, que dialoga com aqueles dois (e mais Voltaire e Strindberg, também autores de famosos "dicionários"), mas apresenta características muito particulares, que dão à obra um lugar assegurado entre os mais interessantes dicionários literários. Costumo dizer que o pior e o melhor de Oswald estãonesse livro. Se por um lado, é exemplo da brilhante mordacidade e ironia que Oswald imprimia em suas obras, sempre contestando os costumes de sua época e, mais do que isso, promovendo uma revisitação crítica da história do país e do mundo; de outro, o livro possui algumas partes, alguns verbetes, que envelheceram. E a boa literatura não envelhece. Lógico, a partir do momento que trabalha com personagens e fatos históricos,  o autor corre o risco de ver sua obra envelhecer com rapidez. Ao mesmo tempo que criou verbetes para fíguras bíblicas, grandes estadistas ou famosos escritores, Oswald também destilou verbetes sobre pequenas figuras da sociedade paulistana. Estes verbetes, sim, envelheceram, e se tornam quase ilegíveis aos leitores atuais. Outro problema dessa edição são as críticas aos escritores Mário de Andrade e Guilherme de Almeida. Oswald viveu com ambos relações conflituosas, de amor e ódio. Na época da produção dessas notas, tais relações não andavam muito boas, pois os dois verbetes tem conotação negativa. O leitor não pode, entretanto, esquecer que tais verbetes são reflexos do momento que Oswald vivia então, de forma que eles não podem ser considerados como "palavra final" acerca dos dois amigos. 
Outro problema na obra, que também está ligada à sua data de produção (pelo menos ao momento principal de sua produção, já que, sabe-se, os verbetes foram sendo editados ao longo de alguns anos), são os verbetes pró-Luis Carlos Prestes e pró-Partido Comunista. Nessa época, Oswald militava arduamente no Partido Comunista e isso refletiu-se nas suas obras (especialmente nas peças, como O homem e o Cavalo, ou nos textos saídos no jornal O homem do Povo). Mais tarde, decepcionado, Oswald abandonaria todo esse furor comunista, mas a marca desse tempo ficou impressa em algumas dessas obras. Uma marca envelhecida, diga-se. Suas melhores obras, as que ficaram, são aquelas produzidas quando Oswald estava livre do engajamento político. A verdade é que todos os verbetes estão ligados à situação política de Oswald, pois todos representam seu ódio pela classe burguesa (embora ele tenha sido um burguês, teoricamente, à medida que viveu por muito tempo da herança de terrenos e títulos vindos do pai). No entanto, alguns verbetes são "exageradamente engajados", e O Oswald mordaz e irônico, que é o melhor Oswald, dá lugar a outro falastrão e socialmente engajado:


PROLETÁRIO: É quem aluga diariamente os seus braços para poder comer mal e dormir pior. (...) É quem se revolta afinal e desencadeia no mundo a revolução que o fará coveiro e herdeiro da burguesia.

Eliminados os verbetes passadistas e a politicagem rasa, ainda sobram bastantes verbetes para serem apreciados (embora eu pense que talvez o maior prazer da obra esteja em avaliar sua estrutura, ímpar em nossa literatura, do que curtir os verbetes em si), nesse que é o dicionário do diabo brasileiro:


"CABRAL: O culpado de tudo"
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* A edição que utilizei na citação das cartas de Flaubert foi "Cartas Exemplares", organizada e traduzida por Duda Machado. Editora Imago, 1993

19 de janeiro de 2012

18 de janeiro de 2012

CÉUS, não me aguento mais colando coisas dos outros aqui, ok?

mas isso aqui é fantástico:


“Eu costumo me perguntar o que faz uma história funcionar, e o que faz ela se sustentar como uma história, e tomei como resposta a de que é provavelmente uma ação, algum gesto de um personagem que é diferente de qualquer outro na história, aquele que indica onde o real coração da história está. Ele deveria ser uma ação ou gesto totalmente correto e totalmente inesperado; dentro do personagem e além do personagem; sugerindo o mundo e a eternidade. A ação ou gesto da qual estou falando teria de estar no nível de arrebatamento, ou seja, no nível em que tem a ver com a vida Divina e nossa participação nela. Deveria ser um gesto que transcenda qualquer alegoria evidente que tenha sido planejada ou qualquer moral conveniente que o leitor possa fazer. Seria um gesto que de alguma forma fizesse contato com o mistério.”

Flannery O'Connor em Mystery and Manners: Occasional Prose.


Fonte: foda-se a fonte.

C. S. Lewis fala sobre ser adulto (e ser criança) na medida certa.

preciso aprender a ser mais seletivo. não querer abarcar tudo, ler tudo, guardar tudo.
maaaaaaaaaaaaas, enquanto não aprendo isso, colo aqui dois trechos de um ensaio de C. S. Lewis que achei excepcionais. esse ensaio está ao fim do volume único das crônicas de nárnia (editora martins fontes?)

