16 de janeiro de 2019

conto de amor









não vais acreditar: ontem sonhei que eu & tu
nos amávamos na fila do Seguro Social
cruzamos olhares e humores
e percebi na hora que a tua invalidez era a minha

quis te ofertar flores e vinhos
mas não há sequer água nos bebedouros das repartições
de modo que te jurei no desespero
um amor tão crescente quanto o fator previdenciário
e no teu dedo mais machucado
apertei-te uma aliança partidária
de última hora

fodemos ali mesmo nas cadeiras
estofadas da caixa foderal
por sorte não havia crianças no recinto
apenas velhos
há anos na mesma fila mofada
apenas homens e mulheres
jovens e idosos
mas todos igualmente velhos para o governo
apenas velhos fudidos

a euforia foi grande entre os segurados
que mal se seguravam a urrar
casamento! casamento! pensão! pensão!
enquanto vestíamos nossos trajes sociais
(eu, de jaleco, tu, de gravata & sapatos saltantes)
um perito oficial atestou-nos amor eterno
e nos garantiu que
apesar de todas as lesões concussões traumas defeitos físicos e sentimentais
apesar de todos os acidentes e traições de trabalho
ainda sim tínhamos condições de nos amar sim
e mandou-nos imediatamente à lua de mel
na linha de produção de nossas
guloseimas preferidas

um soldado de reserva que passava
na hora pra sacar seu soldo
fez às vezes de padre
(é tão incrível, amor, como os militares
estão sempre habilitados
para militar em todos os milistérios!)
& foi assim num sonho lindo
sob os desígnios da Divina Previdência
e curiosos olhares proletários
que casamos ali mesmo
com laudos e nenhuma prece
todo dia um novo sonho se sobrepõe
e esfarela os outros mas este não se esquece:
nos amávamos morrendo, eu & tu, na fila do INSS

Imagem: tirinha de Pagu, Patrícia Galvão, para o Jornal do Povo

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