8 de outubro de 2020

Quando

 Mestre não é quem ensina, mas quem, de repente, aprende.

                                                                                 João Guimarães Rosa

Quando é que eu me tornei um professor?

penso, penso, penso e não dizer sei quando. 

Foi quando peguei o diploma nas mãos?

ou foi quando entrei pela primeira vez na frente de uma sala 

com a voz gaguejante e as mãos suando?


Quando estava no fim do meu ensino médio, 

perguntei à minha professora de inglês

se era uma boa ideia me tornar professor

-- Deus te livre, nem pensar, que desgraça, que horror!

  O salário é de fome, fora o estresse, fora a falta de respeito!

Eu entendi o que ela dizia, pois o mesmo alerta meus pais já tinham feito:

que a vida de professor era furada, que bom mesmo era cursar Direito.

Quem sabe tenha sido ali, na contramão de todos, que tudo começou!


No meu primeiro ano de docência, eu era todo ansiedade e impaciência

Queria transformar o mundo, contagiar a todos, formar leitores

Na Secretaria de Educação, uma atendente aborrecida, com cara de sapo

chamava nomes de uma fila infinita, era uma algazarra, e senti um deja vu

Onde será que já vi?

Onde será que já vi algo assim? essa confusão, essas caras de sapo...

Rá, Foi na escola!  Com a bagunça nos recreios e os inspetores brabos, já havia visto isso tudo, tin tin por tin...

Eu não sei se foi nesse dia que tudo começou,

mas foi nesse dia que percebi o quanto em comum 

há entre aluno e professor


O primeiro ano ensinando foi  um misto de alegria e desalento

Fui enviado para uma escola num bairro pobre, afastado do centro

Era muito legal ler para os pequenos da sexta série e sentir toda sua energia

mas era difícil trabalhar a autoridade e ao mesmo tempo inspirar-lhes autonomia

eu me sentia inseguro, e em meio à algazarra pensava: teria errado eu meu futuro?

eram tempos difíceis que exigem de mim maturidade e evolução,

afinal as coisas não funcionariam num passe de magia


Fui aprendendo olhando os outros colegas.

Fui aprendendo errando e corrigindo em busca de algum sucesso

Parece que de algum modo meus alunos, ainda que leigos, me ajudavam nesse processo

Será possível dizer isso: que minha vida de professor

começou bem depois do crachá, do salário, do giz e do apagador?

Será possível dizer que foram os alunos que me formaram professor?


Na escola, como aluno, eu era muito atrapalhado.

Perdia guarda-chuvas, e aí me encharcava, pegava resfriados

Confundia datas, perdia meus lápis, trazia os cadernos todo borrados

Havia dias em que, ao chegar à escola, lembrava da mochila

que havia esquecido na minha própria casa

Como professor, algo semelhante se passa

Confundo datas, perco canetões, sujo meu jaleco de canetinha

E a bolsa que hoje carrego de algum modo lembra a mochila que eu tinha.

Hoje é diferente, claro, porque sou responsável por diferentes aprendizados

Organizo-me na marra, me planejo, me antecipo, mas não tem jeito,

por mais que tenha amadurecido e seja consciente de meus deveres, não sou perfeito

e, de vez em quando, quando já estou instalado na sala de aula

os alunos avisam entre risadas

professor, você entrou na sala errada!


Por mais que eu pense e repense, não sei o exato momento de como tudo começou

Algo me diz que há muitos & muitas dentro do professor que sou.

