1 de janeiro de 2018

Capítulo 2

onde milhares de hambúrgueres são fritos, e motoboys são hospitalizados

Uma folha amarela com diversos campos para preencher e - lá embaixo - uma linha para a assinatura do cliente. O que significa atacado e varejo? atacado parece algo violento, rápido. varejo lembra mosca varejeira... não, nada a ver.

-- Mariana, assina logo e devolve pro homem essa nota fiscal, menina!

O vendedor, que já havia descarregado da caminhonete as caixas com hambúrgueres e apenas aguardava a liberação da nota, parecia tranquilo; era a mãe de Mariana que a apressava, pois havia muitos lanches por fazer e só as duas trabalhavam no carrinho. Ele ficava instalado à frente de uma igreja, e como havia missa às cinco, e às cinco e meia diversos alunos saíam de uma escola estadual ali próxima, Mariana e Mariza costumavam abri-lo às quatro da tarde. Atendiam até meia-noite - havia ainda a limpeza da chapa e a volta pra casa, que faziam as duas dormirem quase todos os dias de madrugada. Segunda era o único dia de folga das duas, rotina cumprida por elas há dois anos, quando elas chegaram em Itajaí.

-- Moço, o que é varejo?
-- Ah. É o tipo de compra simples, por unidade. Já o atacado é quando você adquire as coisas em caixa, em maior quantidade. E aí fica mais barato, entende?
-- Entendi. Obrigado.

O vendedor sorriu, despediu-se das duas e foi embora. Dona Mariza quase não sorria; aos clientes e fornecedores, por exemplo, reservava uma expressão fechada e estranha, uma tentativa de ser serena e receptiva mas que não funcionava devido às inúmeras preocupações de mulher, de mulher mãe, de mulher mãe pobre, de mulher mãe pobre negra, de mulher mãe pobre negra trabalhadora e AH MEU DEUS

-- nossa sinhora, outro motoqueiro!!!! - Dona Mariza saiu do carrinho e aproximou-se da calçada. Mariana, assustada, continuou onde estava, atrás do balcão, ainda com a cópia da nota fiscal na mão. no, ar o cheiro dos hambúrgueres na chapa e os gritos da multidão que se aglomerava em torno da rua.

-- ele tá se levantando, ajuda ele, povo! - gritou uma senhora que saíra da igreja ao ouvir o estrondo. Ninguém sabia explicar o que houvera: alguém viu o motoqueiro derrapar e rolar pelo chão, enquanto sua moto deslizava na outra direção até acertar os paralelepípedos da calçada aposta àquela onde se encontrava o carrinho de lanches Maresia. O homem ferido conseguira levantar-se, mas parecia atordoado e, já na calçada, tinha dificuldade de responder às perguntas dos curiosos. Alguém chamou a ambulância. Outro alguém, que por sinal era o único cliente do carrinho no momento, sentiu cheiro de queimado AH MEU DEUS 

-- os hambúrgueres, Mariana!!!!

A menina acordou de seus devaneios e virou-se pra chapa: nela havia dois hambúrgueres completamente tostados, o queijo por cima havia secado devido ao superaquecimento; a fumaça aumentara e irritava os olhos. Em movimentos rápidos, ela desligou a chapa e jogou um pouco de água sobre os hambúrgueres, TSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS

-- LEPT LEPT - foi assim que soou o barulho dos dois tapas em sequência que ela levou no braço. Sua mãe voltara correndo para o carrinho e, antes de assumir o controle das coisas e da chapa, punira a menina por mais um desastramento.

-- No que você está pensando, Mariana? Meu deus do céu, você quer me enlouquecer desse jeito.