(via enzo potel)



"Os críticos para quem a palavra adulto é um termo de aplauso, e não um simples adjetivo descritivo, não são nem podem ser adultos. Preocupar-se em ser adulto ou não, admirar o adulto por ser adulto, corar de vergonha diante da insinuação de que se é infantil: esses são sinais característicos da infância e da adolescência. E, na infância e na adolescência, quando moderados, são sintomas saudáveis. É natural que as coisas novas queiram crescer. Porém, quando se mantém na meia-idade ou mesmo na juventude, essa preocupação em "ser adulto" é um sinal inequívoco de retardamento mental. Quando tinha dez anos, eu lia contos de fadas escondido e ficava envergonhado quando me pilhavam. Hoje em dia, com cinquenta anos, leio-os abertamente. Quando me tornei homem, deixei para trás as coisas de menino, inclusive o medo de ser infantil e o desejo de ser muito adulto.

2. A visão moderna, a meu ver, envolve uma falsa concepção do crescimento. Somos acusados de retardamento porque não perdemos um gosto que tínhamos na infância. Mas, na verdade, o retardamento consiste não em recusar-se a perder as coisas antigas, mas sim em não aceitar coisas novas. Hoje gosto de vinho branco alemão, coisa de que tenho certeza de que não gostaria quando criança; mas não deixei de gostar de limonada. Chamo esse processo de crescimento ou desenvolvimento, porque ele me enriqueceu: se antes eu tinha um único prazer, agora tenho dois. Porém, se eu tivesse de perder o gosto por limonada para adquirir o gosto pelo vinho, isso não seria crescimento, mas simples mudança. Hoje em dia, já não gosto somente de contos de fadas, mas também de Tolstoi, Jane Austen e Trollope, e chamo isso de crescimento; se tivesse precisado deixar de lado os contos de fadas para apreciar os romancistas, não diria que cresci, mas que mudei. Uma árvore cresce porque ganha novos anéis; já um trem não cresce quando deixa para trás uma estação e ruma para a seguinte, esbaforido."

15 de janeiro de 2012

Pedro Kilkerry + Augusto de Campos + Cid Campos + Augusto de Campos


Lindeza:


 Adriana Calchantoto e Augusto de Campos interpretam um poema de Pedro Kilkerry
 (poeta esquecido!) 

trecho de uma carta de Flaubert

endereçada ao amigo Alfred Le Poittevin. Carta de Maio de 1945, quando Flaubert contava 23 anos.

"Procuro passar o tempo da maneira menos tediosa, e achei como. Faça como eu: rompa com o exterior, viva como um urso - um urso branco - deixe que tudo se dane, tudo e você junto, mas não sua inteligência. Existe agora um intervalo tão nítido entre o que sou e o resto do mundo, que me espanto às vezes de ouvir dizer as coisas mais naturais e mais simples. A palavra mais banal me deixa às vezes em singular admiração. Há gestos, sons de vozes dos quais não me recupero, e tolices que me dão vertigens. Você já escutou alguma vez atentamente as pessoas falando numa língua estrangeira que você não entendia? Comigo é assim. à força de querer compreender tudo, tudo me faz sonhar. Parece-me no entanto que essa estupefação não é estupidez. O burguês, por exemplo, é para mim qualquer coisa de infinito. Você não pode imaginar o que o apavorante desastre de Monville me causou. Para que uma coisa seja interessante, basta olhá-la durante muito tempo."


tradução de Duda Machado.
"Cartas Exemplares", Editora Imago.


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Morri de paixão.

10 de janeiro de 2012

um poema de e.e.cummings

amo o verso final>


somewhere i have never travelled,gladly beyond
any experience,your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near

your slightest look easily will unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skilfully,mysteriously)her first rose

or if your wish be to close me, i and
my life will shut very beautifully ,suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;

nothing which we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility:whose texture
compels me with the color of its countries,
rendering death and forever with each breathing

(i do not know what it is about you that closes
and opens;only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody,not even the rain,has such small hands
Não me peça isso,
é muito perigoso abrir os braços a essa hora da noite
Há muita gente sozinha lá fora, revirando corações de lata
e não é seguro te dizer o que penso nessa hora
sem ritmo ou água

Se insistir, terá de vasculhar nesse quarto
algum canto que possa chamar de longe,
um ponto do qual possa me olhar com vertigem e dúvida nos olhos
e que haja um vácuo entre nós
onde chovam tâmaras
secas de tanto concebidas

