30 de março de 2018

Antes

I

até tarde da noite
antes de dormir
kauan faz um stencil
e pensa no devir

nada concreto:
um barco atravessa um traço
leve, negro traço
eis tudo que restou
das noites de antes

como ele
muito dantes, há três mil grécias
poetas distantes
homeros virgílios e dantes
em vigília, ergueram taças
umedeceram penas e,
anacreontes de ontem,
criaram invisível trilha
entre o sentido e o escrito

o coração virado sempre pra parede
contempla o branco demoradamente
(nele o barco em sua negra marola)
a procurar,
antes do porvir, sua ruína
antes do papel, os pensamentos

noite contra noite, kauan e o ofício de levar a cabo a espera
  - designer de anteriores -
a reconstruir, toda noite, o passado
em busca de novos versos
versões felizes para o doído
e nunca olvidado

II

muito antes do corpo sobre a cama,
o prazer da linguagem

bem antes do caminho pra casa,
sem rosto amigo e estrela-guia,
bem antes dos estranhos corredores,
de alheias casas,
os acordos da linguagem

dois dias por dia,
a saldar e contrair
linguísticas dívidas
de deliciosa mora

correm as pessoas para cá e lá
a trabalhar, dentro do corpo,
vestidos para os desejos
e em cada palavra só o vestígio
do que querem realmente

quando se cansam do verdadeiro prazer
de repente
(para se descansar a língua da linguagem)
deitam-se à cama os homens
e põem-se como gatos
a se lamberem os corpos

III

o que vai ser desse agora
trabalho, aposta ou feitiço
depende do que foi o antes
com seus atropelos e prejuízos

há muitos anos,
onde hoje é o corpo dessa mulher
havia um lote de terra
susserania hereditária
onde lá mil outras morreram
para que esta
decididamente
atravesse a rua apesar do movimento dos carros

há muitos anos, todos os dias
duas mãos se apertam no escuro
em busca de um novo antes
distinto daqueles outros
com seus acertos, vacilos, rompantes

sem recalque, sem saudade:
um antes para ter de onde se ir
e para se ter a quem contar

casca com que se possa
sair à noite para a festa
roupa que se possa
trajar no dia de seu mais novo nascimento

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