25 de julho de 2009

Não há nada a dizer

"Prazer de amor não dura mais que o instante
Mal de amor dura até o fim dos dias.”
Jean-Pierre Claris de Florian

Ainda hoje encontro com ela na rua. Esforço-me para fingir não vê-la. Nessas ocasiões, uma sensação estranha faz tremer todo o meu corpo, da cabeça aos pés. Meus seios se enrijecem, denunciando meus sentimentos. Essa sensação de medo somado à susto me perturba durante alguns minutos, mas seu ápice dura pouco: assim que passo por ela, o coração volta a bater tranquilo. Sem medo, sem susto. Tais situações são como transar com alguém que a gente não ama. Depois do ápice vem um abatimento, uma tristeza sem explicação. Mas como eu já disse, dura poucos segundos, logo viro uma esquina e ela já se encontra bem longe. Fico pensando se ela me viu e também me evitou, ou se é realmente distraída como parece.
Dizem que todas as pessoas são diferentes, mas nunca dei crédito a essa frase que parece ter sido extraída de um livro de auto-ajuda. Todavia passei a acreditar nessa máxima quando a conheci. Até então, as pessoas à minha volta eram todas iguais: riam e choravam pelos mesmos motivos. Mas ela era diferente. Não tinha medos e era sincera ao extremo. Ela era sensível, e ao mesmo tempo, uma pessoa polêmica que pouco se preocupava com os problemas da humanidade ou questões existencialistas. Às vezes escrevo no passado, como se ela estivesse morta. Mas ela está viva, aliás, numa hora dessas (é meia-noite) deve estar se entregando ao seu marido. Ela sempre me contou, em detalhes, sua relação com o marido, e confesso, sempre tive muita inveja daquela relação tão íntima.
Meu marido se chama Arnaldo. Transamos todas as quintas e sábados. Memorizei isso por que coincide com os dias das minhas aulas de canto. Também ocorre de transarmos nas quartas, mas isso depende de que jogo está sendo transmitido na televisão. Arnaldo é metódico e gosta de simplicidade. Acho que é uma boa forma de dizer que não fazemos nada de excepcional na cama. Sou casada há seis anos e tenho dois filhos. Ela não tem filhos: é estéril. Um dia perguntei a ela se ela desejava adotar uma criança.
── Não vou fazer isso. Não quero que ele seja filho de uma vagabunda qualquer.
Não, ela não é uma prostituta. Ela é bibliotecária. Possuía essa mania de agredir a si mesma. Tinha um gênio muito forte, era astuta e às vezes falava coisas impensáveis para mim:
── Dane-se a reputação! Reputação sempre foi uma puta entre um prefixo e um sufixo, numa suruba patrocinada pela falsidade!
Ou então ela dizia frases soturnas, com um olhar deprimente, e de repente, começava a gargalhar. E por isso eu acho ela tão diferente.
Conheci ela na biblioteca pública onde trabalha. Tudo começou com um comentário sobre um romance qualquer. Levamos a discussão para um café ali perto, e assim iniciamos nossa amizade.
Logo ela era minha melhor amiga. Frequentava minha casa todo final de semana. Eu raramente ia até a sua casa. Acho que ela nunca me motivava a ir até lá, e sempre que eu ia, e via ela e o marido juntos, sentia-me um incômodo para aquela felicidade tão explícita. Mas quando era ela quem vinha visitar-me era diferente. Enquanto Arnaldo ressonava ou assistia televisão, nós duas conversávamos animadoramente sobre diversos assuntos: família, futuro, literatura, brigas com nossos maridos, sexo, moda...etc.
Nossos corpos tinham feitio semelhante, por isso vivíamos trocando vestidos. Um dia ela me disse:
── Nossos corpos se encaixam.
Nesse dia estávamos no banheiro de minha casa, de frente para um grande espelho. Estávamos provando as roupas uma da outra. Como Arnaldo praticamente vivia trancado em nosso quarto, o grande banheiro era ideal para discutirmos relações conjugais, enquanto provávamos roupas. Ela gostava de contar o que o marido fizera nela, na última noite. E não só dizia, como queria mostrar.
── Ele agarrou-me por trás e pegou nos meus seios com extrema delicadeza, coisa que nenhum outro homem sabe fazer - Ela falava pegando nos meus seios cobertos pelos sutiã, tentando reproduzir em mim, as peripécias do marido.
Nunca percebi nenhuma intenção devassa naquilo, tampouco senti qualquer incômodo. O clima era amistoso, éramos simplesmente, duas amigas falando de sexo. Tocar meus seios e nádegas foi o mais longe que essas conversas práticas tomaram. Faziam bem a mim. Ríamos muito durante essas conversas.
Foi na cozinha que tudo aconteceu. Foi ali que minha vida começaria a ficar de pernas para o ar.
