14 de março de 2009

Eterno torpor

---Hã?

Estava deitado. Minha mente, agindo como um velho computador, revelava os detalhes do ambiente aos poucos, sistematicamente. Vi um guarda-roupa à esquerda da cama. Acima de meu corpo, giros e giros silenciosos de um ventilador. Surgiu uma cadeira. Surgiu uma mulher sobre ela. Surgiu um par de olhos fixos em mim, me interrogando com virulência. Eu não distinguia qualquer som: somente rugas dançando, e uma boca em movimentos nervosos de afogado. Essa mulher parecia ser minha esposa.

---Hã? (só conseguia dizer isso.)

Estava confuso. Nada fazia sentido. Mais alguém entrou no meu quarto. Parecia minha filha. Distingui os primeiros sons: dinheiro-fora-água. Quem disse aquelas palavras? Não sabia. Invadiu o ambiente, uma canção de rock. E a mulher ali, contorcendo sua boca, a me fitar. O que queria?

---Hã?
---Você tá bêbado? Drogado? Levante-se!

A confusão aumentava. Ergui meu corpo, e enconstei-me na cabeceira da cama. Acabara de acordar, com certeza. Entretanto, sentia uma sensação de entorpecimento no corpo muito incomum. Como se eu ainda dormisse, mesmo estando acordado. Como se eu ainda estivesse acordando. Lentamente, eu acordava de um grande sono. A canção de rock continuava. A mulher, agora, já estava de pé, movimentando-se de forma preocupada. Olhava pra mim, olhava pra menina, que é lógico, era minha filha. Sim, era ela.
Um cheiro de carne assada se misturou com o som do rock. A mulher, ou melhor, a minha mulher falava muito, mas eu só assimilava algumas palavras. Palavras com um cheiro ruim: hospital-droga-noite-falar-ouvindo, ouvindo, ouvindo...

--- Sim, eu estou te ouvindo - falei.
--- Então me diga: o que eu disse?
--- Hã?

Com rapidez, a mulher se aproximou de mim, e sentou na borda da cama. Senti que ela queria me acariciar ou me bater: um dos dois. Nada fez, e eu fiquei com a dúvida até novas sensações me distraírem. Durante alguns minutos (quantos?) várias imagens, aromas e sons dançaram sobre a minha cabeça. Com as duas (Marina, minha mulher e Duda, minha filha) ao redor da cama, adormeci.

--- Vum-Vum-Vum.

Sou péssimo com onomatopéias. Mas foi isso que ouvi logo que reabri meus olhos. As pás do ventilador giravam, giravam e giravam... e aquele som me pareceu extremamente familiar. E calmo. E tedioso. E eterno.
Não sei quando tempo fiquei ali deitado, até Marina entrar no nosso quarto. Deitou-se a meu lado. Tinha o rosto calmo. Aconchegou-se a mim, sem dizer qualquer palavra. No ambiente, nenhum sinal daquelas estranhas sensações. Sua fala era pausada e compreensível. Suas palavras soavam comuns: não tinham cheiro nem sabor. Palavras, apenas. Minha filha também entrou. Pediu dinheiro. Iria sair.

--- Onde vais? -Perguntei. Fiz isso com uma fala que soou mecânica, como soam as falas dos atores medíocres.
--- Sair. Cair fora. Mas não se preocupe. Só vou tomar água.

Marina sorriu. Duda sorriu e partiu. Eu não fiz nada. Como sempre, não fiz nada.
Marina fixou aqueles seus olhos pequenos em mim e sorriu. Falou em sairmos. Falou em ficarmos. Minha mente, velho computador, não reconhecia aquelas palavras. Eram perfeitas, fáceis de serem assimiladas. O sorriso de Marina era bonito. A música que vinha da sala era boa, agradável. Mas minha mente estranhava. Como se aquela sensação estranha, que me havia atingido há pouco, houvesse retornado. Uma sensação de estranhamento, de recusa ao ambiente que me rodeava. Agora eu entendia perfeitamente tudo o que estava à minha volta. Mas ainda me sentia estranho. Uma estranheza calma, tediosa. Eterna.
Marina ainda sorria, fitando-me. Disse que eu estava distraído, com o pensamento em outro lugar. Quis dizer que estava totalmente em outro lugar. Eu era outro lugar. Como sempre, não disse nada.
Ela, um pouco receosa, talvez me estranhando, enlaçou meu corpo como se eu estivesse querendo fugir. Mas eu estava calmo: Lucidez; Eterno; torpor: Entorpecimento.
Como sempre, não pretendia fugir.
Ainda desconfiada, perguntou-me se eu ainda a amava.
Minha mente, velho computador, pensou e pensou e pensou. O ventilador girava, girava e girava...
Ante o meu silêncio, ela insistiu. E então, amava ou não amava?

--- Hã?

Isso saiu calma e naturalmente. Não havia mais nada a dizer. Comecei, então, a perceber que todo aquele ambiente me gritava algo. A cadeira, a respiração calma de Marina, o barulho do ventilador: tudo me dizia que eu precisava, urgentemente, fugir daquele lugar.

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