Entre as lembranças de menino, há as memórias de escola

as brigas, os tombos, os dias de prova e os de jogar bola

Entre as lembranços do adulto, há as memórias dos alunos

os rostos, as brincadeiras, os dias difíceis, as histórias


dos meus antigos professores, não lembro de todes, apenas de alguns

dos meus antigos alunes, não lembro de todes, apenas de alguns

mas parece que carrego algo comigo, algo sem nome e de que preciso cuidar

e eu acho que ensinar é, entre tantas coisas outras, deixar um pouco disso com cada um

ainda que não lembrem de meu nome, como não lembro dos meus antigos mestres

levam um grão, uma história, talvez uma palavra ou gesto no ar

contudo, essa história pertence ao futuro, aos meus alunes, 

e não acho que cabe a mim contar


o que acho, depois de tanto cismar na origem de meu caminho

é que a vida de um educador é uma aula que nunca termina;

ora estamos do lado que aprende, ora estamos do lado que ensina

e mesmo quando se deixa o ofício, e o professor se põe sozinho

vive ainda dentro dele outras e outros

e também o adulto e o menino


4 de outubro de 2020

Téo com T de Tartaruga

de Tamarindo Tangerina Passarinho

Téo com T de Teerã Tocantins Tijuana Tekoa Tarumã

Não tem H, veja bem

É Téo com T de Tico Tico Trinca Ferro Tuiuiú

de Projeto Toninhas e de Tortura Nunca Mais

T de Tainha Tanhota Tilápia 

Parati Sapoti Urutu CáTia França

Tamborim Temporal Tatuagem Thiago Talíria

Téo com T de Tragédia do rio Taquari

Téo com T de Tamo Junto Te amo, meu bem

Dentro do teu nome, Téo,

outros, outras, outrem






1 de outubro de 2020

Tainha Antonieta faz ligação para a Terra

Meu nome é tainha antonieta
Falo aqui do coração do antropoceno
Hoje é o ano 1, sempre é o ano 1

O jornal lembra que há 10 anos Caetano 

Estacionou o carro no Leblon

O Facebook lembra que há 10 anos
Você deu aquele passeio de carro pela praia
Com seu tio embriagado
Meus olhos são costurados e por isso passo as noites
Pensando naquele fudido do henri castelli pescando meros
Me gustam los meros, me gustam los peixes-boi
*Já beijei na bocona de alguns caso haja essa dúvida*
Os peixes grandes tem seus motivos para habitar as profundezas
O mesmo para as baleias serem os mais tristes mamíferos
Ah, e os golfinhos? Pergunta-se o distraído enquanto atualiza sua rede social
Para de ler e mexer nessa tarrafa elétrica ao mesmo tempo seu cu de bagre
Onde o homem não chega vivem os mais sombrios e felizes peixões da terra

Se você gosta de mim...
                                                       ... problema seu!!!

27 de setembro de 2020

Temporada

um telescópio urgente

um telescópio urgente adentra a noite dos meus olhos

já não há mais onde se esconder 

sobre cada uma das pessoas do passado

há um documentário netflix

a senha da minha conta

é a mesma do meu banco:

um nome um lugar uma flor

orides fontela helianto 

a situação do marxismo? deixa eu te contar

a quantas andas o marxismo do meu domingo:

o estômago contra o coração

as mãos ansiosas escondidas atrás da nuca

os pés sob as cobertas

o rosto, imenso, colorido, sorri nas redes sociais

morte declarada a todos os órgãos internos

acomodados, privilegiados,

enquanto pernas e braços estão na rua

dando-se à tapa

cada parte do meu corpo tem a sua luta

alheia a história dos meus dias e enganos

assim como cada animal tem a sua luta

alheia às mil lutas dos homens

precisamos, por exemplo,

falar da situação das teias de aranha

você vai trabalhar, sair com os amigos, jogar, cantar,

ninar filhos, aplainar solos, comprar títulos

e não falar sobre o que se passa no seu banheiro?

os padrões dos azulejos furtados todos das aranhas

seu lençol trançado seu casaco caro

tudo roubado descaradamente das aranhas

tarde da noite você chega bêbado

arrastando cadeiras à procura do chinelo

achei, está aqui, mata mata mata mata

esmaga o inseto do dia depois tira a roupa

e trata de conversar sua espécie sobre a extinção de outra

a senha do meu gozo é: alegria

a senha da minha alegria é a mesma dos dias:

agonia bressane vigilante

um telescópio urgente adentra os bueiros da cidade

a poeira acumulada nos cantos do banheiro

aranhas cabelos os pelos todos do corpo

com as demandas todas de homens e bichos

façamos um canto urgente

para que o refrão nessas canções todas?

o passado está sempre conosco

depositado num banco do qual 

o trabalhador não pode sair

para que o refrão nessas canções todas?

