12 de maio de 2021

Verde, Amarelo, Azul e Ódio



Lançado em janeiro de 2021, ano II da pandemia do
coronavírus, em Florianópolis, "Verde, Amarelo, Azul e Branco", editado de modo independente pelo autor, espelha a ignorância e ausência de empatia dos catarinenses no momento mais grave de sua história.

Na capa do livro, um pássaro morto sugere as cores de uma certa bandeira esquecida. O peito esmagado, ele mesmo bandeira, previne o seu expectador acerca da crueza que lhe aguarda. A profunda humanidade da prosa de Marco se materializa na construção de narrativas, aqui, muito próximas dos leitores. Se em seus livros anteriores já se observava o constante entrelaçamento dos gêneros conto e crônica (do qual se destacam textos como "Agarrar os silêncios" e "O estupro de Madhyamgram", de "Carnaval de cinzas", 2016, Editora Redoma) aqui essa mescla é forjada por meio de narrativas curtas, marcadas por períodos curtos e tensos - é a tentativa de ligação direta com o coração anônimo daqueles que, pelas timelines e caixas de comentários das redes sociais, exibem com orgulho um órgão de lata destituído de empatia pelos sofrimentos dos outros seres vivos. O permanente estado de angústia e estresse ocasionado pela pandemia que assola o começo deste século aproxima ainda mais o leitor dessas ficções-realidade - intenção para a qual colabora o vocabulário enxuto. Uma economia, aliás, importante em tempos de exaustão, pois, como Marco afirma em recente crônica para o Desacato, portal no qual mantém uma coluna, há um esgotamento de notícias. Há um esgotamento de pronúncia, pois estamos, há mais de um ano, numa nota infeliz e numa tarefa hercúlea de conscientizar as pessoas da necessidade urgente de haver muito cuidado uns com os outros. Diante desse estado de crise, o artista, já de antemão em conflito com os leitores, busca dialogar com aqueles que sofrem pelo luto e ainda mantêm firme o pacto coletivo de cuidado mútuo (supostamente um dever de todos), rebela-se contra a horda anticiência e lança luz sobre aspectos sociológicos da pandemia - em "OS HOMENS DETESTAM EUNICE", "A SAGA DE GILMARA" e "NÃO CHOVE NOS OLHOS DE MIRNA", três belos contos trágicos desse livro, evidencia-se a onipresente misoginia nas mais variadas camadas das vidas das protagonistas, que precisam por vezes travar também luta contra a miséria. Esses contos parecem a face inversa daqueles que exibem protagonistas homens propagando vírus e opressões às pessoas a sua volta, sejam crianças, adultas ou idosas - mas com explícita preferência por vítimas femininas. Conforme recente reportagem do portal Catarinas, SC é um dos estados mais feminicidas durante a pandemia. Estamos, pois, diante de um livro de ficções-realidade.

O cuidado com a linguagem no livro também se mostra no verso de Augusto dos Anjos (poeta moderníssimo) escolhido como epígrafe, extraído do belo soneto "Vandalismo" - meu coração tem catedrais imensas; ao passo que acena para a obra de Augusto, um apaixonado pela ciência que conectou Biologia , Filosofia e Arte sob ritmos alucinantes, a referência a Augusto também nos leva a todo um grupo de escritoras e escritores brasileiros, toda a classe artística enfim, que foram pouco lidos e celebrados, silenciados à margem de um sistema literário financiado pelo capital branco e patriarcal, como hoje, de modo análogo, silenciam-se especialistas/pesquisadores em um debate que deveria ser científico, mas é carnavalescamente tocado por apresentadores de tv, prefeitos, governadores, parlamentares e influencers digitais. O belo verso, também, parece nos lembrar que o desassossego  e rebeldia de Augusto dos Anjos dialoga com o estado espírito exaurido em que se encontram aqueles que lutam contra a maré de desinformação, mentiras e ataques sistemáticos a direitos básicos garantidos, fragilmente, por nossa Constituição - em especial a classe artística, que tem, no estado de Santa Catarina, o autor como um de seus principais representantes dada à contribuição de Marco como escritor, diretor, ativista cultural, pesquisador e professor. O livro conecta-se, assim, a "Harmonias do Inferno", que se abre com um verso de Baudelaire, outro rebelde maldito, ao apresentar uma resposta iconoclasta a uma sociedade caótica marcada pela ascensão de políticas neoliberais e desprezo pela vida humana nas mais variadas esferas sociais- e agora, desde 2016, administrada pelos guardiões imbecis de infames projetos de Estado.

Nos contos do livro, os narradores não poupam juízos morais às escolhas e crenças dos protagonistas. No terceiro conto, A MÁSCARA DE TEOBALDO, o personagem principal, um homem de 75 anos, arrogante como seu xará shakespeariano (lembre-se aqui que é entre brancos e idosos que o capitão cloroquina tem mais aprovação mesmo diante dos mil insultos à democracia e à ciência), acaba internado em virtude da contaminação pelo coronavírus. Recuperado após dura internação, continua a propalar discursos negacionistas, chegando ao ponto de ofender familiares que o corrigiam quanto às verdadeiras causas de sua contaminação e doença. A máscara do personagem é retirada ao longo de toda a narrativa, em sua escolha, tal como nas demais histórias do livro, de enfatizar comportamentos irracionais em face da pandemia - e da perspectiva da morte. Não contente com esse caminho discursivo que acentua para o leitor, frase a frase, dos descaminhos estúpidos dos cidadãos-personagens, o narrador emite, ao fim, um juízo de valor definitivo, que cai sobre o leitor como pena - "Teobaldo perdeu o único pingo da razão que o conectava à realidade". No conto anterior, situado no bairro do Itacorubi, a "pena" é ainda mais severa - Vinicius perde os avós, para cuja contaminação contribuiu diretamente ao ignorar o distanciamento social e visitar os parentes idosos. Compreende-se tal escolha estilística - nada desnecessária em uma sociedade surda à verdade científica - com o artista precisando gritar por sobre elaboradas algazarras -, mas notemos que, aqui, em "Verde, Amarelo, Azul e Branco" o julgamento moral explícito de boa parte dos contos contrasta com a composição das narrativas de "Harmonias do Inferno" (Editora Letra D'água, 2010), obra menos condescendente, que resistem como passeios (não guiados, ou melhor, não explicitamente guiados) pelos diversos círculos infernais que se escondem no interior das instituições (em crise) e das pessoas (doentes). Guardadas as diferenças, resta o saldo urgente dessas narrativas que são também cartas, crônicas, manifestos e urros contra um estado de coisas promovido não por vírus, mas por homens - com cor, saldo bancário e endereço. 


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