26 de outubro de 2013

súbito no meio da tarde
enquanto jogas xadrez
fodes
ou ensinas teu pequeno a andar
sentes o cheiro terrível
e espiando discretamente o teu pé descobres:
pisastes na merda da vida.

descobres
não sem antes disfarçar o cheiro podre
não sem antes dissimular
e creditar o ar denso de carniça àqueles que te cercam

(e nem o teu amor escapa à acusação
pois antes de descobrir-te culpado
culparás teu amor
e é essa uma verdade que os filmes sempre nos ocultaram:
o último pedido dos condenados à forca é sempre
tirem-me daqui
ponham outro em meu lugar
e se apenas houver meu amor
tirem-me daqui
ponham meu amor em meu lugar).

sim, sim!
é injusto que isso te aconteça e justo contigo e justo agora
mas pisastes na merda
cagada e semeada por esse bicho que nos vai por dentro
e a que muitos chamam: vida.

e não há remédio: larga teus sapatos, arrasta os pés pela calçada,
lamenta e chora pitangas e mágoas e desinfetantes
que o cheiro da merda na vida não sai:
não há um cu na cabeça e este é o nosso inferno.

podes, é bem verdade, arrancar o pé pela raiz
mas ainda assim, creia-me, a merda estará contigo
graças à traição dos sentidos:
entre o gosto que tinha a mais feliz época da tua vida
e as cores dos teus piores pensamentos
lá está a música da merda
girando e girando dentro da tua cabeça.

ai, a merda.
não há muita escolha senão amá-la
e domesticá-la como fizestes com os outros mil bichos que antes te apareceram
e descobrir nela algum prazer ou importância
como fizestes com cada um dos teus peidos
e mijos e axilas e
 - convenhamos -
nenhum perfume é mais especial
que o de tuas próprias axilas
estas flores que fedem a todos menos a ti mesmo
assim pode ser também esta merda
que carregas no coração do teu pé
no coração preto dos peidos do teu pé de pedra
essa paz haverá, se quiseres.
mas não te apresses que haverá tempo para pensar e repensar nisso:
não há um cu na cabeça e este é o nosso inferno.

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