é que transformo em canto

tudo aquilo que eu não sei guardar


17 de maio de 2020

Vila Aparecida

oceanos nos atravessam
não te vejo nem perfumo
sei-te ilha e aceno para o ar
de minha janela em vão

tenho muita fé
e sei brilhar algures um gesto
farol aleatório
possamos ou não
queiramos ou não
só nós podemos fazer

aquele dia em floripa
uma placa/piscina se engraçava à janela
letras coloridas e um telefone
saído de filme norte-
americano, água nenhuma,
 1-800-6740-algo assim
brasileiros que somos
sabemos fontes doutro jeito
jorro e nada, jorro de nada na cara
você lá mais não mora
não mais nos ligamos
mas daquela janela ainda brilham
em miniatura os barracos no morro
a sintaxe segue dura e burra
- a aula de dança fica sempre para
semana que vem

milicianos nos atravessam
não te piscina a vida sequer sofá
penso números que não atendem
sonho feio e mergulho para o ar
de minha ilha em vão



13 de maio de 2020

variação II - Itaú

Era no tempo dos animais:
eu me jogava de prédios
para poder elogiar-lhes a forma
naquele tempo ainda podíamos
ir à praia com nossas bicicletas
imaginárias e sonhar o fim da distância
não havia oriente ou ocidente
só um sol violento
que nascia e se punha
cada dia em diferentes olhos
agora está tarde, mas ainda arde o dia
e, por trás dos prédios, a mesma linha 
do horizonte lembra:
continua necessário fundar
novas formas de fazer
o afeto o trabalho a revolta
nada de fato mudou - se assim prefere
já não temos mais a lanterna de Millôr Fernandes
mas ainda cisma a ferramenta linguagem
peça de todo máquinário 
mãe de todos os dedos, credos e sistemas 
o nosso Que-dá-nome-às-quedas-&-partos da Silva Nhe’eng Dimatekenu 
pela linguagem renascemos e do futuro a vós falamos

28 de abril de 2020

Sonhário

cada de um nós aqui
sabe mais do teu rosto
do que você mesmo
mas não se preocupe
com saberes alheios
ocupado que está em
saber um pouco mais
do rosto de cada um 
de nós por sua vez
/////////////////////////////o trabalho dos sonhos se cumpre por toda parte, uma legião de continuistas, camareiras office boys passadores de pano advogados de porta de cadeia editores de vídeo corretores de texto coloristas gandulas e ex amores se reveza assim que se corta a última luz: tarde da noite, passada já a hora do descanso recomendada ao trabalhador assalariado, nabucodonosor liga para daniel: mas não há como contar o sonho, nabu está bloqueado, a central de telemágoas está lotada e não quem nos desvende os símbolos - que fiz eu para daniel? questiona-se nabu, posto que o magoante também se magoa.
/////////////////////////////
amar, sonhar, isso são
coisas para rainhas e zangões
operárias, jovens ou velhas, trabalham;
fora da colônia, (e somente fora dela, conforme resolução ISO 4545)
as rainhas usam um perfume extraído dos sonhos como atração olfativa 
à qual os zangões, por mais maduros e (d)escolados que sejam, não resistem ////// é a ansiedade um sonho sem símbolos - duro e repetido trabalho que não rende qualquer mel - não há qualquer terra prometida que renda leite e mel sem trabalho duro de cativos - não entre os homens ao menos
///// há, porém, um planeta não tão distante de onde criaturas nos observam - reverencia-se o abelhocentrismo e toda espécie pacífica de superorganismo - a humanidade é estudada como praga abelhuda. 

a matemática das abelhas, a engenharia das abelhas, a linguagens sensorial das abelhas.
sylvia plath tinha uma caixa de abelhas no lugar do coração,
pesada demais para se carregar (seu pai a colocou lá um dia e depois sumiu)
o poema o sonho e a memória se amigam na confusão - de minha parte sonho em escrever muitos livros para dispersar xingamentos contra Ted Hughes e todos os homens horríveis mas com um lado delicado que conheço.


