19 de abril de 2020

Retrato de Maria E. Ibarrola / Ekphrasis¹


Tinha as mãos atravessadas por cruzes
e jogava o jogo possível² para sua época:
à mão já tão ferida por facas e pedras
quis acrescentar os calos de pintora
Olhos escuros e fundos, a parecer desanimados
era importante manter o lume por dentro
havendo tantos exemplos de mulheres apagadas
por quererem olhar, pintar, trabalhar, estudar, partir sem rumo
Não se sabe se era rica ou pobre, se aprendeu a desenhar sozinha
ou recebia classes, sendo então abastada, ou se aprendeu a desenhar
no convento desenhado em seu único quadro disponível
O que se sabe é que não pintou muito, sua pobreza,
e que gostava de olhar as coisas, daí os olhos bonitos, sua riqueza, e o cabelo
sempre bem amarrado ou o mais curto possível
Não, certamente ela não fez seus estudos nesse convento, embora transpareça
imensa simpatia pelo que pinta: seu interior, cujo pátio está ocupado por outras
três pessoas: um religioso, com um balde no braço e as mãos em posição de semeadura, como quem cuida das plantas e diz: esse convento, de algum modo, ainda vive, apesar de ocupado pelo mato - inclusive heras que descem pelas janelas, abrindo possibilidade de que o convento esteja em um momento de abandono e decadência
mas não desuso: esse padre que semeia anuncia à outra pessoa adulta na tela - uma mulher jovem, sentada na beira da fonte e próxima ao padre, com a cabeça coberta pelas vestes, uma espécie de xale entre cinza e azul modestos - que a vida resiste, desafiadora, como a obra e o olhar de Ibarrola, mesmo feita de tinta invisível - o apagado ainda existe
Há também uma criança, que brinca despreocupadamente na fonte (mais sinais de abandono, quiçá extinção do convento, desafiando a semeadura do velho padre): pode ser filho ou irmão da jovem, embora esta esteja tranquilamente de costas para as traquinagens. pode ser uma criança da vizinha como qualquer outra que gosta, como pintores, de se infiltrar em espaços há tempo desabitados para encher-lhes de vida. O menino colocou o chapéu na beira da fonte e, na ponta dos pés, tenta tocar a água da fonte, que, contrária à estrutura depredada do prédio, parece em pleno funcionamento a julgar pelo jato alegremente para cima: o menino e a fonte, o velho padre e a hera. e há a jovem de rosto encolhido a observar parte da cena, como a jovem Ibarrola encolhida na própria existência de mulher, de mulher artista de cor: mulher, negra, indígena, pobre ou rica, de qualquer forma vivendo a danação na Cidade do México do século XIX. Maria tinha olhos bonitos que mesmo apagados ainda resistem e mãos machucadas atravessadas por cruzes.

¹Para conhecer a tela "Interior de convento na Cidade do México" (1896), único trabalho conhecido de Ibarrola, ver texto de Luana Fontes disponível em: https://www.select.art.br/ainda-e-sempre-contra-a-invisibilidade/ Acesso em 15/04/2020
² "É muito difícil para qualquer um de nós não jogar esse jogo, até porque ele muitas vezes parece ser o único jogo possível. Mas, de fato, isso não é verdade." - PIPER, Adrien. A Tríplice Negação de Artistas Mulheres de Cor. Zazie edições, 2020. Tradução de Larissa Lery. Disponível gratuitamente em: http://www.zazie.com.br/pequena-biblioteca-de-ensaios

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