Era Domingo de Páscoa. Reunimo-nos nós quatro: ela, eu e os nossos maridos, em minha casa. Meus dois filhos brincavam em algum quarto. Eu cortava cebolas ou tomates, não lembro bem. Arnaldo e Sérgio (o marido dela) conversavam na garagem -parte isolada da casa- onde o churrasco era preparado.
Na cozinha, eu e ela conversávamos sobre as nossas felicidades. Ela dizia estar bem e perguntou como eu me sentia. Respondi com um sorriso incerto:
── Extremamente feliz.
Acho que ela notou que eu mentia. Não sei muito bem. Só sei que ela largou o copo em que tomava vinho e se posicionou atrás de mim. Eu falava da alegria que sentia por estarmos ali reunidos, quando senti o seu hálito quente queimar minha nuca. Estaquei e mal notei o corte que fiz na mão por conta da faca que feriu meu dedo indicador. Não disse nada. Não queria pensar em nada. Apenas estaquei. Suas mãos apoiaram-se em minha cintura e senti que sua mão direita começou a escorregar pelo meu corpo. Abriu o botão dos meus shorts jeans branco e desceu o zíper. Eu agora tremia. Aquilo era loucura, a qualquer momento Sérgio, Arnaldo ou as crianças poderiam surgir por uma das duas entradas da cozinha e nos ver naquela situação. Eu tremi de medo e de susto. Medo e susto. Achei que os bicos dos meus seios iriam perfurar minha blusa. Rangi os dentes e fechei as mãos. Não queria pensar em nada. E ela, austera, fixa em seu objetivo. Então eu saí daquela posição e disse de forma seca:
── Meu dedo está sangrando, com licença.
Fui às pressas para o banheiro. Encostei a porta sem trancar. Não tardou que ela entrasse. Abriu e bateu a porta com força. Não havia aberto a torneira. O dedo ainda sangrava.
Impulsiva, ela não hesitou em agarrar meus pulsos, levar meu dedo ferido à boca e chupar. Logo passou a beijar minha boca de um jeito muito suave, que só uma mulher consegue dar em outra. Nesse momento eu já me encontrava sem meus shorts. Ela era mais forte do que eu. De repente, passaram de suaves à brutais seus carinhos. Pegou-me pelos cabelos e forçou meu rosto contra os ladrilhos da parede. Rasgou minha blusa que era nova, e arrebentou meu sutiã, com um ímpeto brutal que eu julgava ser exclusivo dos homens. Eu arfava e parecia não entender o que acontecia. A verdade é que eu não queria pensar em nada. No fundo, eu queria aquilo. Acho que ela se aproveitou de tudo contei para ela: a monotonia de Arnaldo, o tédio sem-fim que era minha vida. Tirou minha calcinha, sentiu por alguns instantes a maciez de minhas coxas e ordenou que eu me sentasse na privada. Obedeci como uma criança perdida. Sentei-me. Ela, ajoelhada, abriu minhas pernas com força e vasculhou cada canto do meu sexo. Ela, totalmente vestida, não deixou que eu manisfetasse repúdio ou prazer e me recriminou, com mordidas, todas as vezes em que abri minha boca. Rangendo os dentes e mordendo meus próprios lábios, gozei. Medo, susto, prazer, medo, susto: nada, nada. O que era aquele nada que eu sentia? Era bom ou ruim sentí-lo? Não sabia. Não queria pensar em nada. Ela levantou-se sem dizer nada, e saiu do banheiro. Eu fiquei ali muda, vazia. Após alguns minutos meu filho de três anos entrou no banheiro. Só então percebi que a porta permanecera aberta durante todo o tempo. Ele ficou parado. Olhando para sua imprudente mãe nua, descabelada, arfante, suada, sentada na privada. Ele, pobrezinho, não disse nada. Eu também não disse nada. Não havia nada a dizer. Para quebrar o gelo, urinei.
Vinte minutos depois eu saía do banheiro. Corpo lavado na pia, cabelo arrumado. Vestia uma blusa e um shorts que estavam no cesto de roupas sujas.
Na cozinha, encontrei Arnaldo, com a mesma cara de sempre:
── Eles foram embora. A Capitu estava indisposta. O Sérgio pediu desculpas. Sabe o que eu acho? Eu acho que ela está grávida...
Arnaldo idiota. Nem Sérgio o aguentava. Capitu era estéril. Os dois só vinham aqui em casa por causa da amizade entre mim e ela.
Ainda muda, tive a impressão de que nunca mais a veria. A verdade é que ainda hoje encontro com ela na rua, mas desvio o olhar. É estranho como tudo terminou do nada. Às vezes penso que não terminou. Às vezes penso que é como se estivéssemos imersos naquele vazio existencial, que toma posse dos corpos daqueles que amam mas não sabem o porquê. Preciso de um porquê. Um motivo. Uma razão. Algo que preencha o mar de nada que tenho diante dos meus olhos.
Talvez um dia voltemos a conversar. Um dia, talvez. Por enquanto, não há nada a dizer.

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