20 de abril de 2020

Soneto Desmatado

o fim das árvores é o fim das abelhas:
o homem que corria por trás dos arbustos
nos sonhos agora em nós se espelha
e por isso XXmos cinzas, sem sustos

o fim das abelhas é o fim das árvores
X  ritmo  X   X   X   X   X   do  própolis
mas nem tudo se perderá com os hectares:
insetos virtuais zunirão nas metrópoles;

haverá ainda bancos e herbicidas
mil &uma vilezas empresariais
não mais fé, pinhões, discos de Emicida

haverá ainda X redes sociais
resistirá no pós-pólen alguma vida
meu corpo sob o teu, contudo, nunca X


19 de abril de 2020

Soneto Terrasamba

Tem coisa que não se nega a ninguém:
mão, sorriso e um real para o pagode
é bom saber dizer não, veja bem
mas negar um realzim não se pode

Passam-se anos e planos do Mercado
Passa-se a vida toda na manteiga
Só não passa a vontade de um trocado:
dançá alienado até dizer chega

Veja bem, mano, me dá um real
esqueça a inflação por um minuto
esqueça o grave quadro social

esse axé tem um pedido amoral:
para ser feliz só te peço um puto,
um real pro pagode, aí, namoral







Retrato de Maria E. Ibarrola / Ekphrasis¹


Tinha as mãos atravessadas por cruzes
e jogava o jogo possível² para sua época:
à mão já tão ferida por facas e pedras
quis acrescentar os calos de pintora
Olhos escuros e fundos, a parecer desanimados
era importante manter o lume por dentro
havendo tantos exemplos de mulheres apagadas
por quererem olhar, pintar, trabalhar, estudar, partir sem rumo
Não se sabe se era rica ou pobre, se aprendeu a desenhar sozinha
ou recebia classes, sendo então abastada, ou se aprendeu a desenhar
no convento desenhado em seu único quadro disponível
O que se sabe é que não pintou muito, sua pobreza,
e que gostava de olhar as coisas, daí os olhos bonitos, sua riqueza, e o cabelo
sempre bem amarrado ou o mais curto possível
Não, certamente ela não fez seus estudos nesse convento, embora transpareça
imensa simpatia pelo que pinta: seu interior, cujo pátio está ocupado por outras
três pessoas: um religioso, com um balde no braço e as mãos em posição de semeadura, como quem cuida das plantas e diz: esse convento, de algum modo, ainda vive, apesar de ocupado pelo mato - inclusive heras que descem pelas janelas, abrindo possibilidade de que o convento esteja em um momento de abandono e decadência
mas não desuso: esse padre que semeia anuncia à outra pessoa adulta na tela - uma mulher jovem, sentada na beira da fonte e próxima ao padre, com a cabeça coberta pelas vestes, uma espécie de xale entre cinza e azul modestos - que a vida resiste, desafiadora, como a obra e o olhar de Ibarrola, mesmo feita de tinta invisível - o apagado ainda existe
Há também uma criança, que brinca despreocupadamente na fonte (mais sinais de abandono, quiçá extinção do convento, desafiando a semeadura do velho padre): pode ser filho ou irmão da jovem, embora esta esteja tranquilamente de costas para as traquinagens. pode ser uma criança da vizinha como qualquer outra que gosta, como pintores, de se infiltrar em espaços há tempo desabitados para encher-lhes de vida. O menino colocou o chapéu na beira da fonte e, na ponta dos pés, tenta tocar a água da fonte, que, contrária à estrutura depredada do prédio, parece em pleno funcionamento a julgar pelo jato alegremente para cima: o menino e a fonte, o velho padre e a hera. e há a jovem de rosto encolhido a observar parte da cena, como a jovem Ibarrola encolhida na própria existência de mulher, de mulher artista de cor: mulher, negra, indígena, pobre ou rica, de qualquer forma vivendo a danação na Cidade do México do século XIX. Maria tinha olhos bonitos que mesmo apagados ainda resistem e mãos machucadas atravessadas por cruzes.