Ela não soube o que responder. Sabia que sua mãe não tinha paciência para os relatos de sua imaginação, considerada por ela tão inútil. Diante de uma coisa, Mariana estava sempre pensando em outra coisa, como se vivesse noutro tempo, dessincronizada. Dessa vez, Mariana pensava que seu pai havia um dia também sofrido um acidente. Mas não como esse, em frente ao carrinho. Não foi de moto, seu pai não rolou pela rua, nem contou com ajuda de pessoas que por lá passavam. E o mais importante: ela não estava lá na hora. Mas foi um acidente. Pelo menos foi essa a notícia que Mariza recebeu há cerca de dois anos atrás, quando os três viviam em Garopaba, numa comunidade localizada na Praia da Silveira. Foi de barco que Anselmo morreu, afundando na água, sem contar com a ajuda de ninguém, pois seus companheiros também faleceram. A Marinha informou que antes de partir-se ao meio e afundar, o barco pegara fogo após falhas mecânicas. Mas pouco daquilo importava diante do sentimento de perda e vazio. Era nisso que Mariana pensava, mas não dessa forma: vislumbres desorganizados, imagem sobrepondo-se a outra imagem, o mar agitado, pedaços de madeira com fogo sobre o mar, resistindo por minutos até que as ondas o apagassem, possíveis pensamento e frases ditas pelo pai, era nisso e muito mais que Mariana pensava.  Mariana estava sempre pensando em outra coisa e em muito mais do que era preciso. O resultado eram frequentes hambúrgueres queimados na chapa, clientes irritados com os pedidos que teriam de ser refeitos, e LEPT LEPT, TSS TSS, LEPT LEPT, TSS TSS.

O motoboy já estava sentado na ambulância, parecendo tranquilo e inteiro, e uma parcela dos curiosos ainda permanecia ali, de pé, a cochichar e contar e recontar suas versões para o ocorrido. Alguns, mais exaltados, clamavam por medidas de segurança na via, mas a revolta logo se apagava e  eles vvoltavam a seus afazeres calmos de sempre. Já recuperada dos tapas e broncas, Mariana voltara ao trabalho, a chapa novamente ligada e limpa, embalando dois hambúrgueres para viagem. Mas ainda pensava em acidentes. Um pouco no motoboy desconhecido (era um rapaz jovem, de uns vinte anos) e um pouco no seu pai pescador (era um homem jovem, tinha 34 anos quando o náufrágio ocorreu; Mariana tinha 12). Na sua cabeça, sucediam-se imagens de água e asfalto, bem como o desejo de conter todos os acidentes do mundo e defender as pessoas e suas famílias. Nesse momento, quantos motoqueiros estão caindo nessa cidade, no estado, no Brasil? E no mundo (Mariana não sabia dizer se havia motos  e motoboys em todos os países, mas certamente havia em vários)? E motogirls? Mariana nunca vira alguma. Tomara que não existessem; deus que a livrasse de uma jovem motogirl derrapando no asfalto, deve doer demais, pensava Mariana. Enquanto dava um nó na sacola, sentindo outro nó na garganta, Mariana pensava que centenas (ou milhares?) de motoboys caíam, tendo culpa ou não, todos os dias pelo mundo. Era como se os motoboys, reunidos em um único ser, nunca deixassem de cair na infinita rua do mundo, como se fosse uma imagem GIF, dessas que as pessoas compartilham nas redes sociais (Mariana particularmente amava GIFs de cachorro e de bebês sorrindo). A menina também pensava em naufrágios e na sua frágil ocorrência: o mar era tão imenso... talvez mais imenso que todas as ruas juntas, mas ela quase não ouvia falar de navios afundando. Parecia que só seu pai tivera esse azar. Seu pai e aquele casal do Titanic, filme que assistira uma vez de madrugada escondida da mãe.

A ambulância já partira, assim como o cliente cujo pedido foi refeito devido ao acidente na chapa. Sua mãe parecia mais calma, mas ainda mantinha sua expressão carregada, como se houvesse algum tipo de peso sobre suas sobrancelhas e fosse preciso sustentá-lo. Mariana passava pano umedecido com álcool sobre as mesas, tentando não pensar em náufrágios e derrapagens. Mas, se conseguia abstrair-se e deixar de pensar em algo, era porque outro pensamento, às vezes até mais insistente e triste, se aproximava. Dessa vez, Mariana pensava na dupla Atacado e Varejo. A garota concluía que seus pensamentos ruins vinham sempre em atacado, em caixas, aos montes. Enquanto isso, as alegrias vinham no varejo, varejeiras, uma aqui e outra ali. Poucas unidades.

-- Se você passar mais um pouco de pano nessa mesa, vai abrir um buraco nela, Mari. Venha cá, venha.

Era sua mãe chamando, enquanto limpava as mãos no avental já encardido. Trazia sua expressão mais leve possível (ainda sim era séria) e um abraço apertado para aquela filha tão atrapalhada, mas tão amada. Abraços assim eram raros. Mariana aproveitou esse momento de varejo e agarrou as costas da mãe com força, enquanto o sol naufragava por detrás dos prédios.

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