7 de agosto de 2010

sobre dois livros de Enzo Potel




Bem, eu estava devendo essa postagem há algum tempo. A primeira dívida era para com o Ítalo , que me deu esses 2 livros do Potel, presentão, e também ao Enzo, é claro, pois ele é o autor dos poemas. Ah, sim, "Cura" e "Contos de Facas" são livros de poemas. E a segunda dívida era para comigo mesmo, pro blog, pois não tenho escrito com a frequência que desejo.
E pra tentar quitar essas dívidas, eis essa postagem-agradecimento, pra falar um pouco sobre essas leituras, das quais gostei bastante, já adianto. "Cura" é o segundo livro de Enzo Potel, que é de Itajaí. "Conto de Facas" é o terceiro. A primeira coisa que me chamou a atenção foi a qualidade dos projetos gráficos, ambos feitos pela editora Nova Letra (lembrei-me agora que já elogiei um projeto dessa editora - que mal conheço - numa postagem recente) Somam-se aí os desenhos de Me Fodí (em Contos de Facas) e as fotografias de A. Soares (em Cura) Bem legais.
A impressão que tive ao ler "Cura" foi a de encontrar em contato com uma poesia raivosa. De uma raiva ancorada na descrença. Uma poesia cética, sem qualquer gota de esperança, fé, resignação ou qualquer outro sentimento de acomodação ao caos mundano. O poeta, aqui, é aquele que "vê o abismo de baixo", que vai revirar as estranhas das pessoas e das coisas, para mostrar o que elas não externam naturalmente. E é bem o contrário: escondem. Em poemas como "Maria vai com as outras" (ela acha que angústia/faz parte da grife dela") ou "Mulher Hipopótamo" ("Mal sabes/as orgias internas/em que ela te come/enquanto conversa contigo/quase sem te dirigir os olhos/Séria/naquela risada que parece/cronometrada/para não levantar suspeitas/nem/escapar suspiros") o poeta ataca as falsas camadas que revestem as pessoas: modos enganosos de pensar e agir não escapam à sua raiva. Resumindo: poemas-socos.
Antes que eu comece a falar besteiras, é bom elucidar as coisas com dois trechos extraídos das contracapas. Em "Cura", um trecho do prefácio de Ryana Gabech sobre a poesia de Enzo: "[a poesia de Enzo] Revela, fere, aponta mas também beija, acalma, entristece e dorme. É a vida do caos". Sobre isso, também adianto que o leitor toma mais facadas que beijos. E no "Conto de facas", na contracapa, versos destacados que sintetizam o fazer poético de Enzo: "Assim como o objetivo da minha poesia/não é ofender, e sim registrar./Nem que seja registrar/uma ofensa". Sem outra preocupação que não seja registrar o que vê e pensa, "Cura" constrói-se:

Dos nossos uivos

Essa história de imaginar
que as coisas
poderiam ser piores
nos aproxima do Nada
Todo-Misericordioso
e nos impede de adentrar
nas noturnas florestas da Cura.


O livro é divido em três partes. Gostei muito das duas primeiras, "cenários místicos" e "a morte", e não tanto da terceira, "o reencontro". Não sei dizer porquê, creio que questão de gosto, sem outra explicação mais racional. Ou talvez a temática desses últimos poemas - mais passionais - não tenha me agradado tanto como os primeiros. Sei lá.
O que eu gostei bastante nesse "Cura" - algo que fica ainda mais forte em "Conto de Facas" - é a linguagem tensa dos poemas: os significados-óbvios são desgastados, clichês são virados do avesso. Por meio de jogos de palavras e e metáforas violentas, o leitor leva alguns tapas (ou facadas). Dois exemplos disso seguem abaixo:


SÁBADO EM SÃO PAULO

Praça da Liberdade:

comida boa
e baratas.

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CONFEITARIA


Devo esperar.

Abro a janela do sotão
na madrugada
e entendo que fugas rocambolescas
pelo telhado
irão sempre me deixar
na porta de casa

onde mamãe me espera com beijinhos
e papai com briga
deiros.

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E eu tô falando do "Cura", e deixei o outro livro de lado. E aliás, gostei mais desse "Conto de Facas" do que de seu antecessor. Nesse livro, o que eu tanto gostei, esse trabalho com a linguagem, é ainda mais marcante, ou seja, ainda mais violenta e tensa a linguagem em que o poeta desfia seus afiados "contos". O sumário já dá uma boa ideia disso: "O gasto de botas", "Vinte mil éguas submarinas", "Des","Cinzarela" e "A falta mágica". O que Potel apresenta é bem o que o título sugere: a desconstrução dos contos de fadas cotidianos: a família de vidro, amores frágeis. Ora imagens bonitas, fotografias da infância (como esse "Conhecer"), ora um misto de simplicidade, perversidade, mediocridade e tantas outras -dades que o homem consegue revelar e revelar no decorrer de sua existência ("A falta mágica"). Curioso nesse livro também é seu prefácio, escrito pela mãe (!!) do poeta. E escrito muitíssimo bem, é preciso dizer.
Agradeço pelas leituras, e recomendo esses dois livros!
Acho que o melhor jeito de apresentar o livro é mostrar um trecho, por isso, pra fechar, eis um dos poemas de que mais gostei no "Conto de facas":

A GALINHA DOS OVOS

Eu já choquei muita coisa.
Já choquei minha mãe.
Não choquei meu pai. Olhei para minha
cloaca, abismado: ele não?
Já choquei uma professora de biologia.
Um advogado com sua pasta de dente.
Já choquei um negro bailarino homofóbico.
Choquei chefs de cozinha. Choquei até
uma prostituta.

No aposento das gafes, vontades e disparates,
não paro de chocar.
E sei de cada ovo a claridade que
desaprisionou gemidos.
E sei que os ovos arregalaram os olhos
e levantam o dedo
e engasgam com o nó da garganta.

porque o vislumbre da verdade
é também uma pena de morte.

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Irreverências Bibliográficas: Os dois livros de Potel, Cura (2007) e Conto de Facas (2010) foram publicados pela editora Nova Letra, lá de Blumenau.

4 comentários:

ítalo puccini disse...

há! que máximo isso!

que bom que gostasse bastantão assim =D

ficou do caraleo tua escrita!

abração!

Enzo Potel disse...

Eduardo!
Obrigado pela crítica. Que bom que gostou das acidezes.

Só gostaria de comentar que a Nova Letra não tem importância alguma na maioria de suas publicações. É uma editora bastante comercial e muito esperta de criar-se num vale cheio de leis de incentivo à cultura; mas não tem um editor ou qualquer afeto ou representatividade na cena literária estadual.

Então fique de olhos no nome da galera que faz os projetos gráficos, ali na ficha catalográfica. Esses sim são os artistas que sabem fazer a magia de transformar arte em produto.

No Cura, foi Eduardo Moreira. E no Conto de facas, Guilherme Meneghelli. Talvez você encontre o nome deles em outros projetos gráficos que admire.

mais um obrigado!

Enzo

Eduardo Silveira disse...

Enzo: conselho devidamente gravado.
Obrigado aos dois. Abraços!

Anônimo disse...

Meu, que massa isso! *--* Empresta? :P