¹Para conhecer a tela "Interior de convento na Cidade do México" (1896), único trabalho conhecido de Ibarrola, ver texto de Luana Fontes disponível em: https://www.select.art.br/ainda-e-sempre-contra-a-invisibilidade/ Acesso em 15/04/2020
² "É muito difícil para qualquer um de nós não jogar esse jogo, até porque ele muitas vezes parece ser o único jogo possível. Mas, de fato, isso não é verdade." - PIPER, Adrien. A Tríplice Negação de Artistas Mulheres de Cor. Zazie edições, 2020. Tradução de Larissa Lery. Disponível gratuitamente em: http://www.zazie.com.br/pequena-biblioteca-de-ensaios

12 de abril de 2020

5 limeriques moralistas

Havia uma estranha prostituta em Vacaria
Que nenhum cliente na esquina conseguia
Perguntavam: Cê faz programa?
“Não! Só boto o cliente na cama”
Aquela maternal prostituta de Vacaria

*

Havia um crítico de cozinha em Viçosa
que anunciou de forma escandalosa:
Chega de analisar chucrute,
Gosto não se discute!
E nunca mais resenhou nos jornais de Viçosa

*

Certa vez um jovem chamado Diego
Participou de uma sessão do Descarrego
Lá fez um amigo perneta
Que se disse filho do capeta
O que muito impressionou o jovem Diego

*

Havia uma idosa peculiar em Santa Maria
que repudiava a prática da monogamia
quando via um jovem casal
corria a repudiar o tal:
não fuder geral é uma porcaria!

*
Havia um grupo de jovens tuiteiros em Pelotas
que problematiza cada ação alheia à sua volta
quando um deles morreu sem aviso
puxaram logo uma tag de improviso:
#nãosejarude, avise antes de bater as botas!




11 de abril de 2020

Era no tempo dos animais:
eu me jogava de prédios
para poder elogiar-lhes a forma
naquele tempo ainda podíamos
ir à praia com nossas bicicletas
imaginárias e sonhar que o Capital não existia
não havia oriente ou ocidente
só um sol violento
que nascia e se punha
cada dia em diferentes olhos
agora está tarde ainda que dia
ainda que ardam lá fora os entregadores e motoristas
está tarde, entendamos de uma vez

Alguém, sei lá quem, não te ama
foda-se! que importa isso 
num mundo destruído?

continua necessário fundar
novas formas de fazer a linguagem
o amor o trabalho a revolta
nada de fato mudou - se prefere pensar assim
só baratas e banqueiros brasileiros sairão felizes desse século
e já não temos mais a lanterna de Millôr Fernandes 
de resto, ficará tudo bem.

Era no tempo dos animais:
as lesmolisas touvas roldavam e reviam nos gramilvos



1 de abril de 2020

Diário da Quarentena

Gostamos de contos de fada porque neles os personagens estão todos integralmente ligados por afeto, as pessoas estão próximas, os vendedores de determinado produto não costumam ter concorrentes e se existem, são amigos e poucos
as vilas habitam a terra que sequer sonha que exista um dia algo chamado cidade
quiçá sua explosão muitos e muitos anos depois

Um conto de fadas (qual?) vai entrecruzar a história de Mariana e Antonieta. Acho até que, Antonieta, usando uma terceira pessoa, pode ser a narradora da história, deixando marcas disso nos capítulos em que é personagem narradora da história principal do livro.

Ideia para um personagem I
Sinceramente acho que deverias ler o Auto de Fé de Canetti e todos os outros livros que dele tu tens. Principalmente aquele sobre composição de personagens.