Este quarto sempre foi um mundo 'a parte,
e todas as vezes em que você bateu delicadamente na porta
entrou como um alienígena
um monstro na ponta dos pés
a devorar toda a antítese e todo o pão
até que enfim restassem,
dois corpos dispostos na cama
a ouvir um outro mundo se erguer do outro lado da vidraça
todo som e calor,
um mundo que nasceu agora e,
debochado,
já traz uma historia e uma enciclopédia consigo,

pois não me peça isso,
deixa as tuas historias na porta como se fossem sandálias sujas,

este é um outro quarto,
e sempre só houve ele,
e no futuro,
ao saíres pela porta,
habitarás outro mundo único,
e este hoje não terá nenhum valor na nova terra,
estes braços, um quarto que não se abre enquanto não
atira tua sandália ao deserto faminto

estes braços, tuas mãos, essa vidraça,
elementos provisórios dessa noite
cada vez mais extensa,
mais uma serpente absurda a brotar
dentro da mais noturna das tâmaras
a suspender
esse quarto câmara-clara,
que não se sabe quanto de febre e noite
e chora com braços encruzilhados

entra, deite-se,
e não me peça isso
não vou ler os sonhos das ultimas noites
não porei sal nas tuas chagas,
é muito perigoso abrir os braços nesse momento
essa hora sem ritmo ou água.

8 de janeiro de 2012

4 de janeiro de 2012

uns versos de emily dickinson

The only new I know
Is bulletins all day
From Immortality.

As únicas notícias que tenho
São boletins o dia todo
Da Imortalidade


Mon Dieu. Emily vivia numa região erma (Amherst é o nome da localidade, não sei em que estado, E.U.A). Em suas cartas, refere-se sempre a seu cachorro, a seus passeios pelo campo, a uma castanheira pela qual se apaixonou. E é isso. Vivia reclusa, com poucos contatos. Daí a entrega total a seu novo amigo, o político e escritor Thomas W. Higginson, para quem a poetisa escreve a primeira carta em 16 de Abril de 1862. Manda versos e pede uma avaliação de Thomas, nome reputado na época. Dickinson gostava de seus artigos.
Essa amizade é contada de forma breve em "Algumas Cartas", livro que li com grande prazer. Porque se percebe que dickinson era poeta por inteiro. suas cartas não se dissociam de seus poemas, uma coisa só.
melhor que tentar dizer, é mostrar. o começo de uma.

"Caro Amigo - Uma carta sempre me dá a sensação de imortalidade, porque é a mente sozinha sem o amigo corpóreo"


E é engraçado (não é engraçado) você ler os versos ali acima, fechar o livro e dar de cara com milhões de boletins mortos. A saber: placas de carro, de ônibus, escritos em camisetas, outdoors, etcéteras, e toda essa tralha que infesta os olhos.

Fonte: Algumas Cartas: Cartas de Emily Dickinson a Thomas Wentworth Higginson. Editora Noa Noa, 1983. Tradução de Rosaura Eichenberg.

amei isso

“Agora devo falar um pouco sobre o modo como isso acontece. Eu não quero que você pense que aquela história eu sentei e disse, “Eu vou agora escrever a história de uma Ph.D. com uma perna de pau, usando a perna de pau como um símbolo para um outro tipo de sofrimento.” Eu me pergunto se muitos escritores sabem o que vão fazer quando começam algo. Quando eu comecei a escrever aquela história eu não sabia que haveria uma Ph.D. com uma perna de pau. Eu meramente me encontrei de manhã escrevendo uma descrição de duas mulheres sobre quem eu sabia algo, e antes que eu percebesse, eu equipei uma delas com uma filha com a perna de pau. Com o desenrolar da história eu trouxe o vendedor de Bíblias, mas eu não tinha ideia do que iria fazer com ele. Eu não sabia que ele iria fazer o que fez até dez ou vinte linhas antes que ele o fizesse, mas quando eu descobri que era isso que estava para acontecer, percebi que era inevitável. Essa é uma história que produz um choque para o leitor, e eu acho que uma das razões para isso é que produz também um choque para o escritor.
Agora, além do fato de que a história surgiu dessa forma aparentemente irracional, é que essa história praticamente não teve qualquer parte reescrita. É uma história que estava com total controle sobre sua própria escrita, e talvez você me pergunte como esse controle vem, a partir do momento que não é inteiramente consciente.
Eu acredito que a resposta para isso é o que Maritain chama de “o hábito da arte”. É fato que escrita de ficção é algo em que toda a personalidade toma parte – a consciente tanto quanto a mente inconsciente. Arte é o hábito do artista; e hábitos tem de criar raízes profundas na personalidade. Eles têm de ser cultivados como qualquer outro hábito, dentro de um longo período de tempo, de experiência."

Flannery O´Connor
trecho de Writing Short Stories (Mistery and Manners).


2 de janeiro de 2012

um poema de Jose' luis peixoto

Devagar, 
o tempo transforma tudo em tempo. 
O ódio transforma-se em tempo. 
O amor transforma-se em tempo. 
A dor transforma-se em tempo. 
Os assuntos que julgamos mais 
profundos, mais impossíveis, 
mais permanentes e imutáveis, 
transformam-se devagar em tempo. 
Mas, por si só, o tempo não é nada, 
a idade não é nada, a eternidade não existe.

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José Luís Peixoto e' um poeta e romancista português.

- via enzo potel.