13 de janeiro de 2018

há por aí uma pessoa para quem não posso ligar. a qualquer hora e qualquer dia, não dá linha. se me passo por outra ou por outro, se ligo pela internet ou telepatia, não dá linha. se volto no tempo e chego à época em que havia orelhões ou telefonistas, ainda sim para ela não posso ligar. as fichas emperram, uma a uma, as telefonistas começam a rir, dente por dente, e desligam o telefone à primeira palavra. pombos correios não conseguem chegar à calçada sem ser abatidos e nem a maior garrafa do mundo resistiria à missão de entregar uma carta sem rachar-se. se mando um sinal de fumaça, o vento o apaga. às vezes ela me liga e marcamos um café ali naquela lanchonete do lado do Terminal. 

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há, em determinada parte do Oceano, um ponto irrastreável. nenhum satélite ou radar o alcança. nenhum instrumento de orientação utilizado pelos marinheiros aponta a existência: um pequeno quadrado negro aponta o puro nada. os barcos passam por perto sem se dar conta. trata-se do único ponto possível para se esconder no pega-pega que se joga aos 11 anos num final de tarde dominical sem ser descoberto pelos amigos. não sendo mar e tão pequeno (tem menos de um metro quadrado), poderia alocar um banco, desses para onde brasileiros enviam dinheiro ilegal. de vez em quando, sem que nenhum pesqueiro ou náufrago perceba, salta nesse ponto um peixe de ouro.

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há no coração da floresta uma tribo sem nome. ao acordar, seus moradores saltam das redes apressados e atentos ao último dia de sua comunidade. mas nem por isso descumprem a rotina; para se desaparecer por completo do mapa é preciso muita organização e método. em seu último dia, cantam, dançam, louvam aos deuses e pedem clemência, na esperança de que mais um dia seja concedido. às pressas desfazem-se de suas atuais relações e organizam novos casamentos que formam uma noite furiosa de amor a fazer até mesmo a Lua descer por um fio direto à cama. as crianças dormem abraçadas e com medo enquanto os velhos cantam pela última vez. quando despertam, saltam das redes apressados e atentos a mais um último dia de sua comunidade.

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há uma rede de linhas emergenciais a tocar durante toda a madrugada. um bombeiro alto de rosto cansado e barba por fazer procura atender a mais de um ao mesmo tempo e ouvir os interlocutores atentamente. cada voz, desesperada a sua maneira, tenta convencê-lo da importância do reparo e material de que dispõe. o bombeiro se angustia e chega a disparar um jato de água acidentalmente enquanto maneja os telefones. não há viaturas suficientes e o bombeiro está velho e cansado. para ganhar atenção, as vozes são criativas nos pedidos e dão detalhes mirabolantes. alguns, desavisados, usam estratégias inadequadas para a idade do bombeiro. este se deleita com alguns dos casos e tenta memorizá-los para um dia publicar no jornal e ser famoso. enquanto isso a cidade queima.

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há uma mosquita musculosa chamada Roberta. sua história não agradou à editoria da seção de literatura infantil e por isso seu autor, Carlos Camilo, jogou a história fora como se a pobre Roberta fosse desprezível como um Babadook. embora carregue uma história de superação e fortalecimento das pernas, Roberta sofre mesmo hoje, a voar baixo e cansada, desviando dos pés de Soraia e Carlos Camilo, na quitinete por eles alugada. Roberta é uma Culex qualquer sem perspectiva de vida, sem um dengo ou dengue qualquer. Carlos Camilo e Soraia não se dão conta das semelhanças entre todos e preferem dar atenção a webamigos pouco empáticos.

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