Ideia para um personagem fabular II: um jovem nobre do vilarejo. Seu nome é Anastasia Homero de Bolinhos. No dia em que chegou à vila, escapou de falar a todas as pessoas, inclusive a dona do pensionato que o abrigou; por meio de sinais e acrobacias com os olhos, combinou pagamento e o período de estadia. Não deixou que perguntasse seu nome; interrompia sintaticamente antes que elas pessoas chegassem ao ponto em que revelavam não saber o seu nome. Isso era um completo absurdo para ele, como alguém poderia não saber quem era ele, como alguém poderia desconhecer seu nome completo e, conhecenxobseu nome completo, não o chamasse pelo seu nome todo belo pleno todo? Ai, era muita agonia. [CONTINUAR A HISTORIA ATE QUE SE CHEGA A OUTRO PERIODO DE TEMPO, ALGUMAS DECADAS A FRENTE. AGORA ELE JA INTEGRA A NOBREZA DO VILAREJO NOME VAGO INVENTE UM, E POR ISSO todos hoje o reverenciam, cumprimentando-o respeitosamente, incluindo sempre a menção a seu nome:
-- Boa tarde, senhor Anastasia Homero se Bolinhos
-- Bom dia, nobre Anastasia Homero de Bolinhos!
-- Bons dias, camarada Anastasia Homero de Bolinhos!

28 de março de 2020

confissões II

meu primo uma vez
caiu de moto fazendo uma curva
numa estrada de terra em Joaçaba
Neil Armstrong já pisou na Lua
mas Armstrong
nunca derrapou de moto e caiu numa valeta
que nem meu primo de Joaçaba
dê-me logo essa folha seca de teu herbário acidental;
tudo já aconteceu para ela, e isso é o seu bonito
o que vem depois do depois chamaremos de mistério;
a lua está gigante especificamente nessa noite
grávida de um eclipse que só pode ser visto
em dois ou três estados norte-americanos e
em dois ou três bares da Zona Sul da cidade
a depender dos equipamentos de que as pessoas dispõem
e também da marca da cerveja que vocês pedirem;
o próprio acaso trata de ser desigual e injusto em quase tudo
porque esperaria eu que algum sistema econômico, qualquer um, assim o seja!
sabe quem mais nasceu em Joaçaba?
Rogério Sganzerla!
na minha cidade só nasce boçal;
que pena nunca poder abraçá-lo
tudo já aconteceu para ele, e isso é o mais fudido;
seus filmes agora são puro mistério;
me lembro ainda dos dias em que marcamos de ver um filme
e ao fim ou durante transamos;
mas ou só lembro do filme
ou só lembra da foda
e isso é o mais comprido:
não obedece a memória à ordem que lhe desejamos impor
olha bem essa folha inesperada que te apareceu no meio de um livro no meio da tarde qualquer
qualquer a tarde, claro
pois o livro é especial:
dentro dessa relíquia achado no sebo
há um João e uma Dora
há um motivo e uma data
para aquilo que, antes do impresso,
vai manuscrito a caneta azul:
meu amor, com amor, para que etc etc te dedico
tudo isso é muito valioso para alguém em algum canto
não faz sentido para nós, mas podemos curtir esse espanto:
ainda há quem seja feliz além do muro que somos
espera um pouco
escuta esse barulho
há um homem pousando na lua dentro de meu dedo mindinho
ora que diabos, logo dentro do dedo mindinho! que disparate
escuta, espera, escuta esse barulho na nossa lua
não sei se de escape de moto ou foguete espacial
parece mais como um carro ou charrete
um caminhão, há um caminhão que passa aqui na nossa rua
é o caminhão que traz o lixo para casa
ou será o que leva?
conheço bem esse cheiro, e isso, dessa tristeza toda, é o único barato:
é o caminhão que traz o lixo passando por dentro do meu quarto

