19 de maio de 2018

Tainhas (fragmento)



Tão logo entrou no ônibus, Mariana procurou um lugar vazio onde pudesse se sentar à janela; escolheu um na parte central do ônibus, torcendo para que ninguém mais se acomodasse a seu lado, porque desse modo poderia se folgar à vontade e não teria a obrigação de dividir um espaço tão pouco com estranhos. Foi aí que um homem, trajando calças e camiseta alaranjadas, nos pés um sapatão preto de couro, sentou-se ao seu lado, mesmo havendo tantos outros pares de assentos livres; o sujeito era forte, seus músculos salientes pareciam querer saltar fora dos braços, e trazia o cenho fechado, como se estivesse de mal com a vida e com todos. A menina observava-o de soslaio, fingindo olhar para a paisagem estática da janela, onde nada de mais havia para ver a não ser a fila de passageiros embarcando rumo à Recife. Para não transparecer incômodo, Mariana esforçava-se por pensar em outras coisas: olhava para o bagageiro, acima de sua cabeça, procurando analisar as diferentes tipos de malas e bolsas que as pessoas traziam: havia quem usasse maletas pesadas e bonitas, como as de executivos, enquanto havia também cobertores, potes e sacolas plásticas de mercado, denunciando as diferentes intenções e preparativos de viagem das pessoas. Certamente havia nesse carro gente a trabalhar, a passear, gente com pressa e gente tranquila. E gente perdida, em fuga, como ela, haveria mais alguém? Era nessas coisas que Mariana pensava quando o homem a seu lado a cutucou e, após constatar a atenção da menina, perguntou com voz e rosto sério: "Ei, quer almoçar?". Aquilo não fazia sentido algum, primeiro porque eram três horas da tarde e há muito tempo já ela almoçara; ademais, não conhecia o homem e sabia que um convite como esse não era coisa que alguém fazia a um estranho, ainda mais numa linha interestadual prestes a embarcar (almoçar onde????). E havia algo mais, que só agora a menina percebia: o homem tinha um cheiro horrível, embora ela não soubesse dizer do que, possivelmente cheiro de quem há muito não tomava banho. Em poucos segundos, enquanto a perguntava flutuava no ar, Mariana tentou em vão achar uma explicação para tudo aquilo, a começar pela roupa do homem, laranja do pescoço às pernas. "Só dois tipos de pessoas usam roupas assim: os garis e os cantores de rock", pensou a menina, e por um momento passou pela sua cabeça a imagem dum homem magrelo gritando e rebolando com um microfone na mão .  Esse era um hábito da menina: constantemente, observando as coisas, cravava algum pensamento definitivo sobre elas e as pessoas, como se o mundo, aquele mesmo mundo que mal conhecia para além das esquinas da sua casa e que só agora, com tal viagem, começaria a conhecer, fosse algo estático, imutável. Mariana não sabia, mas dali em diante, quanto mais passasse o tempo e quanto mais viajasse por aí, menos certezas teria sobre o mundo e suas coisas. Mas, pensando bem, algo lhe dizia que o homem ali não era uma coisa nem outra; esgotava-se o tempo dela e ainda assim ela não sabia o que dizer, só queria que o homem desaparecesse. Ao invés disso, o homem aproximou-se mais dela e, utilizando seu antebraço, pressionou-o contra o pescoço da menina, fazendo que suas costas afundassem na poltrona. A cena durou poucos segundos (três, cinco, sete?) e, ao cabo deles, o homem levantou-se, o rosto sempre bravo, e saiu rapidamente pelo corredor do ônibus enquanto um grupo de passageiros, percebendo a cena, corria a acudir a menina: "Você está bem?", "Tá machucada?", "Esse homem é louco!", diziam. Mariana disse a todos estar bem, e cada um foi voltando, a resmungar, a seus lugares, guardando um pouco de atenção à menina que, estranhamente, viajava sozinha. De fato, Mariana parecia bem: apesar dos cabelos desgrenhados, não havia marcas em seu pescoço, indicando que talvez a agressão fora algo mais assustador do que doloroso.  Eram todas impressões, e mesmo Mariana não sabia dizer onde e se doía; estava assustada, procurando algum significado para o que acabara de acontecer. O homem já estava longe, bem longe, sem que qualquer passageiro ou funcionário tenha manifestado a intenção de persegui-lo. Durante alguns poucos minutos, a impressão era de que, nos lugares próximos ao de Mariana, as conversações passaram a ser sobre aquele homem considerado louco; havia quem manifestasse ódio e desejo de feri-lo, e era curioso que o desejo das pessoas de machucá-lo era superior à preocupação com a menina; dali a dez minutos o ônibus partiria e cada um daquelas testemunhas do ocorrido substituiria a cena bizarra por outros pensamentos mais apropriados, porquanto mais úteis: os boletos, as mágoas, a fome, o sono, os desejos de cada um. Menos para Mariana, que dali pra frente nunca esqueceria o episódio, em busca de algum sentido. Houvesse uma forma de contabilizar o raciocínio, houvesse a profissão de contador de pensamentos, o Senhor Anselmo (chamemo-lo assim) surpreenderia-se com a dificuldade de organizar as ideias de sua cliente Mariana, e provavelmente não esconderia sua surpresa em constatar que nada havia de rancor ou ódio ali a respeito do que acontecera (certamente estaria ele, em vista de seu ofício, acostumado a lidar com mágoas e maldades provindas das cabeças de sua clientela, seja ela adulta ou infante): os pensamentos marianescos naquela hora compunham estranhas flora e fauna; antes de tudo ela pensava no porquê havia pessoas a fazer mal às outras sem motivo algum, antes de tudo ela pensava nas estrelas de rock que se contorciam no palco, cada noite uma cidade diferente do mundo cantando sempre as mesmas músicas da turnê em suas apertadas roupas multicoloridas; deus do céu, os cantores não se cansavam de cantar sempre as mesmas músicas? como não enlouqueciam?; pensava também Mariana que aquele homem era sozinho; pensava Mariana que cada pessoa tinha um cheiro diferente, mas que, no fundo, em certas horas, tinham todos, ricos e pobres, gênios e doidos varridos,  a mesma tendência a cheirar mal, nos peidos, nos suores, nas fezes, no amor e no medo. Anselmo, pobre Anselmo, encerrou o expediente daquele dia, mas levou pra casa a cisma; antes de dormir, provavelmente virou-se para para sua esposa (chamemo-la Soraia, todo mundo tem quer ter um nome, não importa se viva ou morta, rica ou pobre, real ou inventada) a dizer: "Soraia, é muito estranho, pois em nenhum momento do dia ela desejou mal a ele, não quis se vingar, não desejou que sequer se machucasse. Adolescentes são o diabo, Soraia, não entendo porquê essa daqui não é." "Vai dormir, Anselmo, e não enche o saco", disse Soraia, puxando pra si um pouco mais a coberta. Nessa hora, alta noite, Mariana provavelmente já dormisse, o assento ao seu lado vazio, a sonhar com bichos, pessoas, cheiros e estrelas da música

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