9 de março de 2020

confissões



podes ir, tranquilo
não restou um
único grão de ti comigo
nunca te contive nem
fui contido porque
isso de amor como moeda é heresia
o que se passa é que viajamos muito
roçamo-nos sempre
que foi possível
sem nunca se afanar
pois impossível
sequer pensável;
aquilo que viola omite e fere
não perturba o que se é
matéria que não se monta
remove nem desfragmenta
caminha certeira ao
ponto de ônibus mais próximo
e que vá até mais longe
no caminho as culpas
servem de passatempo
é bom jogar palavras cruzadas
& tudo que é bagunçado
onde se aprende a se equilibrar melhor
na matéria das memórias, toda ela
invenção e lacunas e areia
cada culpa uma árvore suspensa
e cada fruto a esconder uma palavra
que apodrece e emana
essa imensa sensação de que algo
foi aprendido em certo onde e quando;
nada, não fiquei com absolutamente nada
nem acho que levastes alguma coisa
é difícil alhear-se dessa ideia de que o corpo
e o que fizemos dele são feitos da mesma coisa
não são; e sequer o oposto (praias distantes, estrelas que não se reconhecem)!
o que fiz e o que fizemos não têm cheiro, não saem em fotografias
não afundam nem boiam no mar
fique tranquilo e não temas as folhas
e crisálidas e papeis de bala nem vibrações no celular
nada perturba, nada se alterou
há algo que segue, por mais que negue ainda
seu próprio nome, peso e história e só se deixe entrever
por vezes em oração, em confusa memória,
em sonho ou aleatória sensação,
que uma árvore ou palavra
- num dia estressado e vazio -
rememora






imagem: "A conversão de Santo Agostinho", de Fra Angelico.

3 de março de 2020

É difícil amar alguém e voar
ao mesmo tempo
e é por isso que as abelhas
quando copulam
caem por vezes ao chão
de asas amassadas
se esfregam na relva
do jeito que dá

(gentes às vezes se amam
em horas erradas
pois eram as horas
que havia pra se achar)

As abelhas às vezes se ligam
e marcam de se encontrar
não no bar da esquina
preferem a lata de refri
no fundo do saco à beira da praia
onde bêbadas de sacarose
transam com raiva

o abdômen do macho
se explode em seguida
e por isso ninguém
acha absurdo e nem fica triste
ninguém guarda memória
nem chora pensando em dias passados
vai a vida assim feita só dessa matéria
toda mel e morte, amor e antenas




18 de fevereiro de 2020

SONETO BOOMER

no meu tempo era assim: elis, cartola, tom jobim;
mamãe provia tudo, exceto papai no retrato
vivia-se feliz sem rap, funk, todo esse festim
enquanto o pão se cortava sozinho no prato

era tempo de muito mimo e pouco mimimi
divas usavam a voz e não a bunda nua
maysa y nana ninavam meu dormir
enquanto o lixo se levava sozinho à rua

a memória das pessoas e erros é difusa
só lembro com gosto erasmo, cauby, belchior...
se não lembro, não houve... para que escusas?

se me explodi em ódio e agulhas, não lembro
a vida e o rádio apagaram, tanto melhor,
sobraram só privilégios, chacretes, dezembros.

11 de janeiro de 2020

CANAL 2020

Boa noite, Brasil
brada Willian Bonde
para o espanto de sua
colega de bancada
Todo mundo já está
sabendo por suas redes
que o jovem Carlos Eduardo
desapareceu após uma abordagem
policial em um
bar em Jundiaí
informa Willian Bonde
enquanto balança
para cima os braços
com o que resta de
profissional em sua
humana esperança
O jornal não vai pra frente
enquanto ele não voltar pra casa
já vou logo avisando
diz informalmente
Willian Bode enquanto
Raquel Chegamais,
sua colega de bancada,
avisa aos telespectadores:
A novela não vai começar;
a CBF já foi avisada:
talvez a rodada do brasileiro
atrase um bocado
nos estádios o telão
exibe a reportagem ao vivo
e o povo - apreensivo -
lamenta a pausa no jogo e balança as bandeiras do time preferido
enquanto cantam em coro
Onde está
Onde está
Onde está
O torcedor?
Como eu
Como eu
Como nós
Onde está
O garoto?
o canto maior
se atravessa
por outros dois
desordenados
Onde está?
Onde está?
Negro como eu
Negro como não sou
Onde está (por favor!)
Quem o levou?
Ôoooo Oooooô
corta-se a imagem novamente
para o estúdio, onde
Rachel rói as unhas e Bonde
descansa um braço no queixo
Não sairemos daqui enquanto a mãe
desse menino não nos ligar
Alô Polícia Militar
Alô Jundiaí
Alô você aí que
de qualquer canto nos
vê e ouve
Nos importa saber o que houve
mais do que qualquer cena
mais do que qualquer talkshow
Eu não estou com sono, diz Bonde,
Eu não estou!
enquanto puxa por debaixo da bancada
Uma térmica de café
Onde é
Onde é
Onde é
Que Cadu está?
Ao que parece, querido público,
Ainda estamos confirmando
a informação, diz Rachel Chegamais,
Que, para além da busca por Carlos,
Uma menina - sim! - uma menina foi morta
no sofá de casa por uma bala pública
Isso atrasa um pouco mais a programação
Mas vamos que vamos:
perdida é minha vida amorosa
perdida é a lateral direita da seleção
essa bala é autografada pelo governador
pelo prefeito pelo vice prefeito
pelos vereadores eleitores torcedores
por todo Bonde parado
por todas as Chegamais lamuriosas
lamentos não servem pra nada
quer mudar pro canal pago?
muda, então, campeão,
nessa emissora não tem beijo técnico
nem gol de placa
enquanto Carlos Eduardo
não manda um sinal analógico pra casa
Esperem um instante
estamos com o governador na linha,
querido público,
talvez haja novela hoje
se ele começar sua fala
pedindo perdão
e a encerre algemado
antes das 22h
tenhamos fé
eu mesmo estou louco
para saber se vai acontecer
ou não o casamento
de Muriel e Muriçoca
se Muriel vai assumir
os filhos que fez
se Muriçoca vai enfim
pagar a porra da pensão
diz, dando à câmera uma piscadela,
Willian Blonde
Talvez haja jogo hoje
diz Rachel Churumela,
se cair o depósito
aos pais dos meninos do Ninho
até umas 23h quiçá
eu não vejo a hora
disso acontecer
diz ela
enquanto o Brasil afunda-se
um pouco mais no sofá


9 de janeiro de 2020

pesei bem as coisas
o que vivemos
quem somos
dois elefantes
3 caminhões
recheados de
eletrodomésticos
descarregados
pelo próprio
luciano huck
uma jubarte
os quilos todos
que a ansiedade
me trouxe
os dois caminhos opostos
para onde vamos ausentes
e, sim, vale a pena
pagar para ver
o que vai ser da gente

*
um quilo de pena
pesa muito mais
que um quilo de fé
meio quilo de pena
& culpa já serve
para soterrar uma vida
um quilo de pena
pelos quilos de ferro
e resíduos no fundo
do Rio Doce
um quilo de culpa
pelas pessoas que ferro
com meus quilos de erros
desculpas não adiantam
de nada. desculpas são leves
e flutam no ar
como pólen podre
as penas, as culpas, essas
afundam barcos na chuva
e paixões no mar







6 de janeiro de 2020

Soneto das sete

Ligamos a tevê e na novela
Passava nossa história zuada
Os figurantes no fundo da tela
Fingiam todos não saber de nada

A cena do beijo saiu bonita
Porém, o diretor da obra, pirado,
Entra no set, dá cambalhota e grita
Refaçam o esquema, tá tudo errado!

Roteiro de amar é nunca saber,
Ah! A gente podia - se preciso
Chamar pras cenas tristes dois dublês

Roubar banco, ser zumbi, amar você
Levar a vida em doido improviso
E ainda por cima ganharmos cachês